Revista Encontro

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Para não deixar a peteca cair

Luiz E. S. Ruivo
None - Foto: Geraldo Goulart

Tal como as curvas da Serra do Curral ou a arquitetura modernista da Pampulha, a peteca é uma marca de Belo Horizonte. Nos últimos cinco séculos, a pe'teka — nome que em tupi quer dizer bater, golpear com a mão — dos índios se modernizou e se disseminou pelo território nacional, mas só foi se popularizar mesmo na capital mineira, onde ganhou status de esporte, na década de 1970.

Mas é justamente em seu principal reduto que a peteca vive um flagrante declínio, com perda de adeptos e dificuldades de renovação. É fato: a peteca, que movimentava os clubes sociais e chegou a mobilizar milhares de belo-horizontinos em torneios abertos nos anos 1980 e 1990, caiu em BH.

Não há dados confiáveis, mas o número de praticantes sofreu forte diminuição nos últimos anos na cidade. O fenômeno está relacionado a um conjunto de fatores, como o esvaziamento dos clubes sociais, a perda da atratividade do esporte entre os jovens e a inexistência de novos espaços públicos como o antigo Campo do Lazer (onde hoje é o shopping DiamondMall), que, nas décadas passadas, impulsionou torneios de grande participação popular.

“Houve uma mudança muito grande: os clubes se esvaziaram e nós estamos passando por dificuldades no desenvolvimento e renovação do esporte”, admite Márcio Alves Pedrosa, presidente da Confederação Brasileira de Peteca (CBPeteca). Morador do bairro Itapoã, na zona norte da capital, Pedrosa já presidiu a precursora Federação Mineira de Peteca (Fempe) e reconhece que, de uns anos para cá, o esporte tem encontrado terreno fértil para crescimento justamente em outros estados. Sem ter, porém, o mesmo apelo popular.

No período áureo, a Federação Mineira contabilizou 3,2 mil atletas cadastrados, mas o que chama a atenção no momento é a diminuição dos clubes filiados. A entidade, conforme Renato Machado dos Santos, diretor de relações institucionais, chegou a ter em seus quadros cerca de 60 clubes do estado. Hoje são 20, sendo apenas 10 de BH.

O fenômeno está ligado à renovação entre os petequeiros.

Ou melhor, à falta dela. “Hoje, a meninada está indo mais para o tênis, para as escolinhas de vôlei. E a peteca virou esporte apenas de coroa”, atesta Antônio Moacir Coelho, de 70 anos, há 50 sócio do Minas Tênis Clube. Ele mantém-se fiel ao esporte e frequenta todos os dias o clube. Na rotina diária do empresário – é dono de uma rede de lanchonetes –, o horário entre 12h e 14h é reservado à peteca. Moacir Coelho lembra que a turma de petequeiros do Minas já foi muito grande, mas muitos pararam de jogar e os “jovens” praticantes hoje estão na faixa dos 30 aos 40 anos.

Culturalmente, a peteca sempre oscilou entre a brincadeira e a prática esportiva. Antes mesmo da invenção do frescobol, já era uma atividade praiana, comum na zona sul carioca. Conta-se que, em 1920, durante a V Olimpíada moderna, em Antuérpia, na Bélgica, a delegação brasileira levou na bagagem petecas que eram utilizadas para o aquecimento dos atletas da natação. Os estrangeiros ficaram curiosos, cobraram insistentemente explicações sobre as regras do jogo e deixaram constrangido o então chefe da delegação nacional, José Maria Castelo Branco. Simplesmente não havia regras, pois os próprios brasileiros não consideravam que a recreação tinha potencial esportivo.

Na mesma época, a peteca começou a ser jogada em Belo Horizonte, numa propriedade nas imediações da então jovem capital do estado. Ainda nos anos 1940, a prática deslanchou nos pioneiros clubes sociais da cidade, projetando o futuro esporte, que só seria reconhecido como tal quatro décadas depois, em agosto de 1985, pelo Conselho Nacional de Desportos, atendendo solicitação da Fempe, criada dez anos antes. O jogo ultrapassou as fronteiras de Minas e atualmente é praticado também no Distrito Federal e estados como Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Rondônia. Em nenhuma dessas praças, porém, a peteca alcançou a mesma dimensão popular verificada em Minas e, sobretudo, em BH.

A Confederação Brasileira foi criada somente no apagar do século XX, no ano de 2000.
A entidade já chegou a calcular em aproximadamente 100 mil o número de praticantes no país, mas Pedrosa prefere não arriscar nenhuma estimativa.
A oferta de novas opções de lazer e o surgimento dos condomínios residenciais também contribuíram para o esvaziamento dos clubes sociais em BH nos últimos anos. “Muitos clubes deixaram de investir naquele que vai ser cotista no futuro. O menino prefere ficar em casa jogando videogame”, destaca Renato, da Federação Mineira, apontando a falta de quadras especiais, com dimensão e altura  adequadas. E isso faz diferença. A escola é o local de propagação da peteca, que é um esporte mineiro e brasileiro”, argumenta. “Falta, de certa forma, entender a importância da peteca. Não é um esporte somente. É também uma prática cultural”.

O declínio popular e a consequente falta de renovação ocorrem não por acaso, depois que o antigo Campo do Lazer deu lugar ao DiamondMall, inaugurado em 1996. Na década anterior, a abertura do complexo de quadras e lazer impulsionou a prática até então restrita aos clubes. Foi a partir daí que surgiram os grandes torneios, como a Copa Itaú, com até 5 mil participantes.

Autor da primeira dissertação sobre o esporte – A peteca, o Campo do Lazer e a dinâmica urbana de Belo Horizonte (1980-1994) –, o diretor da Fempe salienta que, em 1987, o número de jovens participantes só era inferior ao grupo de 30 a 40 anos.
“Os jovens começaram a jogar, e isso foi muito bacana”, lembra. “Com o fechamento do Campo do Lazer, a coisa foi freando”.

Na opinião de um dos ícones da peteca nacional, Cícero Cerqueira, o Cicinho, de 67 anos, a peteca ainda pode viver uma retomada na capital. Cicinho é autor do livro Peteca: Esporte ou Recreação? e formulador das principais regras do jogo. Conselheiro do Minas e atleta emérito desde 1975, ele não se resigna com o atual momento. No ano passado, chegou a propor à Secretaria Municipal de Esportes a realização de um grande torneio no Parque das Mangabeiras. Propostas como essa, porém, costumam esbarrar sempre na falta de patrocínios.

Para Cicinho, falta também iniciativa aos atuais dirigentes. “Os caras não têm poder de fogo”, reclama o famoso petequeiro, que já presidiu a Fempe e chegou a criar uma Liga Mineira no fim dos anos 1990. Cicinho e outros contemporâneos ajudaram a divulgar a peteca não só no Brasil, mas também no exterior.

Ainda não existem competições internacionais, mas, conforme a Fempe, a peteca já é praticada em vários outros países, com destaque para França e Itália, onde há milhares de adeptos. “Lá, está começando. Aqui, acabando”, resmunga Moacir Coelho. “A gente não pode deixar nossa tradição morrer.”

O débâcle do esporte na capital ainda não ameaça a hegemonia dos mineiros em competições de âmbito nacional. Mas já há quem note que estados como São Paulo estão avançando nas categorias iniciais, para adolescentes. Para dar visibilidade ao esporte, a CBPeteca passou a realizar as etapas da Liga Brasileira em arenas montadas dentro de shopping centers. Nos dias que antecedem a competição, são organizadas oficinas para estudantes do ensino médio e fundamental. A 2ª etapa da 4ª edição do torneio será realizada de 20 a 22 de maio em Belo Horizonte, no Minas Shopping.

 “Optamos por shoppings com o objetivo de mostrar, divulgar a peteca para quem não conhece, incentivando a prática. E também incentivando aquele atleta de ponta a se manter no esporte”, resume Pedrosa. A onda que fez da peteca um esporte popular gerou oportunidades de negócio para alguns mineiros com visão empreendedora. Aparício Ribeiro Filho, hoje com 75 anos, bem que gostava de dar suas rebatidas em Bonfim, a 82 quilômetros da capital.

Como nos anos 1970 a prática já começava a se tornar uma febre em BH, as petecas de recreação na época sumiram das prateleiras. Aparício, então, passou a fabricar o material para uso próprio. Quando percebeu, já estava comercializando, e em 1980 fundou a Bonfim Sports, fábrica pioneira na produção industrial de petecas. Surgiu então a peteca nos moldes que conhecemos atualmente: pesando cerca de 41 gramas, com penas de peru de cor branca, cuja base é composta por discos de borracha num suporte de plástico.

“Hoje fabricamos 20 mil petecas oficiais e 8 mil petecas lazer por mês. Atualmente, vendemos mais para o interior de Minas e um pouco para o Rio de Janeiro e São Paulo”, afirma Kleber Ribeiro, de 40 anos e filho de Aparício. Kleber comanda a empresa, cuja produção se expandiu para uma linha de mais de 200 itens esportivos. O fim dos grandes torneios em BH arrefeceu a comercialização da peteca. “As pessoas se desmotivaram; com isso, não há muita renovação de jogadores”, constata Ribeiro. “O maior motivo é que os jovens hoje procuram esportes que têm mais mídia, premiações, e esportes que possam até a ser uma profissão. Isso não ocorre na peteca.”

Experiência semelhante vive Lúcio Mário Mesquita, 48 anos, sócio-proprietário da Pequita, fábrica que inaugurou há 28 anos em Belo Horizonte. “Já cheguei a fabricar até mil petecas num dia. Hoje não passa de 400”, conta Mesquita. Mesmo com queda no consumo em BH – a produção destinada à capital e ao interior caiu nos últimos anos mais de 50% – surgiram, por outro lado, novos mercados no Brasil e no exterior. O empresário já vendeu petecas para 10 países. Somente para França, exportou 10 mil petecas em 2010.

A Bonfim também exporta regularmente para Estados Unidos e Alemanha. “Graças à peteca, hoje nossa empresa fabrica mais de 200 produtos e ainda construímos quadras. Temos muito que agradecer e respeitar esse esporte”, diz Kleber. Ele, contudo, confessa ser um ex-petequeiro: “Joguei durante 15 anos, de segunda a sexta”, afirma. “Hoje, não jogo mais”.

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