O ponto de partida da criação foi uma reportagem sobre o povoado de Angostura, na Colômbia, onde mais de 12% da população apresenta uma mutação genética que causa Alzheimer precoce. “Trabalhar o Alzheimer, portanto, seria trabalhar um misto de memória-lembranças com esquecimento-desaparecimento”, explica a atriz Ana Cristina Colla.
. Para aprofundar a pesquisa, o grupo visitou hospitais, conversou com especialistas, familiares e pacientes em 2018. “Época em que o país mergulhava em um momento de apagamento histórico, obscurantismo e irracionalidades políticas”, contextualiza o ator Renato Ferracini. “Emilio nos trouxe algumas questões: seria essa política obscura, que toma conta de nosso país, fruto de uma doença em que a degeneração não pode ser detida pela vontade? Ou seria uma ação manipulada, calculada? Quais seriam as lembranças que queremos esquecer ou sequer tocar?”, lembra Ferracini.
. A metáfora do Alzheimer ganhou outros contornos e se transformou em reflexão sobre escolhas coletivas e pessoais. “Aquelas memórias que machucam, ferem, e que queremos que permaneçam quietas, inertes. Mergulhamos, então, em nossas sombras pessoais, grupais, sociais, para que pudéssemos compor uma obra de autoficção, ao mesmo tempo simples, direta e política, baseada numa singularidade que deseja se coletivizar”, conta o ator Jesser de Souza.
. No palco, o espetáculo se organiza como um inventário de cem memórias — individuais, do grupo e sociais — acompanhadas de objetos que resistiram ao tempo, como relíquias de família, fotografias, diários, moedas e roupas. Para o dramaturgo Pedro Kosovski, a peça fala sobre o desejo de resistir e criar em meio a crises. “Uma comunidade não se faz à força e muito menos é um todo irretocável. Uma comunidade se faz pelo desejo. Apesar do momento político do país que atravessamos, tantos traumas, a construção proposta em ‘Kintsugi’ só poderia ser a de uma utopia: restaurar o desejo de estarmos juntos na diferença, restaurar o desejo de expansão em nossa imaginação política, restaurar fagulhas de um possível futuro, sim!”.
. A metáfora do kintsugi — técnica japonesa de reparar cerâmicas quebradas com ouro, prata ou platina — atravessa toda a dramaturgia. Logo na primeira cena, os atores estilhaçam um vaso em cena, num gesto que anuncia a proposta de recompor fragmentos e cicatrizes.
. A música também tem papel fundamental na narrativa. Estudos apontam que canções conhecidas ativam áreas da memória que escapam ao Alzheimer. “Encontramos em Janete e Mannis a possibilidade de construção de um ambiente sonoro que compusesse com a camada corporal e cênica, que criasse pontes entre nós e cada espectador, entre nossa autoficção e as memórias de cada espectador; uma sonoridade que criasse um ‘bordado sonoro’, um ‘vapor de som’, com potência de acordar, justamente, memórias”, afirma a atriz Raquel Scotti Hirson.
. Além da temporada no CCBB BH, o LUME realiza atividades gratuitas em Belo Horizonte. No dia 23 de agosto será exibido o vídeo-desmontagem “Eu me lembro: Flanando por Kintsugi – 100 memórias”. No dia 30, Renato Ferracini ministra a palestra “Presença, Corpo e Coletividade”. E no dia 6 de setembro, após o espetáculo, acontece o bate-papo “Sobre memórias, processos e singularidades”.
Kintsugi, 100 memórias
Quando: 22 de agosto a 15 de setembro, sexta a segunda, às 19h
Sessões com interpretação em Libras, aos sábados
Onde: Teatro II do CCBB BH (Praça da Liberdade, 450 – Funcionários)
Ingressos no site ccbb.com.br/bh e na bilheteria do CCBB BH, a R$30 e R$15 (meia-entrada)
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