Revista Encontro

None

A cor e a cara de uma cidade chamada IAPI

Luiz E. S. Ruivo
None - Foto: Bernadete Amado, Geraldo Goulart, Samuel Aguiar/O Tempo, Cláudio Cunha e Divulgação

Fruto da visão modernista do então prefeito Juscelino Kubitschek, ainda na primeira metade do século passado a capital mineira ganhou um conjunto residencial que até hoje abriga uma população maior do que a de 162 municípios do estado. Construído no caminho para o então recém inaugurado complexo arquitetônico da Pampulha, na década de 1940, o Conjunto IAPI (Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários), no bairro São Cristóvão, não ficou imune à deterioração social de sua vizinhança, na região noroeste da capital.

 

O conjunto vertical que refletia a crescente industrialização da cidade perdeu nas últimas décadas seu charme, desbotou e passou a se confundir com a paisagem degradada de seu entorno. O velho IAPI só voltou a ganhar visibilidade recentemente.

 

A boa notícia é que uma parceria entre empresas privadas, a prefeitura municipal e a associação comunitária do conjunto vai jogar luz, ou melhor, cor, no opaco e degastado complexo de nove prédios, onde atualmente moram 5,4 mil moradores. Além de nova pintura, as fachadas dos edifícios e os espaços comuns do conjunto serão revitalizados.

 

Ferrucio,93 anos, e Terezinha Zanone, 85, o casal mais antigo do IAPI: “Muita gente sai mas acaba voltando”, diz Ferrucio

 

Pode-se dizer que o reconhecimento da importância do IAPI para a história de Belo Horizonte teve início em 2007, quando o conjunto de prédios foi tombado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do município. A duplicação da avenida Antônio Carlos também trouxe alento para a revitalização da região.

 

O interessante é que nesses quase 65 anos de vida, enquanto a cidade se tornou uma metrópole de grande porte, o IAPI acompanhou o crescimento, mas ao mesmo tempo conservou características típicas de localidades do interior.

 

Terezinha Ribeiro Zanone, de 85 anos, ainda compara o conjunto à pequena Lavras de sua infância. Ela mudou-se para o IAPI em 1952 e forma com o marido, Ferrucio Zanone, de 93 anos, o casal mais antigo do conjunto. “Hoje aqui já é uma pequena cidade”, conta a advogada aposentada. “Quando vim para cá, naquela época, uma vizinha era a mesma coisa que uma pessoa da família.

Hoje, continua a relação de amizade, mas tem muito mais gente.”

 

José Antônio Mendonça (em pé), dono do bar do complexo, famoso pelo truco dos sábados à tarde: “Nunca fui roubado”

 

Após fazer sua tradicional caminhada em torno dos prédios, Ferrucio entra na conversa para concordar com a esposa. “Os ex-moradores não aguentam ficar fora. Muita gente que foi embora achando que aqui era um lugar inconveniente acabou voltando”, observa o aposentado.

 

De fato, não é difícil encontrar moradores que viveram essa situação. A promotora de eventos Kátia de Oliveira Santos, de 54 anos, nasceu no IAPI e deixou o conjunto após se casar. O matrimônio terminou e ela não teve dúvidas: voltou a morar no apartamento que divide com a mãe, de 81 anos. “Não tem lugar melhor para morar”, diz. “A gente quer mostrar o outro lado do conjunto. Aqui tem empresário, pós-graduado, profissional liberal.”

 

Antigos moradores também são presença constante no IAPI. Apelidados de “dinos”, eles costumam “bater ponto” nos fins de semana, principalmente nos sábados à tarde, quando o truco “ferve” no tradicional Bar do Mendonça.

 

Provavelmente o mais famoso deles não frequenta mais o conjunto, mas ressalta que só tem ótimas recordações. “Foi onde passei minha infância, uma infância gostosa, divertida, saudável. Saí de lá cedo, com 12 anos, mas a lembrança que tenho é a melhor possível”, comentou o tricampeão mundial Eduardo Gonçalves de Andrade, o Tostão, de 64 anos. “Aquilo faz parte da história de Belo Horizonte. É um lugar que merece ser revitalizado.”

 

Eduardo Gonçalves, o Tostão, morador mais famoso: “Saí cedo, aos 12 anos, mas tenho a melhor lembrança possível”

 

Foi no antigo campinho de terra e em quadras de cimento do IAPI que Tostão teve seu primeiro contato com a bola.

“Tinha competições. Era um lugar ideal para uma criança morar. Tive a sorte de passar a minha infância num lugar tão enriquecedor.”

