Revista Encontro

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Isto, sim, é arte!

Marcelo Fiuza
None - Foto: Cláudio Cunha e Geraldo Goulart

Encontrados em paredes de Roma com mais de 2 mil anos, os grafites estão hoje em qualquer metrópole do mundo. De simples assinaturas estilizadas a elaborados e coloridos desenhos, passando por palavras de ordem e protesto, o fenômeno desde sempre suscitou a mesma discussão: é arte ou mera contravenção? No Brasil, pichação é vandalismo, crime ambiental e dá cadeia.

 

Em Belo Horizonte, onde há polícia especializada no delito e campanhas de conscientização e respeito às paredes públicas, desde 1989 a prefeitura percebeu a necessidade de abrir um diálogo com esses artistas de rua e criou o Projeto Guernica. E depois de 11 anos de atuação regular do programa de formação artística de jovens interessados na escrita dos muros, a cidade é hoje cenário de verdadeiras obras. Formou-se uma geração de grafiteiros reconhecida internacionalmente e seus trabalhos estão aí, por vezes revitalizando áreas degradadas, em outros casos indignando o espectador, mas quase sempre embelezando a paisagem urbana. Basta procurar.

 

Mateus Aminadab: ele começou aos 14 anos e aos 30 vive do trabalho com o grafite
 

 

Alguns spots (locais onde o grafiteiro pinta) contam com permissão oficial, como as intervenções nos viadutos da avenida Antônio Carlos nos cruzamentos com a avenida Américo Vespúcio e o Anel Rodoviário, feitas por alunos do Guernica. “A intervenção tem de ser feita com responsabilidade, refletir sobre a articulação com o entorno e qual é a sua intenção”, ensina José Marcius Carvalho Valle, coordenador do projeto desenvolvido em parceria com a Amas (Associação Municipal de Assistência Social). “Diante da questão da pichação, percebemos que aquela escrita tinha memória e conteúdo e que incomodava. Havia uma demanda pelo grafite e criamos, então, as oficinas.

Damos aulas de história da arte e da cidade, de nanquim e de desenho. O spray é uma exceção”, completa Valle.

 

Grafiteiro e atual professor do projeto, Luzimar Lopes Andrade, o Ba, acompanhou a evolução estética da arte de muro na capital e percebe certa mudança no discurso ao longo da década: “O grafite hoje caminha independentemente de outros movimentos, até do próprio hip hop que o diferenciou. O que se busca é a autoafirmação como grafiteiro, a identificação do ‘eu’ artista”, conta.

 

"Mudou bastante o cenário, melhorou a perspectiva dos grafiteiros em conquistar o espaço no cenário mundial”, continua o instrutor, que destaca grafiteiros como Ramon Martins, Hyper e Dalata. “São nomes conhecidos lá fora. O Ramon expõe na França, hoje vem a BH a pedidos e já pintou as paredes do Xodó da praça da Liberdade. O Hyber trabalha com cibergrafite e o Dalata faz intervenções muito originais. Esses dois trabalham em locais muito degradados e são os caras do momento, estão vivenciando a fama”, diz, sobre a dupla cujo trabalho realmente impressionante pode ser conferido sob o viaduto de Santa Teresa.

 

Luzimar Lopes Andrade, o Ba, do Projeto Guernica: “O grafite hoje caminha independentemente de outros movimentos”
 

 

Coordenador de comunicação da 1ª Bienal de Graffiti de Belo Horizonte, em 2008, Mateus Santana aponta a internet como fator decisivo para a popularização do grafite. “Hoje vejo que há os precursores, que já trabalham há algum tempo, e tem a segunda geração de artistas, que teve mais acesso a ferramentas, informações, e que passou pelo meio acadêmico. Surgiu, então, um grafiteiro mais próximo do cotidiano de artista plástico, que curte fazer intervenção urbana”, diz. 
Santana sugere como exemplo dessa arte os muros de uma mansão na esquina das ruas Conde de Linhares e Carvalho de Almeida, no bairro Cidade Jardim. “É uma casa sensacional, remanescente da bienal de 2008. Foi toda ocupada. Trabalhos de 50 grafiteiros ocupam praticamente um quarteirão de fachada externa. É uma espécie de mural em movimento, vai ganhando novos detalhes, as pessoas continuam trabalhando”, conta o coordenador, que pretende realizar a segunda edição do evento internacional ainda no segundo semestre de 2011.

 

“O grafite em BH é cada vez mais valorizado por seus valores estéticos. Tem reconhecimento da crítica, do meio artístico e acadêmico. Já tem espaço na galeria e o artista grafiteiro está se colocando em vários segmentos, como o design, a moda, nos interiores das casas, e trabalhando com iniciativas de cunho institucional.

O grafiteiro hoje, mesmo com um processo autoral, já começa a ganhar dinheiro e a viver da arte”, completa Santana.

