Revista Encontro

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Martha Medeiros e seu universo feminino

João Paulo Martins
None - Foto: Nidin Sanches/Nitro

O universo feminino, mas que também engloba muitos homens, é bem retratado nas obras da escritora gaúcha Martha Medeiros. Ela esteve em BH para o lançamento de seu mais novo livro, Fora de Mim, no projeto Sempre um Papo. A autora do best-seller Divã, que virou peça de teatro, filme e minissérie, explica que passou a frequentar a capital mineira depois que começou uma amizade com Lúcia Moutinho e Marilda Aquino. As duas se consideram suas fãs das antigas e em 2007, com o apoio do Sicepot (Sindicato da Indústria da Construção Pesada de MG), trouxeram a escritora gaúcha pela primeira vez a BH, para o lançamento do livro Tudo que Eu Queria Te Dizer. Num papo descontraído no restaurante O Dádiva, Martha Medeiros conta que começa escrevendo para si mesma e que acaba virando livro. “O início de Fora de Mim corresponde a um momento que eu estava vivendo, mas daí eu deixo o livro progredir, independente de minha história”, conta.

 

Qual sua ligação com Minas?

 

“Começou com minhas duas grandes amigas, Lúcia Moutinho e Marilda Aquino, que entraram em contato comigo por e-mail. Muitas pessoas que não conheço me mandam mensagens e daí se estabelece uma relação, claro que não com todas. Elas me convidaram então para um evento e quando cheguei a Belo Horizonte fui muito bem recebida.

A gente continuou o contato. Esta é a quarta vez que venho à capital mineira. A cidade é lindíssima e o pessoal é muito amável comigo. A gente se encontra uma vez por ano”.

 

 

Seus livros demonstram sua capacidade de transmitir os sentimentos comuns das mulheres. Eles são baseados em experiências próprias, como no caso do best-seller Divã?

 

“Tudo que escrevo tem como pontapé inicial um questionamento interno meu. Começo a escrever para que eu entenda o que estou sentindo. Muita coisa que escrevo não se transforma em livro. Algumas se tornam interessantes e desenvolvo como ficção. O Divã escrevi quando estava chegando aos quarenta anos e transferi para a personagem Mercedes minhas indagações. Ela tem sua própria vida, com vivências que não tive. Mas seu ponto de vista em relação ao mundo é muito parecido com o meu. Em Fora de Mim é a mesma coisa. No início tem a ver com algo que estava vivendo, mas depois deixo o livro progredir independente de minha história.

As mulheres se identificam por que são questionamentos que em algum momento da vida a gente acaba fazendo. Mas escrevo ficção também, como o livro que fiz sobre cartas, que tem como personagem principal um homem, um adolescente esquizofrênico, um padre. Na verdade é um grande aprendizado para mim. Gostaria de ser uma grande romancista, mas não vou ser”.

 

 

Como foi sua transposição de redatora de publicidade para escritora?

 

“A mudança não foi repentina. Eu trabalhava com propaganda e escrevia poesia, já tinha até livro. Depois fui morar no Chile e nesse período deixei de trabalhar e passei a escrever muito em casa. Um jornalista viu meus textos e levou para o jornal Zero Hora. Publicaram uma crônica, que era para ser a filha única, mas as pessoas gostaram e enviaram cartas à empresa para que continuasse escrevendo. Então essa mudança foi de degrau em degrau. Nunca tive um boom em minha vida”.

 

Essa foi então sua estreia na seção Donna do jornal Zero Hora e a consequente fama?

“São dezesseis anos escrevendo para o Zero Hora e quase sete na revista do O Globo, que dá uma visibilidade maior, por ser nacional.

E tem o livro Divã, que publiquei há quase dez anos e já virou peça de teatro, filme e agora seriado de TV. Ele é um case de sucesso”.

 

 

Podemos dizer que o Divã é o trabalho que melhor representa sua forma de descrever o universo feminino?

