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Estado de Minas ENTREVISTA

"A grande dificuldade dos pais é assumir que são aprendizes"

Para psicólogo, pandemia do novo coronavírus deixou ainda mais evidente que pais devem enxergar imperfeições e falhas não apenas como inevitáveis, mas positivas na relação com os filhos


postado em 12/06/2020 13:08 / atualizado em 12/06/2020 13:20

QUEM É

Alexandre Coimbra Amaral, 46 anos
Origem 
Belo Horizonte (MG)
Formação 
Graduado em psicologia pela  Fumec, mestre em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile 
Carreira
Terapeuta familiar, de casais e grupos. Psicólogo do programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo
 
O psicólogo Alexandre Coimbra Amaral foi até o colégio no qual estudou durante toda a vida, o Santo Antônio, no início deste ano, para falar sobre pais perfeitos. Sua palestra, intitulada “Nossos filhos merecem pais humanamente falhos”, tinha como intuito dizer aos adultos presentes que erros não são apenas parte da vida de quem cria filhos, mas que são também desejáveis. O tema se tornou ainda mais evidente durante o isolamento social, quando surgiram novas dificuldades na rotina e na relação entre pais e filhos, em um cenário de profunda insegurança e ansiedade causadas pela pandemia. 
Segundo o terapeuta de casal e família, a situação atípica pela qual estamos passando – com a ansiedade que acompanha a pandemia e a dificuldade de conciliar home office com o cuidado com os filhos, entre outras complicações – pode ser uma chance de se redescobrir relações, reinventar o significado de ficar em casa, e de tentar viver a vida com mais leveza, acolhendo os filhos e a si mesmos nos momentos desafiadores. Ele diz que agora não é momento de ter respostas, mas de viver junto as emoções. E de pensar em como será a vida no pós-pandemia, pois, segundo Coimbra, "a vida que a gente tinha antes morreu". 
 
ENCONTRO - O que significa “nossos filhos merecem pais humanamente falhos”?
 
ALEXANDRE COIMBRA AMARAL - A gente não precisa ser uma prescrição de perfeição para filhos darem certo. Eles toleram nossas falhas. Sobretudo na fase da transição para a adolescência, que é quando se dão conta de que não somos tão perfeitos (quando, aliás, eles precisam tirar a gente desse “trono”), se eles nos enxergam falhos, sentem-se capazes de construir uma história pessoal também. Isso porque a criança recebe o tempo inteiro um monte de falas do quanto ela é equivocada, inadequada, “isso não pode”, “não é assim”. Por mais que a gente seja educador com uma pegada não violenta, ainda assim os pais sempre dizem que existe outra forma melhor para os filhos agirem, que não devem fazer desta forma, etc. Fica um registro de que a criança é demasiadamente imperfeita. Quando a gente assume a falha, mostra que todos nessa vida tentamos fazer o melhor, mas a falha é inerente à experiência. Na hora que o filho entende que isso faz parte da constituição humana, ele se sente capaz de adultecer. Essa é uma perspectiva importante para o desenvolvimento humano.
 
Essa dificuldade dos pais com ser imperfeitos tomou uma proporção maior durante a quarentena?
Acho que estamos vivendo dois polos e alguns matizes entre eles. Tanto uma oportunidade de lidar com a imperfeição - que é evidente na gestão de uma vida na quarentena - quanto uma culpa perfeccionista por não dar conta disso. Estamos vivendo um momento de reconstrução do significado de habitar uma casa, com as mais diferentes tarefas sendo realizadas todas em casa.  Isso ainda assusta, leva as pessoas a se sentirem muito culpadas por não estarem dando conta, mas também pode ser uma oportunidade de testar a experiência com fluidez, trabalhando com “o que foi possível fazer hoje”. 

Os pais têm se sentido menos capazes de proteger os filhos, ao não saber, eles mesmos, como ficará o cenário?
Pais sentem uma certa onipotência, como se conseguissem proteger os filhos da vida. A verdade é que não temos essa capacidade. Nosso papel é dar apoio para eles trilharem as durezas da vida e celebrar aquilo que for grandioso. Neste momento, estamos todos no mesmo caldo de insegurança, incerteza, sentido que o chão está se esfarelando. A postura agora não é de ter respostas, mas viver junto as emoções. Um dia podemos estar mais para baixo, mais irritados. É normal em momentos de crise. Podemos sentar e conversar. 