 

Painel de Ramon Martins no Xodó: nome conhecido no exterior, o artista costuma vir a BH a convite
 

 

É o caso, por exemplo, do belo-horizontino André Luiz Muniz Gonzaga. Mais conhecido como o writer Dalata, ele já expôs seu trabalho até em Roterdã, na Holanda, e, autodidata, atualmente tira o sustento do que produz em seu próprio ateliê. A pichação ficou no passado, mas com uma lata de spray na mão desde 1997, Gonzaga diz que o grafite é, antes de tudo, “atitude”. Por isso mesmo, vê com ressalvas algumas das expressões mais recentes na paisagem urbana da capital. “Acho que hoje está tudo muito banalizado. Se você entrar numa faculdade de belas artes, todo mundo diz que faz grafite. Virou moda. O cara não faz mais pela vontade de se expressar, mas para aparecer”, diz o artista, que tem como proposta as intervenções em lugares notoriamente degradados da capital, como o viaduto de Santa Tereza, no centro da cidade.

 

Dalata considera o grafite uma manifestação livre. “Você vai se apropriar de um lugar onde é cabível uma arte ou mesmo um tag (assinatura estilizada), sem dia, hora ou mesmo autorização. É óbvio que não vamos pintar com a intenção de degradar ou vandalizar lugares públicos e monumentos”, diz. Ele conta que são escolhidos os lugares que estão esquecidos, degradados, o muro que ninguém mais olha, o lote vago.

“Minha história sempre prezou por tentar fazer algo que fosse bom para a cidade, mesmo que clandestino ou na raça. Esse é o autêntico grafite”, conclui.

 

Mateus Santana, ao lado da mansão na Cidade Jardim que sofre intervenção desde 2008: “É uma espécie de mural em movimento”
 

 

“Grafite é pintar o que sente, apropriando-se de espaços que não são seus. É uma relação de rua. Você entra na sociedade, no cotidiano de cada transeunte, mexe com as pessoas, mostra o que elas representam mesmo, sem discriminação”, diz Matheus Aminadab, artista plástico que tem o grafite como meio de vida. “Sempre gostei de desenhar. Aos 14 anos roubei umas tintas de um amigo e pintamos um muro no bairro Coqueiros, onde moro. Passou o dono de um parque de diversões, gostou e me chamou para trabalhar com ele, pintando os brinquedos. Comecei a estudar mais o grafite e nunca tive outra profissão”, explica o belo-horizontino.

 

Autodidata, Aminadab já ganhou o primeiro lugar em um duelo de grafiteiros organizado no evento Hip Hop in Concert, em Belo Horizonte, e atualmente tem pinturas espalhadas em vários lugares da cidade, como a avenida Afonso Pena e a Escola Guignard, no Mangabeiras. Para identificar suas obras, ele usa a tag Ma3us, referência aos temas musicais que costuma retratar. “Tenho como referência de três movimentos da noite boemia da cidade: o clubber, o rap e o punk, grupo social que mais frequento. Essas são minhas influências”, conta.

 

Cineasta registra movimento em BH

 

Interessado em pesquisar uma linguagem visual mais moderna para o curta-metragem Terra, de 2008, o cineasta mineiro Sávio Leite começou a registrar alguns desenhos dos muros de Belo Horizonte. Buscava imagens para o projeto contemplado em edital da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, mas acabou por fazer um verdadeiro mapa do grafite da cidade. Esse acervo, atualmente de mais de 3 mil imagens, pode ser conferido no site grafitesbh.blogspot.com, do qual é Leite é colaborador fixo e onde publica, a cada dia, uma foto inédita. “Acho os desenhos de rua realmente muito criativos e imaginativos. Quanto mais fotos eu tenho, mais eu tiro”, comenta.

 

Desenho na rua Espírito Santo, no centro da capital mineira
 

 

Para o realizador, a força do grafite está na aparente contradição de “querer ser arte e, ao mesmo tempo, ser efêmero, de rua”. Para ele, o grafite é uma arte revolucionária “porque, como é anônima, as pessoas não têm pudor de passar sua mensagem. A maioria das obras é de qualidade, estonteante, feita por muita gente legal”, diz.

 

Em suas peregrinações pelas ruas da cidade, Leite acabou chegando a alguns lugares que são mais “utilizados” pelos grafiteiros. Um dos pontos que o diretor sugere conferir é a rua Rio Pomba, no bairro Padre Eustáquio. A avenida dos Andradas, na altura da praça da Estação, e diante da sede da Asmare, no Barro Preto, também têm belos painéis. “A rua da Bahia inteira é grafitada”, diz Leite. “Acho que o grafite embeleza a cidade, revitalizando lugares completamente abandonados e sujos. As pessoas desenham nos muros coisas maravilhosas, seres imaginários, imagens muito instigantes”.

 

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