 

“O livro ficou muito focado na vida amorosa da personagem, mas ele discute muito mais que isso. O Divã apresenta questionamentos sobre maternidade, diferença entre loucura e sanidade, religião, enfim, é feita uma discussão geral da vida. Mercedes discute principalmente o que é ser feliz. A gente acha que ser feliz é cumprir aquele pacote que conhecemos, ou seja, casar, ter filho, uma boa profissão e acabou. Ela cumpriu esse pacote e ao chegar aos quarenta anos, e questiona se continua sendo feliz com isso ou tenta coisas novas. Essa atitude que acho interessante, pois ela quebra a cara, separa, mas se sente mais viva do que quando cumpria o ritual estabelecido pela sociedade”.

 

 

Às vezes Mercedes ainda tinha entendido qual era seu papel nesse “pacote” da vida?

 

“A gente evita muito o risco na vida. E é justamente isso que a apimenta. Por ser risco, pode dar certo ou errado. O psicanalista Contardo Calligaris tem uma frase ótima que diz que ‘ser feliz não é tão importante, mais vale ter uma vida interessante’. Uma vida interessante não significa fazer tudo certo, mas acertar e errar, ter um ‘tsunami’ emocional. E certas apreensões da Mercedes correspondem de certa forma às minhas, depois do livro”.

 

 

Ou seja, sua vivência acaba se confundindo com as de suas personagens? E no caso de Fora de Mim?

“Não faço autobiografia, mas com certeza meus questionamentos estão presentes nas obras. Em Fora de Mim foi a mesma coisa. Comecei a escrever sobre um momento frágil de uma relação que estava vivendo. Só que logo em seguida essa relação foi reatada, e como achei o material interessante, dei prosseguimento de forma fictícia. Volto a dizer, o livro teve como pontapé inicial de algo que estava vivendo e querendo discutir. Mas eu emancipo os personagens e os deixo viver suas próprias vidas”.

 

 

E de onde saem os assuntos para suas crônicas no jornal Zero Hora e na revista do O Globo?

 

“Nesse espaço está presente a opinião da colunista. Foram raríssimas as vezes em que criei alguma história para as crônicas. Elas são baseadas em minhas opiniões, como por exemplo, um bom filme que mexe comigo, um livro que li sublinho algo e desenvolvo a ideia, ou o encontro com uma amiga que me conta uma história”.

 

 

Essa temática do dia a dia é que atrai seu público feminino?

 

“Acho que atrai, primeiro por que são assuntos triviais do dia a dia e isso ainda é o que temos de novidade, já que ficamos esperando algo bombástico ocorra em nossa vida, mas ela é formada das relações com namorados, família, estudo, frustração, falta de grana, questões políticas. É isso que nos move no cotidiano, e não o que está na capa da revista Caras. Na coluna eu falo de trivialidades e as pessoas acabam se identificando por que nossas vidas acontecem entre quatro paredes, não é pública. Acho também que minha linguagem é muito simples, comunicativa, direta e passa a ideia de que estou batendo papo com a leitora”.

 

 

E essa troca com os leitores proporciona amizades, como as de Minas?

 

“A melhor matéria-prima são as pessoas. E por mais que suas histórias sejam aparentemente iguais, ao mesmo tempo cada um traz a sua experiência. O nosso pacote de emoções é muito reduzido, se você parar para pensar, mas ele é tão forte que sempre provoca atração”.

 

 

Explique como foi o caso de seu poema que circulou fortemente na Espanha em 2009, com o nome Muere Lentamente (morre lentamente) e foi atribuído ao escritor chileno Pablo Neruda. O mal-entendido chegou ao ponto em que o texto serviu de mote para a queda do primeiro-ministro italiano Romano Prodi, ao ser lido por um senador italiano em 2010.