O que pacientes e seguidores têm lhe dito sobre a convivência da família em "confinamento"?
Existem pessoas que vivem circunstâncias familiares violentas e que estão em profundo sofrimento e até mesmo em risco. A essas pessoas, é importante dizer que o isolamento social não significa conviver só com família. Podemos fazer uma ligação para qualquer outra pessoa do lado de fora - a um amigo, um terapeuta - que pode nos dar luz, ver a coisa por outro viés e ajudar nesses processos de crise. Mas também tenho visto outras coisas muito lindas: casais que estão se sentindo mais próximos, mães, pais e filhos aproveitando uma convivência inédita, irmãos se descobrindo como alternativa para brincadeiras. É importante, contudo, não romantizar a quarentena, porque ela tem sido difícil para muita gente.
 
Há até pessoas sofrendo por não estarem conseguindo viver a quarentena “do jeito certo”...
Sim. Ainda vai cair essa ficha para algumas pessoas, a ficha de que a quarentena não é momento de “performar”. É por causa dessa obsessão pela performance que vivemos algumas das maiores doenças do século. As pessoas devem ver a quarentena como um descanso desse momento de performance, devem olhar para si e ter compaixão pelo que conseguiram fazer naquele dia, naquela semana.

Quais experiências vamos guardar desse período de isolamento?
Não temos ideia das alterações na cultura que acontecerão, o que vai acontecer com uma cultura tão ligada ao toque como a nossa, se passarmos um, dois anos tendo de manter distanciamento. É a primeira vez que estamos convivendo com a ideia de que a proximidade das pessoas que mais amamos pode ser um risco. Mas acredito que ainda temos muitas fases para viver. No início do isolamento, ficamos muito espantados; depois, teve a fase de lua de mel, quando todo mundo achou que fosse aprender três línguas, fazer mil cursos; em seguida veio a real, sobre como é viver desta forma. Ainda estamos aprendendo a viver desse jeito.

Acredita que as pessoas estejam repensando a vida como era antes da pandemia?
Aquela vida que a gente tinha antes morreu. Precisamos fazer o luto daquela forma de vida. Temos de aproveitar que estamos dentro de casa para pensar o que precisa morrer na nossa vida para fazer brotar, deixar espaço para nascerem outras partes de nós, outras formas de levar os dias. Tem gente que está abrindo mão de grandes escritórios, percebendo que trabalho remoto pode funcionar. Há quem esteja percebendo que gosta de trabalhar em casa (e está repensando a prática profissional para construir algo que inclua ficar em casa. Existem os que estão percebendo que precisam ficar mais perto da natureza... Essa experiência radical levou à reflexão, para darmos um control+alt del na vida. Isso sem falar em casamentos que já se desfizeram, na relação das pessoas com o trabalho doméstico... Isso me parece uma evolução que pode aparecer. Tomara que possamos ser uma cultura que abrace, como nos países europeus, a vida sem a empregada doméstica, cada um tomando conta da sua comida, do seu lixo, do seu banheiro. Pode ser uma mudança de costumes deste momento. 

De que forma a educação mais tradicional, autoritária, dificulta esse posicionamento de pais que também podem falhar?
A educação mais autoritária não permite isso, porque esses pais, quando pedem desculpas, a fala costuma ser “eu errei, mas você também errou”. O que os pais, quando erram, devem fazer é assumir a sua responsabilidade, sem jogar para o outro. Não é a mesma coisa adulto e criança pedirem desculpas. Ver uma pessoa hierarquicamente superior pedir desculpas pelo erro tem uma qualidade diferente, um peso diferente. 

