A preocupação dos pais com o "autismo virtual", por exemplo, traz à tona duas pautas importantes: a orientação sobre o uso de telas e eletrônicos por crianças e adolescentes, e também informações corretas quanto ao Transtorno do Espectro do Autismo, cujo mês de conscientização é abril (no dia 2 se celebra o Dia Mundial da Conscientização do Autismo).
Quem é: Rodrigo Carneiro de Campos, 51 anos
Origem: Belo Horizonte (MG)
Formação: Graduado em medicina pela UFMG, com especialização em pediatria e em neurologia infantil pela Fhemig
Carreira: Neuropediatra, presidente da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e profissões afins (Abenepi), membro do comitê de neurologia da Sociedade Mineira de Pediatria e neurologista do Ambulatório de Seguimento do RN de risco da Secretaria Municipal de Saúde-PBH
ENCONTRO - Por que se usa o nome de "autismo virtual" para os sintomas do excesso de telas?
Rodrigo Carneiro - O uso de eletrônicos, principalmente os que têm estímulo visual intenso (telas), dependendo da intensidade, causa alterações no comportamento, como ansiedade leve, dificuldade de atenção, irritabilidade, impaciência, até casos mais graves de atraso no desenvolvimento ou comprometimento de funções relativas ao relacionamento interpessoal. Por isso, pode simular sintomas do autismo. No entanto, é um termo de que não gosto muito, porque acaba banalizando os casos de autismo e eventualmente retardando o tratamento nesse casos.
Como podemos caracterizar o autismo?
É um transtorno, ou seja, uma alteração que causa prejuízo no neurodesenvolvimento. A criança nasce com alguns sinais bem precoces - antes de qualquer exposição à tela - desse quadro. O contato visual pobre com a mãe, movimentos repetitivos, não quer ficar no colo e se irrita com estímulos do ambiente, como sons. Existe uma alteração na modulação dos estímulos e no contato interpessoal que já vêm desde os primeiros meses de vida. E quanto mais precoce é feito o diagnóstico, melhores e com mais resultados são as intervenções.
O contato através do olhar é um indicativo. A criança que busca o contato, que reage a estímulos dos cuidadores de forma positiva, repete gestos faciais, que consegue ficar em ambiente com estímulos variados, nos dá uma tranquilidade grande. A partir dos três, quatro meses, é possível identificar esses sinais precoces. Não necessariamente a criança vai desenvolver autismo, mas seriam sinais que mereceriam ser avaliados ao longo dos próximos meses de vida. Normalmente, o diagnóstico pode acontecer por volta de um ano, quando se espera que venha a linguagem e a criança não a desenvolve (e quando, principalmente a partir do sexto mês, já se observa uma série de sintomas que nos levam a pensar na possibilidade do diagnóstico).
As crianças costumam ser diagnosticadas até o primeiro ano?
A maioria é diagnosticada ao longo do segundo ano de vida, quando a linguagem falada não se desenvolve. Muitas vezes caímos em uma situação de esperar, de que "cada um tem seu tempo". Mas, quando associada a alguns outros sinais de irritabilidade, alteração de comportamento e pouco contato com o ambiente através do olhar, não devemos aguardar. Temos de procurar o pediatra e ser encaminhados a um especialista.
Qual a importância de o diagnóstico ser feito precocemente?
Não só o autismo, mas qualquer alteração no desenvolvimento e no comportamento, quanto mais precoce a identificação, melhores vão ser as intervenções e seus resultados. Um dos intuitos da Abenepi, através do projeto Sapiens, é levar esses conhecimentos para dentro das famílias e escolas, onde as crianças são observadas de maneira precoce, e os sintomas, apresentados de forma mais sutil. Isso porque, normalmente, quando a criança chega ao consultório de um especialista, costuma ser porque os sintomas já estão bem persistentes ou já se tem um quadro de transtorno bem instalado. O projeto Sapiens tem o intuito de levar o conhecimento técnico de maneira objetiva e simples, para que o cuidador possa compreender, identificar sintomas, e que as crianças sejam encaminhadas de forma mais rápida ao especialista, se necessário. Quanto maior a prevenção e o cuidado, menos tratamentos vamos fazer nas crianças.
Por que o número de casos de autismo tem aumentado nos últimos anos?
Existe um estudo longitudinal nos Estados Unidos que vem mostrando que a prevalência à incidência de sintomas do espectro autista tem aumentado ao longo dos últimos anos de forma expressiva. O diagnóstico tem se aprimorado, e o acesso a especialistas pela população também, mas não é só isso. Há um aumento real da incidência e os fatores que levam a isso ainda não estão determinados. Temos visto que o próprio uso indiscriminado de telas tem levado a uma alteração comportamental que pode se expressar na criança, mas isso merece ainda muitos estudos. Alimentos geneticamente modificados, consumo de alimentos multiprocessados… a mudança dos hábitos de vida certamente tem interferência nesse aumento, mas para afirmar quais são especificamente as causas e criar medidas de contenção, ainda são necessários mais estudos.
