Publicidade

Estado de Minas ESPECIAL DIREITO

Especialista fala sobre situação da advocacia criminal no Brasil

Sócio de um dos escritórios de Direito mais famosos do país, o advogado Sérgio Leonardo diz que aprovação do pacote anticrime foi é a maior revolução da especialidade


postado em 25/01/2021 00:42 / atualizado em 25/01/2021 00:46

O advogado criminalista Sérgio Leonardo(foto: Uarlen Valério/Encontro)
O advogado criminalista Sérgio Leonardo (foto: Uarlen Valério/Encontro)
Sérgio Leonardo faz parte da terceira geração de um dos principais escritórios de advocacia criminalista do país, que leva o nome de seu pai, Marcelo Leonardo. Apaixonado pelo que faz, o belo-horizontino está vivenciando novos tempos na advocacia. Segundo ele, as últimas mudanças na legislação penal, representadas pelo pacote anticrime, provocaram um avanço na área. Dentre elas, o estabelecimento do acordo de não persecução penal. "Agora, temos de ter a capacidade de negociação. E isso, não aprendemos na faculdade", diz. Outro aprendizado que vem tendo em quase 20 anos de carreira é a realização de seu trabalho por meio de videochamadas, algo imposto pela pandemia do novo coronavírus. Atento às transformações da sociedade, Sérgio diz que vem combatendo diariamente o racismo e o machismo estrutural que atingem também o sistema Judiciário. "Temos de ser contra a misoginia e temos de ser antirracistas todos os dias." Em entrevista para este anuário, o advogado falou sobre a discussão a respeito da prisão em segunda instância, da operação Lava-Jato e da imagem atual dos advogados criminalistas.

  • Quem é: Sérgio Leonardo, 42 anos

  • Origem: Belo Horizonte (MG)

  • Formação: Faculdade de Direito da UFMG

  • Carreira: Sócio no escritório Marcelo Leonardo, com sede em Belo Horizonte, Brasília e São Paulo; é conselheiro federal da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), membro do Conselho do Instituto de Ciências Penais (ICP)

ENCONTRO - A pandemia acelerou a incorporação das novas tecnologias no trabalho. Quais os impactos negativos e positivos desse cenário na advocacia?

SÉRGIO LEONARDO - As novas tecnologias causaram uma verdadeira revolução no modo de exercermos a profissão. Hoje, conseguimos fazer sustentação oral nos tribunais de qualquer capital do país sem sair do próprio escritório. Isso democratiza o acesso aos tribunais. Também é muito positivo ter a possibilidade de fazer mais de uma audiência sem sair do seu escritório, sem ter todos os custos que incidiriam sobre isso. Mas temos ligeiras ressalvas. No modo presencial, você tem condições de convencimento muito maior. Você está olhando nos olhos dos julgadores. Consegue aferir o comportamento deles. Podemos notar se estão demonstrando interesse ou não nas teses.

Qual a sua opinião sobre o uso da inteligência artificial no Judiciário?

Temos de saber usar a inteligência artificial a favor do ser humano e do andamento dos processos, mas de forma cautelosa. Não podemos retirar o componente humano, indispensável nas decisões. Quando recorremos à Justiça, não recorremos a um robô ou computador. Submetemos a uma pessoa, que tem família, valores e princípios, que estudou e que adquiriu experiência. Isso, nenhum computador consegue replicar. A inteligência artificial é bem-vinda para facilitar a pesquisa jurisprudencial, a pesquisa doutrinária, a verificação de causas semelhantes, mas não podemos abrir mão do componente humano nas decisões.

"Atualmente, o advogado criminal é motivo de piada e de chacota. Ele sofre muito preconceito. E o advogado que assume uma defesa impopular passa a correr risco de ser ofendido e até de ser agredido na porta de um fórum, por exemplo" (foto: Uarlen Valério/Encontro)
O advogado criminalista é talvez o especialista da área que mais aparece na mídia, sobretudo, quando lida com casos de ampla repercussão. Na sua avaliação, qual é a imagem desse profissional atualmente?

Infelizmente, o advogado criminalista é muito incompreendido na sociedade brasileira. Nossa imagem está muito desgastada. As pessoas só compreendem a importância do nosso trabalho, quando alguém ligado a elas precisa da assistência de um advogado criminalista. Quando um familiar ou amigo é preso, nós estaremos lá para defendê-lo. Seremos a voz dele e essa voz, para ser respeitada, precisa ter credibilidade, precisa das prerrogativas profissionais respeitadas, que não são privilégios, mas garantias mínimas para o exercício digno da nossa atividade.

