Revista Encontro

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Os doutores do atraso

André Lamounier

O espaço que você está lendo, chamado editorial, é destinado a apresentar para o leitor os destaques da edição que se segue.

Peço licença, contudo, para discutir outro tema que não consta desta pauta, por considerá-lo absolutamente relevante. A mais recente pesquisa sobre educação divulgada pelo IBGE, nos últimos dias, mostra que a parcela da população com curso superior ganha, em média, salário 225% maior do que aqueles que não concluíram a faculdade. Parece óbvio. Mas, aparentemente, não para o ministério da Educação. O órgão, que deveria zelar pela qualidade da educação no Brasil, está patrocinando a publicação de livros de português que admitem como corretas, entre outras aberrações, expressões do tipo “nós vai pescar”. A principal obra desta barbaridade chama-se Por uma Vida Melhor, que tem como uma de suas autoras uma tal de Heloísa Ramos, segundo quem seria correto falar “os livro”. “Trata-se de uma variação popular”, tem afirmado ela.
A infeliz ideia parte da tese segundo a qual exigir a língua culta é uma forma de dominação das elites, e que na língua portuguesa não existe certo ou errado, mas sim várias maneiras de expressar-se. Tolher expressões como as acima seria, segundo os defensores dessa barbaridade, ato de “preconceito linguístico”.

 

Quanto absurdo! O pior é que esta tolice está sendo disseminada nas escolas de pedagogia pelo país afora. Aceitar esse material didático – se é que podemos chamar isso de “didático” – é um desserviço para os inúmeros jovens brasileiros com menor poder aquisitivo, sedentos por conhecimentos e crentes de que, através desse conhecimento, conseguirão romper os limites em que vivem. Pais e educadores, alerta: o livro já foi adotado por diversas escolas públicas e privadas, e já alcança quase meio milhão de alunos no país. Falar direito, corretamente, só traz vantagens. Desprezar isso é querer subjugar as pessoas. No passado, durante os chamados “anos de chumbo” da ditadura militar, se dizia que havia em curso no Brasil um estratagema para manter uma legião de brasileiros na ignorância, como cidadãos de segunda classe. Assim, eram mais cooptáveis. É isso o que vai acontecer se medidas como essa prosperarem. Vamos, seguramente, criar dois tipos de cidadãos: os ricos e instruídos, e os relegados ao desconhecimento gramatical. Criaremos uma espécie de “apartheid linguístico”, como diz o ex-ministro da Educação, Cristovam Buarque. A língua deve ser instrumento de integração de um povo, não de segregação. Compreender que a língua evolui, porque é um organismo vivo, e aceitar gírias e formas modernas de expressão, é uma coisa.

Outra é validar a ignorância. O pior é que tudo isso está sendo pago com dinheiro público, de nós, brasileiros, que pagamos impostos, para os doutores do atraso.

 

Sou filho de socióloga e ex-professora universitária. Nasci, portanto, em ambiente de incentivo à leitura e às letras. Por isso, seguramente, tornei-me jornalista. Recuso-me a acreditar que uma cartilha dessas ajudará a formar bons profissionais. Todo cidadão sabe, por mais iletrado que seja, que no mundo em que vivemos o sucesso profissional depende cada vez mais do conhecimento.

 

O fato de o ex-presidente Lula não ter tido oportunidade de estudar e, em consequência, falar errado, não pode ser entendido por tecnocratas do governo como modelo a ser seguido. Lula é uma exceção, um líder cujo carisma e talento foram capazes de fazer frente à falta de estudo. Ou reagimos a isso, ou estamos condenados a ouvir de nossos filhos amanhã: “Nós não foi a lugar nenhum”.

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