 

“Primeiro, na internet circulam muitos textos de autoria trocada, relacionados ao Arnaldo Jabor, Mário Quintana e muitos outros. Na verdade o nome da minha crônica é A Morte Devagar e foi publicada na véspera do dia de finados em 2001, falando sobre as pessoas que não se arriscam estão morrendo lentamente em vida. O texto agradou e quando percebi, estava sendo traduzido para o espanhol e sendo amplamente associado ao Pablo Neruda. Inclusive a Fundação Neruda do Chile tem uma resposta padrão, de tanto que recebem perguntas acerca da autoria. O escritor chileno deve rolar no túmulo. É uma chatice, mas não tem o que fazer, já que não se conhece a fonte disso. Um dia estava em casa num domingo quando me liga um repórter querendo saber da queda do primeiro-ministro em Roma devido à leitura de minha crônica em plenário. Nesse momento achei que era um trote, mas logo em seguida fui procurada pelo Corriere della Sera e toda a imprensa italiana, por que havia mesmo sido lida por um senador, mas atribuída ao Neruda. Como alguns brasileiros que moram em Roma conheciam meu texto e reportaram o equívoco. Nesse momento tive meus quinze momentos de fama. A gente tem de rir disso, por que se for pensar profundamente, é péssimo, é um estelionato autoral. Mesmo Neruda sendo o grande escritor que é, a gente quer que coloquem nosso nome”.

 

 

A gente acaba achando que a associação poderia ser devido a alguma influência de Neruda em suas obras.

 

“Não tem nada a ver. Essa situação é tão estranha, que chega ao ponto de um texto meu ser atribuído a Toulouse Lautrec. Que eu saiba ele nunca escreveu nada, só pintou. Um outro texto, em que cito a expressão ‘corpo sarado’, é atribuído a Mário Quintana. E essa gíria nem existia quando o escritor era vivo. E quem conhece um pouco Quintana sabe que ele era totalmente romântico e nunca diria essa expressão. Não tem como fugir dessas armadilhas da internet. Só posso contar com a vigilância de meus leitores ou então me conformar e rir”.

 

 

Você não escreve mais em seu blog?

 

“Parei de escrever, pois não tenho mais tempo. Deixei o blog de lado temporariamente. Já é difícil achar temas para as crônicas, imagine para um blog, que demanda uma atualização mais dinâmica. Eu estava com a sensação de repetição e não conseguia atualizá-lo com a presteza que as pessoas exigem. Então pensei que, se não estava conseguindo fazer bem feito, era melhor não continuar. Quando der, retomo”.

 

 

A temática feminina hoje é tão forte quanto se via há trinta anos, quando os movimentos feministas ainda eram atuantes? Hoje as mulheres praticamente trocaram os papeis com os homens.

 

“Meu feedback hoje é muito mais masculino que feminino. Na revista do O Globo é ainda mais impressionante. Não existe isso de diferenciar assunto de homem ou mulher. Futebol é assunto de mulher, criação de filhos é de homem. A gente ainda se prende a certos estereótipos, como o que diz que homem só se preocupa com sexo, carro e futebol, enquanto a mulher é que se detém a sentimentos. Como se o universo masculino não sofresse por amor, tivesse medo de envelhecer e morrer. Isso tudo está ligado a relações humanas. Acho que os homens, aos poucos, estão saindo do armário nesse sentido, deixando esses estereótipos. Como a mulher invadiu tanto o mundo masculino, o contrário também é visto, já que o homem assumiu a cozinha, os filhos. Acho que meu pai nunca foi numa reunião de escola, e hoje, quando eu vou nas reuniões de minhas filhas, a metade dos presentes são homens. As responsabilidades estão começando a ser compartilhadas. Hoje o universo é mais unissex. E isso se repete na crônica, ou mesmo em toda a literatura. Nem preciso falar de mim. Se você lê um livro da Patrícia Melo, você jura que foi escrito por um homem. Por outro lado, escritores como Sandro Moraes e Chico Buarque conseguem escrever de forma bem feminina. Acho que esse assunto sempre ressurge, mas a discussão é antiga”.

 

 

Apesar de suas personagens serem femininas, o entendimento do livro independe de sexo?

 

“Muitos homens me disseram, parafraseando Gustave Flaubert (em Madame Bovary), ‘a Mercedes sou eu’. Por que os questionamentos dela, sobre futuro de uma relação, se vale a pena manter a mesmice na vida, também podem ser relacionados aos homens. Acho que todo escritor é um andrógeno”.

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