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Estado de Minas SAÚDE

Pandemia tem levado crianças e adolescentes a atendimento psicológico

Eles mostram grande resiliência, mas também sentem os efeitos da crise do novo coronavírus


postado em 05/10/2020 00:48 / atualizado em 05/10/2020 00:53

Procura por ajuda é muito importante, ainda que de forma remota: o longo tempo de exposição às telas e a ausência do contato real ou presencial preocupa especialistas de Belo Horizonte(foto: Freepik)
Procura por ajuda é muito importante, ainda que de forma remota: o longo tempo de exposição às telas e a ausência do contato real ou presencial preocupa especialistas de Belo Horizonte (foto: Freepik)
Eles costumam andar juntos, ou aos pares, e as risadas são contagiantes. Na alegria e desafios dos relacionamentos, vão aprendendo a lidar com os amigos. É a partir da interação social que as crianças e os adolescentes desenvolvem importantes habilidades, como a empatia, além da formação de um senso de identidade.  Se a faixa etária é menos propensa a desenvolver quadros graves de Covid-19, por outro lado responde a um grande teste emocional: ao fechar as escolas, o coronavirus impôs para a meninada, da noite para o dia, a necessidade urgente de viver a vida sem o contato com os colegas ou mesmo uma volta no parque. A turma mostrou resiliência, mas o prolongamento do isolamento social, que já dura desde março, para muitos não tem sido fácil.  Em Belo Horizonte especialistas observaram um crescimento da demanda pelo atendimento psicológico, mesmo que de forma remota, e dão algumas dicas de como lidar com o momento ainda incerto, onde a angústia aparece na forma de medos sem nomes, fobias, feridas na pele, mudança no apetite, tristeza, medos e até pânico.

A psicanalista Cristina Drummond se preocupa com o fato de o convívio social resultar em pontos de tensão:
A psicanalista Cristina Drummond se preocupa com o fato de o convívio social resultar em pontos de tensão: "Há muitos mal-entendidos nos diálogos virtuais" (foto: Arquivo pessoal)
Mesmo com o esforço das famílias, que se organizam para transformar a casa em espaço múltiplo, o confinamento é desafiador para quem está em formação, como os adolescentes. Ir para o sítio ou uma casa de campo, onde há ambientes ao ar livre para maiores gastos dessa energia tão comum a essa faixa etária, é um alívio, mas nem todos contam com essa alternativa. Com longa experiência na clínica de crianças e adolescentes, a psicanalista Ana Boczar, membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, lembra que o momento atual pode ser um gatilho para angústias, com sintomas que muitas vezes aparecem no corpo das crianças e adolescentes, como coceiras na pele, alteração de apetite, aceleração cardiorrespiratória ou mesmo adquirir hábitos como roer as unhas.  "São os ataques de angústia", diz. O declínio da socialização também é capaz de provocar certo sedentarismo, o que mexe com a percepção da própria imagem do corpo, outro ponto muito importante para os adolescentes e que é capaz de provocar sentimentos de mal-estar ou ansiedade, completa a psicanalista. O isolamento pode dar vazão ainda a medos e pânico. No caso das crianças, o terror noturno, a sensação de um bolo na garganta e o medo do futuro são percebidos na clínica, já que o coronavírus é entendido por muitos como um inimigo invisível.

Apesar do grande esforço de professores e dos estudantes para manter em dia a rotina dos encontros virtuais, hábitos de desligar as câmeras e o microfone nas aulas on-line já se transformaram até mesmo em piadas e memes na internet. Esse é um desafio que também preocupa os especialistas. "O risco é haver uma espécie de passividade frente a produção do saber, um desinteresse pela escola", diz Ana Boczar. Segundo ela, a convivência social proporcionada pela escola presencial tem relevância não só para os adolescentes, mas é fundamental para os pequeninos. "A educação infantil é um plantio para a adolescência", afirma. Isso porque os estágios do psiquismo vão se estruturando e se organizando a partir da convivência com o outro. Parece não ser possível, então, substituir a convivência social, mas é importante encontrar saídas para esse tempo que deixará marcas. "Na psicanálise dizemos: ‘o que não podemos alcançar voando, temos de fazer mancando’." Ana aponta o convivo mais próximo da família, o diálogo, brincadeiras em casa e trilhas familiares em locais isolados e seguros como alternativas para o momento. Outra opção que pode funcionar como antídoto para a angústia provocada pelo longo isolamento é o encontro de pequenos grupos que se conhecem e estão cumprindo as regras de segurança, em locais abertos, para que as crianças e adolescentes possam ter algum convívio social.

A psicóloga e psicanalista Maria Mazzarello Ribeiro ressalta que este é um momento em que os pais devem aproveitar para estar mais próximos, para conversar:
A psicóloga e psicanalista Maria Mazzarello Ribeiro ressalta que este é um momento em que os pais devem aproveitar para estar mais próximos, para conversar: "Geralmente, os filhos têm interesse por saber de histórias de antepassados, de avós, daquele tio que tinha um jeito diferente" (foto: Arquivo pessoal)
O longo tempo de exposição às telas e a ausência do contato real ou presencial preocupa especialistas de Belo Horizonte. A psicanalista Cristina Drummond, ligada à Escola Brasileira de Psicanálise, acredita a crise atual trará consequências que só o tempo poderá mostrar, já que durante a quarentena tem sido necessário evitar a experiência social, que é uma marca da evolução da espécie. "Como formar algo de humano em alguém dispensando o outro?" Para Cristina, essa é uma pergunta que ainda aguarda resposta. Ela também notou que durante a pandemia cresceram os relatos de fobias. O convívio social por meio das telas, embora desempenhe importante papel neste momento, ainda não é capaz de substituir o encontro humano. No caso dos adolescentes existem os  pontos de tensão nessa relação. "Há muitos mal-entendidos nos diálogos virtuais." O tempo longo de isolamento também pode desencadear síndromes como a da cabana, um medo grande de sair de casa. Há o estranhamento de bebês, que nunca viram outras pessoas além dos próprios pais. A saída para o momento, no qual o isolamento é a arma contra a Covid-19, é intensificar em casa o frequente diálogo em família.