No caso do autismo, o que as intervenções podem fazer pelo paciente?
Através da informação, de técnicas de relacionamento, treinamento, essa criança se torna mais funcional e sociável, o que diminui o impacto dos sintomas e alterações de comportamento ao longo da vida da criança.
É verdade que o diagnóstico é mais difícil em meninas do que em meninos?
Do ponto de vista de sintomas que chamam a atenção - crianças mais inquietas, repetitivas -, isso costuma ocorrer mais em meninos. As meninas tendem a ser mais introspectivas e alguns sintomas relacionados ao comportamento podem ser confundidos com timidez e só serem diagnosticados mais tardiamente, quando se associam outros sintomas mais evidentes.
Como os pais podem saber qual é o desenvolvimento neurológico esperado em cada etapa da infância?
Em termos mais práticos, só vamos conseguir começar a identificar um desvio no desenvolvimento ou comportamento na medida em que temos contato mais prolongado com o filho ou filha. O que preconizamos e apoiamos é que as crianças frequentem locais de convívio, como praças, parques, mesmo dentro do primeiro ano de vida. Elas devem ter uma vida ativa, participar de clubes, ter convívio com crianças da mesma idade, convívio familiar também. Muitas vezes, os sinais de alerta vêm de tios, avós, pessoas que tiveram convívio com crianças e conseguem ter uma referência. Esse convívio social não só previne muitas alterações de comportamento como ajudam a identificar alguns desvios. Atualmente, crianças ficam confinadas dentro de casa, sob cuidados de uma pessoa apenas, e eletrônicos e telas que entram de forma muito contundente, aumentando ainda mais as dificuldades comportamentais.
A sociedade, hoje, visa o estímulo para o desempenho escolar e profissional. O que temos de mostrar para nossas crianças é que a qualidade dos relacionamentos vai determinar o futuro do indivíduo. Nos primeiros anos de vida, os estímulos devem ser voltados para o contato interpessoal com os pais, cuidadores, os estímulos sensoriais e táteis. A criança é uma exploradora nata em seus primeiros anos, curiosa por natureza. Dentro do ambiente, ela vai mexer, abrir gaveta, subir nas coisas. Despertarmos e protegermos essa curiosidade é muito importante. Ela precisa explorar o ambiente - obviamente sob supervisão dos responsáveis. Hoje, temos uma falsa sensação de que o melhor é proteger e deixar a criança dentro de casa, com todas as ferramentas de segurança. Às vezes, estamos é privando essa criança de estímulos mais qualificados e que têm melhor relação com o desenvolvimento neuropsicomotor.
Casos de TDAH e do transtorno opositivo-desafiador também têm preocupado os pais...
Desvios de comportamento, de fato, estão mais frequentes. Oposição e desafio são comuns em todo desenvolvimento. Quando isso está em intensidade muito grande, que interfere nas relações das crianças com os cuidadores, isso passa a ser um transtorno (ou seja, apenas quando causa algum prejuízo no relacionamento ou desenvolvimento). Há vários estudos que demonstram que crianças confinadas e muito expostas a telas perdem capacidade de autorregulação, de se submeter a controle externo, então reagem de forma desproporcional a regras, a qualquer situação que lhes cause algum nível de frustração. Juntamente com isso, vemos que os comportamentos mais hipercinéticos, hiperativos, têm se tornado mais frequentes nas crianças expostas às telas. Pais acham que as telas acalmam as crianças, sendo que, na verdade, essas situações levam o cérebro a reagir, na ausência de estímulos visuais, de forma diferente: crianças ficam mais impacientes, intolerantes, irritadas e hiperativas - simulando muitas vezes sintomas de transtorno de déficit de atenção.
Como o senhor vê a comparação entre o consumo de telas atual e o consumo de cigarro há algumas décadas, quando era normal e até incentivado o consumo ilimitado?
O volume de estudos científicos bem conduzidos sobre o impacto das telas tem aumentado bastante, e ainda vamos precisar ver o que vai sair disso tudo. Mas, essa comparação é feliz no seguinte aspecto: alguns jogos, alguns funcionamentos de redes sociais causam no cérebro mecanismos de re-entrada e de recompensa, os mesmos que o tabaco e o álcool, que causam dependência. O vício em videogame é algo real e vai entrar no Código Internacional de Doenças (CID). A quantidade e frequência de exposição, em algumas pessoas, pode desencadear uso descontrolado e dependência. Precisamos ter uma relação mais organizada com a tecnologia. E, se hoje não podemos separar o mundo real do digital mais, o que nos cabe? Saber como, quanto e quando usar.