E como mudar isso?

Precisamos resgatar a boa imagem da advocacia criminal, fazendo campanhas de conscientização para mostrar à sociedade a importância do nosso trabalho. Atualmente, o advogado criminal é motivo de piada e de chacota. Ele sofre muito preconceito. E o advogado que assume uma defesa impopular passa a correr risco de ser ofendido e até de ser agredido na porta de um fórum, por exemplo. E isso decorre dessa incompreensão do papel desse profissional. Mas é importante afirmar que não temos medo da impopularidade das causas, não nos intimidamos, mas precisamos que a sociedade compreenda a importância do nosso trabalho.

Há um desejo de vingança de parte da sociedade relação aos crimes...

Não estamos defendendo o crime. Estamos lutando por justiça em cada caso concreto. Toda pessoa tem o direito de ser defendida. Há publicidade opressiva em casos criminais de grande repercussão. A imprensa toma aquilo quase como enredo de novela e a cada dia há novo capítulo. Muitas vezes pessoas são condenadas pela mídia ou pela sociedade antes de o processo encerrar.

Como o senhor avalia o conhecido caso Mariana Ferrer?

Naquele caso, todos ficaram muito assustados com a postura do advogado, a omissão do magistrado, a omissão do promotor e do defensor público durante o embate entre a vítima e o advogado de defesa. Tive oportunidade de assistir a toda a audiência para dar uma opinião mais embasada. É importante destacar que, no início, a vítima teve postura muito ativa, demonstrou muita indignação e ela provocou o advogado, que  reagiu de forma desrespeitosa. As opiniões do mundo jurídico não foram unânimes. A maior parte condenou a postura do advogado. Já, outra, compreendeu a necessidade de, naquele momento, ele ter sido mais incisivo, mais duro. De qualquer forma, é lamentável. As partes devem sempre se portar com respeito, com urbanidade.

Qual o limite do advogado criminal? Vale tudo?

Não vale tudo. Você tem de respeitar as regras, as formas, os procedimentos e as pessoas que participam de uma relação processual. Não é um vale-tudo.

Houve na sociedade o apontamento de que ali foi mais um caso de machismo...

Sim. É algo que registramos na sociedade em geral e que tem repercussão também na advocacia e no sistema de Justiça.  Advogadas, juízas, promotoras, vítimas e acusadas sofrem com isso. Temos de lutar para que as oportunidades sejam iguais, inclusive nos processos. Imagine a cena de uma advogada criminalista entrando em delegacia num plantão durante a madrugada? Ela vai se deparar com delegado, escrivão, investigador, ou seja, ambiente ainda predominantemente masculino. Isso não pode impedir ou prejudicar o pleno exercício de sua atividade, com todas as prerrogativas, garantias e respeito necessários. Defendo isso de forma intransigente.

Há outro preconceito que é recorrente neste ambiente?

Sim. O racismo estrutural também é refletido no sistema de Justiça brasileiro, em cuja população encarcerada é, em sua maioria, negra. O sistema seletivo da Justiça brasileira atinge os pobres e, em especial, os negros de forma muito cruel. E precisamos lutar pelo respeito, independentemente da cor de pele, para que todos tenham oportunidade de serem ouvidos no sistema de Justiça. Todos temos o dever de escutar. O machismo e o racismo são assuntos que não podem ser ignorados por nenhum de nós. Temos de ser contra a misoginia e antirracistas todos os dias, todas as horas em que formos chamados a tomar qualquer atitude na sociedade.

No seu perfil do Instagram, o senhor publicou imagens de dois livros, o da Djamila Ribeiro e outro da Layla Saad. Ambos tratam do racismo. O que aprendeu com eles?

Aprendi que tenho responsabilidade nesse assunto. E que no meu dia a dia eu posso agir e ajudar a combater o racismo. Também aprendi que temos de ter mais empatia com as pessoas vítimas de atitudes racistas. Para melhor compreendê-las, é preciso estudar, ler. E mesmo sem ter o lugar de fala de quem sofre com isso, você pode ser parceiro dessas causas. Quem nega que no Brasil exista racismo estrutural, deve estar morando em outro planeta.

