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Estado de Minas COMPORTAMENTO | ATITUDE

A arte do desapego

Movimentos em prol da doação e da gentileza urbana têm surgido em BH, impulsionados pelas redes sociais. A ideia é mostrar que não é preciso acumular bens para ser feliz


postado em 28/03/2014 16:52 / atualizado em 28/03/2014 17:26

A publicitária Fabiana Soares criou a ação Brigadeiro por Desapego, para incentivar as doações:
A publicitária Fabiana Soares criou a ação Brigadeiro por Desapego, para incentivar as doações: "Desapegar-se é o primeiro passo para você seguir outro caminho na vida" (foto: Rogério Sol)

O desapego de outras pessoas foi importante na vida da psicóloga Raquel Resende, que ganhou um piano Essenfelder raro, cedido por meio de um grupo de doação on-line. "Um amigo participante do grupo pediu que a dona do piano o doasse para mim, afirmando que o instrumento não seria apenas para uso próprio, mas para que eu pudesse ofertar música a crianças portadoras de necessidades especiais e em vulnerabilidade social", diz ela, sócia de uma clínica que trabalha com esse público. "Minha tarefa é compartilhar com o público infantojuvenil um pouco da graça que é poder retornar a esse universo", diz.
 
A psicóloga Raquel Resende: ela voltou a tocar piano para crianças em situação de risco social(foto: Leo Araujo)
A psicóloga Raquel Resende: ela voltou a tocar piano para crianças em situação de risco social (foto: Leo Araujo)
 

As redes sociais têm papel essencial nesse tipo de ação. Os eventos e projetos voltados para o desapego têm páginas no Facebook para divulgar informações, combinar encontros e reunir pessoas. Há comunidades de doação e troca on-line, como Reciclistas BH, Desmaterialize-se e Escambo BH, nas quais as pessoas "anunciam" o que têm para doar e os interessados em receber se manifestam. Para Joana Ziller, pesquisadora de comunicação digital do Centro de Convergência em Novas Mídias da UFMG, essas redes permitem que pessoas com o mesmo interesse, mas geograficamente dispersas ou que não se conhecem, entrem em contato. "Os interesses não são novos, mas foram impulsionados pela rede, pois essas pessoas dificilmente se conheceriam de outra maneira, e a grande mídia não falaria de temas como esse", diz.

O Ponto do Livro, projeto inaugurado em janeiro deste ano, reverbera um movimento mundial de troca de livros. A ideia é que pessoas se engajem na proposta de doar, deixando exemplares em bolsões de plástico instalados em pontos de ônibus da praça da Liberdade. As obras ficam disponíveis para quem quiser pegar, ler, levar para casa, sem a obrigatoriedade de deixar algo em troca ou de devolver o que pegou. O publicitário Arthur Sant’Ana é líder do Desestressa BH, um dos coletivos responsáveis pelo projeto. Para ele, as pessoas ainda estão se acostumando com a proposta: "Eles descobrem que não serão os únicos a ter o privilégio daquele conhecimento", diz.

Difícil ser mais apaixonada por livros do que a blogueira de literatura Thalita Alvarenga, que estima ter em sua estante quase 200 obras. Quando conheceu o Ponto do Livro, quis colaborar, mas esbarrou numa questão pessoal: como se desapegar das suas maiores paixões? Resposta: pensando que uma das missões de quem gosta de ler é exatamente incentivar os outros a adquirir o hábito também. "É um apego material, vamos acumulando, mesmo sem precisar. Não costumamos olhar o lado de que há outros precisando", afirma. 

Para Cristiane Barrreto, psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise, a dificuldade em se desfazer de objetos pode vir da função importante que eles ocupam na vida das pessoas. "Esses objetos podem funcionar como forma de tamponar vazios, representar momentos ou pessoas especiais, ou, ainda, podem implicar um sintoma de acumular, ter acesso aos objetos produzidos pelo mercado de forma compulsiva", explica. O desapego seria, portanto, um exercício, uma tentativa de se dedicar a uma construção que não privilegie o excesso.

A blogueira Thalita Alvarenga, uma das doadoras do projeto Ponto do Livro:
A blogueira Thalita Alvarenga, uma das doadoras do projeto Ponto do Livro: "Uma das missões de quem gosta de ler é incentivar os outros a adquirir o hábito também" (foto: Thiago Mamede)

Esse exercício é praticado, das mais diversas formas, sempre que acontece a Feira Grátis da Gratidão, que já teve seis edições em BH, em lugares como as praças Floriano Peixoto, Duque de Caxias e da Liberdade. Como o próprio nome diz, não há dinheiro ou obrigações envolvidas. O lema é "Traga o que quiser (ou nada) e leve o que você quer (ou nada)". Sem líderes ou local fixo, ocorre à medida que pessoas chegam e escolhem o melhor lugar e a data para o evento. Lá, disponibilizam abraços, conselhos, sorrisos, vestimentas, livros, vinis, CDs, balas, brigadeiros, massagens, reiki. Segundo Ayala Melgaço, uma das representantes da feira, a ideia, que surgiu no Uruguai, é levantar valores como gratidão, consumo consciente, respeito à natureza e à diversidade. Ela estima que a média de comparecimento na feira é de mais de 500 pessoas. 

Como gentileza gera gentileza, várias ações menores foram se desenvolvendo na feira. Uma delas é a Brigadeiro por Desapego, criada pela publicitária Fabiana Soares, a Fabi, durante a primeira edição do projeto, no início de 2013. Ela dá um brigadeiro para cada um que doar algo, seja objetos seja pensamentos. Os primeiros vão para doação, junto de outras arrecadações da feira, e os últimos, para a fogueira. "É um gesto simbólico sobre o que estão carregando na vida e que não precisam mais", conta Fabi, que pretende continuar com a ação neste ano, quando houver novas edições do evento.

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