Revista Encontro

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O Mindlin de Minas

João Pombo Barile
None - Foto: Eugênio GUrgel

Nem o próprio Amilcar Vianna Martins Filho poderia imaginar que aquela sua antiga paixão de colecionar livros antigos pudesse chegar tão longe. Quando, ainda no início dos anos 1970, o historiador mineiro começou a comprar alguns exemplares isolados de obras raras nos sebos da capital, era impossível prever que aquela sua pequena biblioteca se transformaria em um dos mais importantes acervos de cultura mineira do país. Uma coleção com 12 mil títulos e que, desde o final do ano passado, está disponível para pesquisadores e professores interessados na história e na cultura de Minas.

Instalada numa elegante casa de 500 metros quadrados na rua Ceará, no bairro Funcionários, a sede do Instituto Amilcar Martins (Icam) já se transformou em um dos principais centros de preservação e divulgação da cultura mineira: além da biblioteca, tem uma sala de obras raras, duas de consulta e um espaço para pesquisa com terminais de computadores. O espaço conta, ainda, com uma oficina de restauro e encadernação de livros e um auditório com capacidade para 40 pessoas. “O forte de nosso acervo é mesmo a Mineiriana, ou seja, a coleção sobre assuntos mineiros: economia, política, livros de memórias e literatura”, explica Amilcar. Com a nova sede do Icam, que antes funcionava no décimo nono andar do edifício Acaiaca, ele conta que quer contribuir para o estudo sistematizado da cultura do estado. “Queremos acabar com aquela história de os nossos pesquisadores serem obrigados a ir até as bibliotecas do Rio de Janeiro e de São Paulo para poder pesquisar a história de Minas”, afirma.



Amilcar se entusiasma quando começa a contar um pouco da formação de sua biblioteca, que teve início na juventude. Ele morava ainda na casa do pai, o parasitologista, médico sanitarista, professor da Faculdade de Medicina da UFMG durante 60 anos e pesquisador mineiro Amilcar Vianna Martins (1907-1990), que dá nome ao instituto.

“O início da coleção coincide com o início da minha graduação no curso de história na Fafich, em 1970”, rememora o ex-secretário de Cultura do estado.

“Naquela época de estudante, eu tinha dinheiro apenas para comprar livros sobre assuntos e temas mineiros disponíveis nos catálogos das editoras da época e que não eram exatamente raridades bibliográficas”, contextualiza. Entre algumas das primeiras aquisições desses anos, estão História Antiga e História Média de Minas Gerais, de Diogo de Vasconcellos, e As Minas Gerais, de Miran de Barros Latif.

Em 1975, com a ditadura correndo solta no país e o governo militar prendendo de forma arbitrária, Amilcar começa seu mestrado em Ciências Políticas, no Departamento de Ciências Políticas da UFMG, e amplia ainda mais sua coleção. Naqueles anos, ocorre, então, a aquisição das primeiras raridades bibliográficas, sobretudo as obras publicadas nas primeiras décadas do século XX. “Foi em meados dos anos 1970 que adquiri livros como os Anuários, de Nelson de Senna, Minas Gerais no XX Século, de Rodolfo Jacob, e Minas Gerais em 1925, de Victor da Silveira. Obras fundamentais para quem quer estudar a história de nossa formação”, conta Amilcar.

Mas seria mesmo o contato com o acervo das universidades dos EUA, nos anos 1980, que inocularia definitivamente o vírus do amor ao livro em Amilcar. Conhecidos mundialmente por terem as maiores (e melhores) bibliotecas do planeta, os norte-americanos acabariam ensinando a Amilcar a necessidade da formação de acervos. Uma ideia, aliás, até hoje muito pouco difundida no Brasil. “Só a Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, onde fiz o meu doutorado, contava, quando estudei lá, com um acervo de mais de 10 milhões de livros”, revela. “E olha que este era apenas o quinto maior acervo dos Estados Unidos.”

Para se ter uma ideia da diferença de número de volume das bibliotecas norte-americanas em comparação com as das terras tupiniquins, basta um exemplo: o maior acervo brasileiro, o da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, é hoje de aproximadamente dois milhões de exemplares. “O contato com a realidade da universidade norte-americana foi mesmo decisivo. Além de conhecer estas bibliotecas, mantive o contato com a obra de brasilianistas ingleses e norte-americanos, como Kenneth Maxwell, John Wirth, Russel-Wood e Charles Boxer. E me dei conta da necessidade de sistematizar nossas fontes primárias”, explica Amilcar. De volta ao Brasil, o historiador ampliaria ainda mais sua biblioteca, adquirindo obras de viajantes estrangeiros que estiveram em Minas no decorrer do século XIX, como John Mawe, Saint-Hilaire e Richard Burton.