Existe algum caso que o senhor não aceite?

De acordo com o Código de Ética da advocacia, o advogado criminalista não pode recusar a causa em virtude de discordância moral ou em razão de como a conduta se deu. Mas, ao longo da carreira, o advogado se especializa dentro da prórpia advocacia criminal e passa a ser procurado por clientes com determinado perfil. Mas, é importante que se diga: não existe causa indefensável.

Como é atuar em casos de grande repercussão nacional?

Isso nos impõe outras habilidades que não as tradicionais ou ensinadas nas faculdades de Direito, como, por exemplo, a capacidade de se relacionar com a mídia e com a sociedade de maneira geral, ainda que em causas impopulares. O trabalho, nesses casos, envolve a capacidade de se fazer a gestão de crise que, muitas vezes, acompanha processos dessa natureza. Além de habilidades como as ditas acima, é fundamental ter estratégia, inclusive no que diz respeito à adoção de medidas jurídicas junto às diferentes instâncias do Judiciário. É imprescindível que se pense a causa com visões de curto, médio e longo prazos.

"Sou veementemente contra a prisão, após julgamento em segunda instância. Há estatísticas que revelam: percentual significativo de casos sofre alterações nas decisões, quando os processos sobem para o STJ e STF" (foto: Uarlen Valério/Encontro)
No início do ano, entrou em vigor o chamado "Pacote Anticrime". Qual a sua avaliação sobre as mudanças na legislação criminal?

A maior revolução da advocacia criminal veio em janeiro deste ano com a aprovação desse pacote anticrime: é o acordo de não persecução penal, que é cabível em mais de 80% dos crimes tipificados na legislação brasileira e permite, para o entendimento do leigo,  que se ponha fim a um processo mediante acordo entre defesa e acusação. Abrange qualquer crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa, com pena mínima menor do que quatro anos. Agora, temos de ter  capacidade de negociação. E isso é outra habilidade que não aprendemos na faculdade. O advogado criminalista é o advogado do contencioso, do bom combate judicial, das grandes defesas orais nos júris.  A nova realidade é que  estamos tendo de aprender a sentar na mesa para negociar. Isso é ótimo porque viabiliza a composição também na área criminal, o que não era praxe.  Negociar quanto tempo de prestação de serviço o cliente vai cumprir, qual valor vai recolher de multa, por exemplo. E, a partir desses acordos, conseguir com o MP o arquivamento do caso. Isso veio para desafogar a justiça criminal - e exigir mais preparo e jogo de cintura do advogado criminalista (risos).

Então, tivemos mais pontos positivos do que negativos no pacote anticrime?

O pacote anticrime foi idealizado como um conjunto de alterações da legislação penal e processual penal brasileira para endurecer o sistema, restringir direitos e garantias, dificultar a progressão do cumprimento das penas e causar encarceramento ainda mais massivo. Mas o Congresso teve a coragem de modificar o projeto e a versão que foi sancionada é muito mais positiva do que negativa. Lamentavelmente, contudo, alguns dos dispositivos estão com vigência suspensa, como é o caso do que trata do juiz de garantias. Temos, entretanto, a esperança de que o STF, quando julgar o mérito dessa questão, vai aferir a constitucionalidade da norma e vamos passar a ter o juiz de garantias no processo penal brasileiro.

E qual seria o benefício do juiz de garantias?

O benefício da insenção e de maior chance de promoção de justiça. Isso porque o sistema passa a ter um primeiro magistrado responsável por supervisionar a fase de investigações e decidir todas as providências e medidas cautelares que dependam de apreciação do Judiciário. Após participar da fase de investigações, deferindo ou indeferindo medidas cautelares, esse juiz não poderá julgar o processo, porque estará inevitavelmente com o seu convencimento contaminado pelo acesso àquelas provas. Daí em diante, ou seja, encerrada a fase de investigações e oferecida a denúnica pelo MP,  um segundo magistrado é quem passa a atuar, a fim de conhecer as provas colhidas em juízo. Dessa forma, esse segundo magistrado terá maior isenção e imparcialidade para poder julgar e proferir decisões, mais justas.

Há países que já possuem essa figura no Judiciário?