Por que existe essa dificuldade de assumir o erro?
A função paterna (bom, mais a materna do que a paterna) é muito vigiada. O mundo te vigia ser mãe e, quando você erra, é raro receber apoio. O que se recebe é julgamento. É raro se ver o apoio a uma mãe quando ela está impossibilitada de dar o melhor para o filho. Se você está em uma praça e vê uma mãe nervosa, brigando com o filho de forma desmedida, ninguém vai lá dar apoio. As pessoas ficam fofocando, criticando, olhando apenas. A mãe ter de lidar com a sensação de fracasso e mais o olhar de julgamento é muito pesado. A função materna é a função mais julgada da sociedade. É ao mesmo tempo a mais idealizada e a mais julgada. Essa expressão, que é muito comum a gente ouvir, “quem pariu Mateus que o embale”, ela prescreve a solidão materna. 

Pais sentem culpa paterna no mesmo nível que mães sentem a "culpa materna"?
De forma geral, não. O cara que troca uma fralda e posta no Instagram já ganha um monte de likes, está tudo certo. Ainda é muito desigual a percepção social para homem e para mulher na sociedade. Justamente pelo nível de julgamento que a mulher vive, ela tem mais culpa. Do ponto de vista social, o homem é muito mais liberado disso. Ele costuma sentir culpa quando as funções tradicionalmente masculinas  estão em baixa - por exemplo, se está desempregado. Agora, em questões de cuidado, isso ainda é visto, infelizmente, como uma pauta feminina.
 
O que a ideia da perfeição materna e paterna pode gerar no filho?
Pode construir um filho infantilizado, um adulto infantilizado. Uma pessoa que vai viver conectada à ideia de perfeição, de querer ser perfeito como a mãe, como o pai. Com isso, pode deixar de colocar a própria vida para andar. Enquanto o projeto não estiver perfeito, a ideia não for perfeita, não é colocada no mundo. E a verdade é que a gente não está pronto para os projetos mesmo quando começamos. A gente vai aprendendo no processo. Temos de ser tolerantes com a nossa imperfeição.
 
Qual a importância, para os próprios pais, de conseguirem demonstrar que são imperfeitos?
A grande dificuldade dos pais é assumir que somos aprendizes, que não temos a resposta pronta. E sobretudo em uma sociedade em transformação, como a nossa, isso é essencial. Só para dar um exemplo de uma das várias esferas da paternidade em que isso tem sido uma questão: nós somos os primeiros mães e pais de adolescentes nativos digitais, então, naturalmente, não sabemos como lidar com isso ainda. Não temos receita, certezas. Não sabemos exatamente como vai ser o desenvolvimento deles.
 
Demonstrar imperfeição pode afetar a autoridade dos pais?
A condição de aprendiz é uma necessidade de se assumir, e isso não retira a autoridade dos pais. A autoridade não vem de estar sempre certo, vem de pais construírem parâmetros a partir da vivência. Tudo bem dizer “olha, filho, até essa semana estávamos fazendo assim, mas não está dando certo, então vamos tentar mudar.”

Qual a sua opinião sobre cursos para pais?
Acho útil, considerando uma mudança cultural que aconteceu. Com o tipo de vida que temos levado atualmente, estamos chegando à maternidade e paternidade sem experiência de contato com bebê e com criança. Antigamente, as pessoas tinham esse contato com irmãos, primos, filhos de conhecidos. Hoje, muitas vezes, o primeiro bebê que a mãe ou o pai carrega é seu filho, o que dá uma insegurança muito maior. Essas iniciativas são legais, porque podem construir conceitos que ajudem nesse processo. Mas devem ser consumidos com cuidado para não se tornarem “dez mandamentos”. Os pais não podem perder sua forma própria de fazer. Vejo muitos pais agoniados porque não cumpriram um “checklist”. Se o curso for gerar culpa, não está bom. 

Como a escola pode ser parceira nessa construção da ideia de que todos podem falhar?
Isso depende da orientação e das escolhas pedagógicas da escola. Essa ideia transforma todo mundo em aprendiz: a criança, os pais e também os educadores. A escola também ainda está aprendendo a lidar com o tema do celular, por exemplo. Se proíbe, se deixa usar no recreio, se pode acessar jogo ou só Whatsapp, etc. Não existe uma única resposta que possa ser imposta. A única saída é sentar para conversar. Mas cada escola lida de uma forma. Algumas decidem as coisas internamente e divulgam para os pais, outras chamam os pais para uma assembleia, etc. 

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