Maria Mazzarello Ribeiro, psicóloga e psicanalista, ex-presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, lembra que para além da família, a escola é um treino das relações sociais, onde aprende-se o respeito e a tolerância às diferenças, a negociar. Uma vez que há a privação desse momento, existe a substituição pela tecnologia, ferramenta que na opinião da psicanalista representa um imenso avanço para a humanidade, mas não substitui o contato humano, onde há o cheiro, a respiração, o toque. Apesar de que há a voz na interação por jogos, ela não substitui o diálogo humano. A preocupação do excesso é que ele leve a um retrocesso em conquistas muito importantes do homem como a capacidade de se comunicar pela fala, levando a uma defasagem dessa habilidade. "Adolescentes se preenchem com as telas e os jogos, mas quando se afastam podem sentir que não há mais nada a fazer." Outro ponto a ser observado é que os jogos também trazem a solução de conflitos pela violência. Há uma falta de empatia, já que no campo todos vão sofrer como algo que faz parte do jogo. Mazzarrello reforça que o homem é um ser gregário e que é só no contato com o outro ser humano que ele se humaniza. Em tempos em que não há a escola, responsável por cumprir em grande parte esse papel, há alternativas em família para aliviar a angústia de meses em confinamento. "É um momento em que os pais devem aproveitar para estar mais próximos, para conversar", diz. "Geralmente, os filhos têm interesse por saber de histórias de antepassados, de avós, daquele tio que tinha um jeito diferente." Outro ponto importante são as refeições em família sem o uso de tecnologia nesse momento, além do hábito de assistir a filmes e  documentários juntos. Se ainda assim mudanças no humor forem percebidas, é hora de buscar ajuda.

Para a psicanalista Ana Boczar, se não é possível substituir a convivência social, deve-se encontrar saídas para esse tempo que deixará marcas:
Para a psicanalista Ana Boczar, se não é possível substituir a convivência social, deve-se encontrar saídas para esse tempo que deixará marcas: "Na psicanálise dizemos: 'o que não podemos alcançar voando, temos de fazer mancando'" (foto: Arquivo pessoal)
Psicóloga comportamental e neuropsicóloga, Gabrielle Chequer trabalha com intervenções fundamentadas em análise do comportamento, além de avaliação neuropsicológica de crianças e adolescentes. Como parte das intervenções está o treinamento de manejo comportamental para pais e cuidadores, na qual os pais aprendem a lidar com as crianças, diminuindo os comportamentos problemáticos e reforçando os bons hábitos. Durante a quarentena muitas famílias sentiram a necessidade de organizar uma nova rotina doméstica, criando regras para que as tarefas diárias sejam cumpridas. Esse nem sempre é um propósito fácil, já que a ideia faz surgir ou pode acirrar dificuldades nos relacionamentos familiares.

Em seu doutorado em medicina molecular na UFMG, a psicóloga comportamental e neuropsicóloga Gabrielle Chequer desenvolve uma plataforma online de treinamento e manejo para pais e cuidadores: desde pontos envolvendo a disciplina até treinamento de papeis, abordando situações reais do dia a dia(foto: Arquivo pessoal)
Em seu doutorado em medicina molecular na UFMG, a psicóloga comportamental e neuropsicóloga Gabrielle Chequer desenvolve uma plataforma online de treinamento e manejo para pais e cuidadores: desde pontos envolvendo a disciplina até treinamento de papeis, abordando situações reais do dia a dia (foto: Arquivo pessoal)
Um dos objetivos do treinamento para pais é justamente ajudar nesse momento. A intervenção é dividida em 12 módulos, nos quais são trabalhados conceitos e estratégias de manejo. As sessões são conduzidas pelo terapeuta, considerando as principais necessidades da família e faixa etária da criança. A intenção é tratar os desafios do dia a dia, como a resistência da meninada em cumprir os combinados, a insistência, pirraças, explosões, e comportamentos desafiadores, por meio de ferramentas que permitem aos pais e cuidadores lidar de forma eficaz, mantendo um nível adequado de afeto e também de controle. "A intenção é melhorar a interação e a harmonia familiar", diz Gabrielle. No caso dos adolescentes as negociações sobre o uso de telas, autonomia, rotina escolar são exemplos de questões práticas do dia a dia desenvolvidas no treinamento.  Agora, em seu doutorado em medicina molecular na UFMG, a psicóloga está trabalhando na criação de uma plataforma online de treinamento de pais, na qual a intervenção vai ser 100% online e autodirigida. Se o isolamento social para os adolescentes e crianças não tem data para terminar, buscar a harmonia e formatos saudáveis de convivência é uma saída para manter em dia o que essa turma tem de sobra: a alta energia.

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