Revista Encontro

Sabor tradicional

Vilã ou estrela? Por que a uva-passa ainda divide a ceia de Natal

Entre ódios e paixões, ingrediente virou símbolo das festas de fim de ano; professores de gastronomia explicam como paladar, cultura e memória moldam o debate

Da redação
Dezembro vem acompanhado de luzes, panetones, filas em shoppings e da já tradicional guerra declarada contra a uva-passa - Foto: Freepik
Vilã ou estrela da ceia? Poucos ingredientes despertam debates tão apaixonados quanto a uva-passa no Natal. Basta ela aparecer no arroz, na farofa ou no salpicão para dividir opiniões e transformar a mesa em arena gastronômica. Amada por uns, rejeitada por outros, a pequena fruta adocicada segue firme como protagonista involuntária do cardápio natalino brasileiro e, ao que tudo indica, não pretende se aposentar tão cedo.
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No Brasil, dezembro vem acompanhado de luzes, panetones, filas em shoppings e da já tradicional guerra declarada contra a uva-passa. Entre talheres erguidos em defesa e olhares de reprovação, o ingrediente continua marcando presença ano após ano, sustentando um debate que mistura paladar, memória afetiva e identidade cultural.
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Para o chef e professor de Gastronomia do Centro Universitário UniBH, Sinval Espírito Santo, a explicação para essa resistência está diretamente ligada à formação do gosto do brasileiro, especialmente do mineiro. “Em culinárias como a mineira, pratos que misturam doçura e sal são exceção, não regra. Assim, quando elementos como passas, maçãs, damascos ou castanhas invadem preparos tradicionalmente cotidianos ao longo do ano, entre eles o arroz, farofa e a salada de batata, o choque cultural é inevitável”. 
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Para o chef e professor de Gastronomia do Centro Universitário UniBH, Sinval Espírito Santo, a explicação para essa resistência à uva-passa está diretamente ligada à formação do gosto do brasileiro - Foto: Daniel Chico/DivulgaçãoSegundo o docente, o paladar não é construído de forma individual, mas social. Ele se forma a partir das referências familiares, dos hábitos domésticos e até de preconceitos culinários bastante comuns. Ainda segundo o professor, a construção do paladar é social, não individual. Memórias da casa, do modo de cozinhar da família e até preconceitos culinários como a crença de que “coentro é tempero exclusivo para o preparo de peixes” moldam a aceitação, ou não, da presença adocicada na comida de sal.  

Há também um componente regional. Em áreas com forte influência árabe ou sírio-libanesa, o uso de frutas secas em pratos salgados é mais naturalizado. Em outras mesas, porém, a uva-passa surge como uma visitante indesejada, aparecendo de surpresa no arroz ou brilhando em meio à maionese. Mesmo entre os críticos, o ingrediente já conquistou um lugar simbólico. “Eu não gosto da uva-passa no arroz ou no salpicão, mas acho que simbolicamente ela tem que estar ali. Representa o Natal. E, claro, existe ainda o aspecto estético-afetivo: alimentos considerados caros ou festivos reforçam a ideia de fartura e celebração do período. Pouco importa se alguém vai separar cada passa com o garfo”.
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Se a presença da fruta é quase inevitável, há caminhos para torná-la menos polêmica. A professora de Gastronomia do UniBH e produtora gastronômica Carol Haddad defende que o segredo está no equilíbrio de sabores. “Combinar a passa com ingredientes intensos, como queijos maturados, bacon, presunto cru ou caldos concentrados é uma boa estratégia. O sal quebra o doce e cria harmonia”.
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Outra técnica apontada pela especialista é o uso da acidez para suavizar o dulçor. “Deixar as passas de molho em vinho branco, rum ou água quente para torná-las macias e aromáticas também melhora tanto textura quanto sabor”. Já ingredientes como limão, vinagre de vinho ou raspas de laranja ajudam a trazer frescor e leveza aos pratos.
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Por outro lado, alguns erros ajudam a alimentar a fama negativa da fruta. O principal deles é o exagero. “Usar quantidade desproporcional ou concentrá-las em um só ponto do prato aumenta a rejeição”, afirma a professora. Combinar passas com preparos que já são naturalmente doces também costuma resultar em um sabor excessivo, até mesmo para quem aprecia o ingrediente.
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Para evitar conflitos à mesa, Carol sugere soluções diplomáticas. Uma delas é servir as passas à parte, em forma de molho ou chutney, permitindo que cada convidado decida se quer — ou não — incorporá-las ao prato. Outra alternativa é utilizá-las de forma discreta. “Picadas bem miúdas, incorporadas à farofa ou ao recheio, elas agregam sabor sem chamar tanta atenção”. Garantir opções sem frutas secas também ajuda a manter a paz natalina. “No fim, a uva-passa talvez não seja vilã nem estrela, mas um espelho das tradições, preferências e memórias que moldam o paladar do brasileiro. Enquanto houver ceia, haverá debate. E talvez seja exatamente isso que faça da pequena fruta um ingrediente tão gigante na cultura do nosso Natal. E convenhamos: o 25 de dezembro sem essa polêmica não teria a menor graça”, finaliza a docente.

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