Revista Encontro

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“O Brasil não sabe lidar com a maconha”

João Pombo Barile
None - Foto: Paulo Márcio

A exibição nos cinemas de todo o país de Quebrando o Tabu, documentário dirigido por Fernando Grostein Andrade, coloca novamente no centro do debate a questão: afinal, a maconha deve ou não ser descriminalizada no Brasil? O filme, com participação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que viajou por todo o planeta ouvindo políticos, militares, policiais, médicos e especialistas de diversos locais do mundo, resume bem um tema que sempre é acompanhado de muita paixão e pouca razão. No documentário, o líder tucano discute as políticas alternativas do Estado diante do fracasso da chamada doutrina da Guerra às Drogas, inaugurada no final dos anos 1960 pelo governo de Richard Nixon, nos Estados Unidos.

 

Para entender um pouco melhor esta questão, a revista Encontro conversou com o professor Fabrício Moreira, da Escola de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros de farmacologia, Fabrício desenvolve atualmente uma pesquisa sobre os efeitos terapêuticos da maconha. Nesta entrevista, ele defende a discussão em torno da questão, mas alerta: “Se algum dia a descriminalização existir no Brasil, é fundamental que exista uma política de educação explicando os efeitos do uso desta droga”.

 

ENCONTRO – A humanidade consome drogas desde o início dos tempos. O problema será eternamente sem solução? O que faz uma droga ser lícita ou ilícita é mesmo uma mera questão de convenção?

FABRÍCIO MOREIRA – Eu acredito que o problema nunca será totalmente solucionado. Neste sentido, sou pessimista. A história mostra, de fato, que nunca existiu nenhuma sociedade que não tenha utilizado substâncias psicoativas. E isto nos leva a pensar que dificilmente será diferente, um dia.

Assim, por exemplo, você pode participar de um congresso científico sobre o uso de drogas e possivelmente será servido um vinho durante a abertura do encontro. Quero dizer: não existe nenhum meio social que não consuma estas substâncias. Mas o problema não é consumir as substâncias. O problema é como isso é feito. O próprio álcool, por exemplo, pode ter propriedades benéficas. Existem vários estudos que mostram que o consumo de vinho, em doses reduzidas, pode ser benéfico para o sistema cardiovascular. O problema não é a substância, mas como ela é consumida. E quais as consequências sociais desse consumo. O que temos que aprender é como se relacionar com elas da melhor maneira possível. Conhecer cientificamente os riscos e benefícios de cada uma delas. E, do ponto de visto político e social, saber minimizar os seus efeitos.

 

 

 

 

ENCONTRO – O caso do álcool é interessante: apesar de ser uma droga legal, causa muitos danos à sociedade...

FABRÍCIO MOREIRA – É verdade. Particularmente na questão do trânsito. Por isso é fundamental que existam leis que regulamentem seu uso.

E, nesse sentido, a Lei Seca deve ser efetivamente fiscalizada no país. Motoristas alcoolizados devem ser punidos de verdade. E isso é uma coisa que infelizmente não acontece no país. Basta você sair de noite por Belo Horizonte para perceber que são poucos os pontos de controle. O consumo de álcool é um exemplo claríssimo do mau uso da droga.

 

ENCONTRO – O mesmo se aplicaria à maconha...

FABRÍCIO MOREIRA – Sem dúvida. A maconha altera os reflexos e diminui a capacidade de percepção. Da mesma forma que o álcool, dirigir sob efeito da maconha não é desejável.

 

ENCONTRO – A discussão sobre a descriminalização da maconha no país voltou ao centro do debate com o filme Quebrando o Tabu. O filme põe em xeque a política de drogas que hoje rege quase todos os países. O senhor gostou do filme?

FABRÍCIO MOREIRA – O filme é bom. Ele retrata bem o histórico da utilização de substâncias psicoativas ao longo dos séculos.

E isso é muito importante para se debater o assunto. Além disso, ele discute a questão em diferentes países. Mas o filme não apresenta nenhuma proposta clara para solucionar o problema. Ele analisa muito bem a falência da política mundial de combate às drogas – a chamada guerra às drogas –, mas não traça um plano direto de qual abordagem poderia ser feita para resolver a questão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ENCONTRO – Em 2007, o professor David Nutt, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, publicou na revista médica The Lancet uma lista em que afirma que maconha faz mais mal que álcool. Afinal, álcool faz mesmo menos mal do que maconha?

FABRÍCIO MOREIRA – É muito perigosa a afirmação de que uma droga faz menos ou mais mal que outra. Existem diversos critérios para considerar os efeitos de uma determinada substância, de uma determinada droga. Cada uma pode ser mais deletéria para cada corpo e de maneira diferente. O tabaco, por exemplo, é extremamente deletério. E com o álcool não é diferente. O álcool é uma droga extremamente problemática para a nossa sociedade. E não podemos nos esquecer de que a guerra contra o álcool já foi perdida: a representação clássica disso foi a Lei Seca, nos Estados Unidos, durante os anos 20 do século passado. Foi uma lição histórica: proibir o álcool não funciona. Mas isso não quer dizer que o álcool não faça mal. Ele traz consequências sérias para vários órgãos humanos, como o fígado. E, além disso, ele traz problemas sociais muito grandes: pense no número de acidentes de automóveis que acontecem todos os dias e que são causados pelas pessoas que dirigem seus carros depois de consumir álcool. