Revista Encontro

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Valeu, mestre Zé Alencar!

Patrus Ananias
None - Foto: Paulo de Araújo/CBJ/D.A. Press

Conheci José Alencar Gomes da Silva, nosso tão mineiro Zé Alencar, nas eleições para a Prefeitura de Belo Horizonte, em 1992. Havia naquela época uma forte desconfiança recíproca entre amplos setores empresariais e o PT. Zé Alencar, então presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), abriu as portas da entidade para dois debates com os candidatos a prefeito da capital, no primeiro e segundo turnos. Pude, então, expor o nosso programa de governo e as nossas prioridades de ação para importantes lideranças do empresariado de Belo Horizonte e de Minas Gerais.

Sem escamotear diferenças que constituem a essência da democracia, descobrimos muitas convergências e afinidades, espaços de cooperação e parcerias. Ele era um construtor de consensos e possibilidades. Anunciava ali, dez anos antes, a grande aliança entre o trabalho e o capital que ele viria a patrocinar com Lula no plano nacional em 2002.

Eleito prefeito, tive o prazer de recebê-lo várias vezes para conversarmos sobre temas voltados para o interesse público e o bem comum. Com ele, aprendi muito sobre a dimensão social da empresa e a sua participação na economia nacional. Descobrimos temas e interesses comuns.

Eu com as minhas origens sertanejas bocaiuvenses; ele chegara ao Norte de Minas, a Montes Claros, impulsionado pela sua vocação de empresário bandeirante pioneiro profundamente convencido das possibilidades de Minas e do Brasil.

Estendemo-nos, naquelas boas conversas sertanejas, as mãos da amizade. Esta se consolidou e ganhou as dimensões mais amplas quando nos encontramos em Brasília, no governo Lula. 2004, ano da implantação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, foi muito difícil e decisivo, pois tínhamos de construir as condições para firmar o projeto de integração das políticas sociais. Nesse período conturbado, ele foi um grande parceiro que compreendeu rapidamente o alcance humano, social, patriótico, também econômico, das políticas públicas sociais.

Aquele 2004 foi mesmo um ano de muita peleja. Em julho meu pai faleceu em Bocaiúva. O nosso vice-presidente, mesmo ocupando interinamente a presidência naqueles dias, não teve dúvidas e se deslocou até Bocaiúva. Fiquei emocionado quando o vi, adentrando a velha casa de meus pais. Quando lhe perguntei o tempo de sua visita, respondeu-me com enternecida firmeza: “Vim para, junto com você e sua família, levar seu pai à sepultura”. Caminhou conosco a boa distância até o cemitério. Ouviu sereno, atento, o longo, quase interminável discurso que fiz na despedida do velho Jair Ananias.

Dias após, fui visitá-lo para agradecer a presença íntegra e generosa. Disse a ele que a nossa amizade estava definitivamente selada e que as minhas pernas jamais caminhariam num sentido que não fossem os caminhos por ele escolhidos. Ele sorriu e disse-me que a recíproca era verdadeira. Estaríamos sempre juntos, pactuamos.
Era uma beleza estar com ele.
Eu gostava de chamá-lo de mestre, mestre Zé, lembrando o Riobaldo de Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sabe, mas quem de repente aprende”. Ele vivia ensinando e aprendendo. Mestre Zé Alencar gostava das pessoas e da grande e boa prosa do mundo. Era um exímio contador de causos ancorado na memória poderosa. O sorriso bom, franco, expansivo, acolhedor, vencia barreiras e preconceitos. A escuta atenta. O olhar vivo, indagador, pleno de luz. Amava a vida. Quebrava protocolos. Nunca vestiu o lugar dos altos cargos que ocupou.
Levava para os cargos a sua forte e espontânea maneira de ser, o admirável jeito mineiro que sempre o acompanhou.

Gostava de celebrar encontros e bons acontecimentos com o bom “golo” partilhado com os amigos na medida, na hora e no lugar certos. Se os encontros não podiam ser diretos, usava o telefone. Tancredo Neves, desconfiado, dizia que telefone era só para marcar os encontros. Mestre Alencar, não. Conversava minutos alentados, horas, se necessário. Não se preocupava com eventuais escutas.

A luta que travou pela vida ia além da sua profícua vida pessoal; era uma luta pela vida no sentido mais alargado da palavra disseminadora. Um dia, na saída do hospital, deu a declaração síntese de seus sentimentos e convicções: agradeceu o cuidado e a competência dos médicos, enfermeiros, trabalhadores do hospital, o carinho das pessoas. Manifestou uma única tristeza: nem todos os brasileiros podiam ter o tratamento que ele estava recebendo.

O seu gosto pela vida não era para si mesmo, era com, para e pelos outros. Gostava da política e das campanhas eleitorais pelo prazer da convivência, além, é claro, dos compromissos com Minas e o Brasil. Prezava o contato direto, desarmado, com o povo, os pobres, os humildes. Tinha paixão pelo Brasil e pela nossa gente. Ele expressava o que havia de melhor nessa brava gente. Cresceu com o país. Nunca se esqueceu de suas origens populares, as suas profundas raízes mineiras onde buscava a seiva forte da sua personalidade rica e singular. Era um bravo.

Confrontou a morte com grandeza porque aprendera antes, muito antes, a confrontar a vida e a dar-lhe o devido valor. Não se intimidava. Superou as tentações, onde tantos esbarram, da arrogância e da subserviência. Tinha uma serena e acolhedora autoestima. Tratava com respeito todas as pessoas. Alegre, bem humorado, avesso aos excessos do formalismo, levava, todavia, a vida muito a sério. A sua e a dos outros. Deixou, assim, um legado permanente. Nós, que convivemos com ele, temos o dever de nos tornarmos sempre, e cada vez mais, melhores. Ele se construiu e se lapidou com o tempo. Vamos seguir o seu exemplo para garantir a sua permanência entre nós. Sempre convocando e respondendo em nome do grande companheiro Zé Alencar: presente!








* Patrus Ananias é advogado, professor e pesquisador. Foi prefeito de BH e ministro do Desenvolvimento Social. Escrevemensalmente na Encontro

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