 

Quem foi
Maior bibliófilo brasileiro e dono da Metal Leve, o empresário paulista José Ephim Mindlin (1914-2010) se dedicou com paixão aos livros, tanto que criou, a partir dos 45 mil volumes que colecionou ao longo da vida, uma das mais importantes bibliotecas particulares do Brasil, que começou quando Mindlin  tinha 13 anos e foi doada à USP em 2006.
A biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin está em fase de implantação no campus da universidade. Ela reúne o acervo do casal: literatura brasileira e portuguesa, relatos de viajantes, jornais, revistas, gravuras, originais tipográficos, entre outras raridades. Em 2007, ele visitou Belo Horizonte e se emocionou com a homenagem de Amílcar Martins à mulher do bibliófilo, Guita, nome da oficina de restauro e reparo de livros do Icam.





A partir de meados dos anos 1980, quando Amilcar se afastou da carreira acadêmica e passou a se dedicar à política, a coleção ganharia seu maior e decisivo impulso. Começava, então, a adquirir obras de referência bibliográfica, catálogos de importantes livrarias que negociam o acervo de escritores e bibliófilos. “Foi a partir daí que aumentei o meu contato com livreiros alfarrabistas do Brasil e do exterior. E que coleção deslanchou”, conta o intelectual que hoje está sempre de olho em leilões que acontecem em todo o mundo: seja em Lisboa ou Nova York, lá está Amilcar tentando adquirir mais uma obra.

O resultado de tanta dedicação não poderia ser melhor. No seu acervo, preciosidades que ajudam a contar a história de Minas (ver box). Além, é claro, de um acervo de literatura que impressiona, como as primeiras edições das obras de escritores como Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Só no mês passado, por exemplo, Amilcar conseguiu finalmente adquirir um exemplar da primeira edição de Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade. Raridade bibliográfica, já que o livro foi editado ainda quando o poeta de Itabira morava em Belo Horizonte em 1930 e teve tiragem muito reduzida.

“Nos últimos anos, o acervo teve um crescimento não só quantitativo da coleção, mas, sobretudo, qualitativo”, explica.

Importantes obras dos séculos XVIII e XIX, mapas, livros de memórias e de literatura brasileira moderna foram adquiridos.
Ainda segundo o historiador, se antes sua coleção se concentrava em livros de história em geral, agora seu foco está voltado para temas e assuntos mineiros. “A partir de 2001, quando criei efetivamente o Icam, estabelecemos uma política de acervo voltada para a formação de duas coleções: um acervo de raridades bibliográficas e um acervo voltado para publicações correntes – tendo, como característica, ser uma coleção voltada para temas e assuntos correlatos a Minas Gerais. E, claro, sempre preocupado na preservação bibliográfica e no desenvolvimento de pesquisas a partir deste material”.

Este amor aos livros já fez com que alguns amigos mais chegados de Amilcar o apelidassem carinhosamente de o “José Mindlin das Gerais”. Amilcar, que foi amigo do maior bibliófilo da história do Brasil, gosta da comparação. “Ele é mesmo uma grande referência para mim. Esteve aqui em 2007, na inauguração da nossa oficina de restauro e reparo de livros. E que, aliás, leva o nome de sua mulher, dona Guida Mindlin”, finaliza o historiador.
 

Algumas joias do acervo

Século XVIII

Aureo Throno Episcopal Collocado nas Minas do Ouro, ou Noticia Breve da Creação do Novo Bispado Marianense, da sua Felicissima Posse, de 1749

Triunfo Eucharistico – Exemplar da christandade lusitana em pública exaltação da fé na solemne transladação do diviníssimo Sacramento da Igreja da Senhora do Rosário, para um novo templo da Senhora do Pilar em Villa Rica, côrte da capitania das Minas

Lisboa Occidental: Officina da Musica, debaixo da proteção dos Patriarcas São Domingos, e São Francisco, de 1734

Prodigiosa Lagoa Descoberta nas Congonhas das Minas do Sabará, que tem curado a várias pessoas dos achaques, que nesta relação se expõem, de 1749

O Uraguay: poema de José Basílio da Gama, de 1769

Caramuru. Poema epico do descubrimento da Bahia, de José de Santa Rita Durão, de 1781 Obras, de Cláudio Manoel da Costa, de 1768 Marilia de Dirceo, de Thomaz Antonio Gonzaga, 1799

Século XIX

Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, 1ª ed., de 1875

A Capital, de Avelino Fóscolo, de 1893

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