Sim, sem dúvida. Mas também aqui, no Brasil, já existe, na prática, essa conduta  em Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. E ninguém nunca levantou dúvidas. Em BH, existe a Vara Criminal de Inquéritos Policiais. Nela, os magistrados apenas atuam na investigação. No caso de oferecimento de denúncia, os processos seguem para outras varas, onde atuam outros magistrados. Claro que o Judiciário terá maior dificuldade, do ponto de vista de estrutura e de logística, para fazer isso dar certo em comarcas menores, mais distantes e nas quais atuem um só magistrado. A OAB chegou a encaminhar um conjunto de propostas para viabilizar a implantação da figura do juiz de garantias. Por exemplo: nas comarcas onde só atua um juiz, ele seria o responsável pelos processos; e o cooperador, em geral de comarcas vizinhas, exerceria as atribuições do juiz de garantias.

O pacote também tratou da delação premiada, recurso que foi bastante usado na operação Lava Jato...

O que aconteceu foi a regulamentação da fase de negociações. Vivíamos um cenário de muita vulnerabilidade dos pretensos delatores e seus advogados em face do MP e da autoridade policial. Não tínhamos nenhuma segurança jurídica. O início das tratativas não era sequer documentado. As reuniões não eram registradas. Os documentos entregues não eram protocolados. E, ao final, as autoridades decidiam se dariam ou não andamento à celebração dos acordos, de forma absolutamente discricionária. Agora, há regras. Há demarcação do termo de início das tratativas, que estabele os compromissos de confidencialidade. Há necessidade de gravação das reuniões e do protocolo dos documentos, para que o cidadão tenha condições de participar das negociações com o mínimo de segurança jurídica. A falta de regulamentação, no passado recente, gerou impunidade seletiva. Os membros do MP escolhiam com quem queriam fazer acordos. E esses acordos foram celebrados porque o procurador da República A, B ou C quis que assim o fosse. Agora, há maior controle.

A prisão em segunda instância também está sendo debatida. Como o senhor a avalia?

A Constituição garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado. Você não pode considerar alguém culpado da prática de um crime se não há decisão  condenatória definitiva, que retira a presunção de inocência, e passa, então, a tratá-lo como culpado. Sou veementemente contra a prisão após julgamento em segunda instância. Há estatísticas que revelam: percentual significativo de casos sofre alterações nas decisões quando os processos sobem para o STJ e STF. Se esse conjunto for de 20% dos casos, vale a pena esperar. Isso significa que a cada 10 julgamentos, tínhamos o risco de duas pessoas inocentes começarem a cumprir a pena antes da hora. Não vale a pena colocar nenhum inocente na cadeia, sem que o Judiciário tenha decidido, em definitivo, se ele é culpado ou inocente. Quando o STF, sob pressão da sociedade, mudou o entendimento para admitir a prisão após o julgamento em segunda instância, reescreveu-se a Constituição. E isso não é competência da Corte.

E o argumento de que a não prisão em segunda instância favoreceria quem tem mais recursos financeiros?

É outra falácia.  Algumas das entidades que mais atuaram no STF foram as  Defensorias Públicas do RJ e de SP que, sabidamente, atuam em favor dos menos favorecidos. Essas entidades foram à tribuna do STF para atestar que percentual razoável dos seus casos sofria alterações nos julgamentos no STJ e STF, razão pela qual, entre outros motivos, manifestaram-se contrárias à prisão após julgamento em segunda instância. 

A operação Lava Jato foi uma oportunidade perdida?

O mérito principal da operação Lava Jato foi a mudança cultural, a compreensão de que o combate à corrupção existe, é efetivo e pode atingir pessoas com poderio financeiro ou político. Ninguém está imune ao sistema de justiça. Essa é a parte positiva. De negativo, a operação foi construída com muitos excessos, abusos e relacionamento promíscuo entre magistratura e MP, razão pela qual tenho muitas ressalvas. Entendo que não pode ser eterna. Há diversas outras investigações acontencendo no país e, muitas delas, inspiradas na Lava Jato, embora independentes. Temos de aprender com os acertos e com os erros. De novo: para combater a corrupção, não vale tudo!  Os fins não justificam os meios. Não podemos acreditar apenas que juízes justiceiros e falsos heróis, cujas máscaras com o tempo sempre caem, sejam a salvação do nosso país, especialmente na esfera judiciária criminal.

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação

Publicidade