 

Ao idealizar o IAPI, a intenção de JK era ordenar o antigo “bairro Popular”, como era conhecido o São Cristóvão, e criar alternativas para o problema de moradia da jovem capital. O conjunto foi inaugurado duas vezes, mesmo antes do término das obras: nos dias 1º de maio de 1947 e de 1948. Mas os moradores só puderam se mudar para os prédios três anos depois. O projeto do arquiteto White Lírio Martins foi o primeiro empreendimento a usar blocos verticais na cidade, e chamava a atenção pelas passagens entre os edifícios para permitir a circulação entre eles.
Com uma área total construída de aproximadamente 80 mil metros quadrados, o IAPI nunca funcionou como os condomínios modernos. A tradicional paróquia de São Cristóvão integra o conjunto e o toque do sino a cada 15 minutos reforça a impressão de cidade pequena.

 

 

Uma ideia que permeava a própria juventude da capital. Na década de 1960, conta o publicitário Cresio Campos, os jovens “transviados” da zona sul desciam com suas lambretas até o IAPI para namorar as meninas do conjunto. Mesmo assim, a convivência com as “turmas” do complexo era pacífica.

 

Embora garanta que até hoje os casos de violência são raríssimos no interior do IAPI, a Associação Comunitária dos Moradores prepara um projeto para que o conjunto receba cancelas e portarias. A ideia é restringir o acesso durante a noite.

“É um ambiente bem familiar entre os moradores. O que ‘queima’ a gente é a vizinhança”, reclama a promotora Kátia, referindo-se à conhecida ‘cracolândia’ nas imediações.

 

Kátia Santos nasceu no IAPI, deixou o conjunto e voltou para morar com a mãe de 81 anos: “Aqui tem empresário, pós-graduado, profissional liberal”

 

Para o presidente da Associação Comunitária, Carlos Alberto Pinheiro Júnior, o Juninho – outro criado e nascido no IAPI –, o conjunto, no entanto, conseguiu, ao longo das últimas décadas, manter-se como uma ilha de tranquilidade. “Somos mesmo como uma cidade do interior. Todo mundo conhece todo mundo”, afirma.

 

José Antônio Mendonça, o dono do bar, morou 32 anos no conjunto antes de se mudar. Nesse período, incontáveis vezes foi acordado de madrugada por um vizinho que precisava de um leite ou outro produto do estabelecimento. “Antigamente a gente dormia de janela aberta. Nunca fui roubado”, destaca o comerciante de 56 anos. “Hoje sou ex-morador, mas vivo aqui, só não durmo.”

 

Após 30 anos, tinta!

 

Um sonho que será finalmente realizado. Esta é a sensação mais comum entre os moradores do IAPI após a assinatura do convênio e o início das obras de revitalização e pintura do conjunto. Uma festa, no começo de maio, marcou o pontapé inicial do projeto, quando jatos d’água foram lançados sobre as paredes encardidas e vidraças do prédio 5. A última vez que os edifícios tombados viram uma tinta superficial foi há quase 30 anos, destacou o coordenador do projeto, Júlio Gomes, proprietário da Casa & Tinta e presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Maquinismos, Ferragens, Tintas e Material de Construção de BH (Sindimaco).

 

O empreendimento é o primeiro contemplado pelo programa Adote um bem cultural, da Fundação Municipal de Cultura (FMC), cujo objetivo é incentivar a restauração de prédios tombados. O custo total é estimado em R$ 700 mil. Uma pesquisa prévia mostrou que não bastava pintar, já que as fachadas dos prédios estavam muito estragadas.

 

Gomes diz que também está realizando um sonho pessoal. “O IAPI sempre chamou muito a minha atenção. É um marco construtivo da sua época, idealizado por JK. Um conjunto habitacional com aquelas características é realmente surpreendente”, destaca o empresário e presidente do Sindimaco.

 

Os prédios vão receber tons variando do ouro aos ferrosos. Foi uma forma de homenagear as riquezas do estado, observou Gomes. O IAPI possui cinco tipos de apartamentos, que variam de 90 a 120 metros quadrados. A Associação Comunitária avalia que, de imediato, os imóveis revitalizados ficarão até 25% mais valorizados.

 

O presidente da entidade comemora o fato de a revitalização ocorrer logo após a duplicação da Antônio Carlos. “Foi uma batalha, mas o projeto ocorre num momento muito bom”, destacou Juninho. “À medida que a avenida Antônio Carlos foi sendo revitalizada, o IAPI começou a desabrochar”, observou Gomes. “Tenho a visão de que as cores são fundamentais, elas dão vida à cidade.”

 

O empresário não arrisca nenhuma estimativa e diz que ainda está sendo levantado o volume de tinta necessário para a pintura das fachadas dos prédios, igreja, praça e quadra de esportes do conjunto. A parceria envolve prefeitura, a Associação Comunitária dos Moradores do IAPI, a AkzoNobel – responsável pelas Tintas Coral –, o Sindimaco e seis construtoras: MRV Engenharia, Grupo Orguel, Direcional, Patrimar, PHV e EPO Engenharia. “É um privilégio participar dessa restauração”, diz Rubens Menin, presidente da MRV.

.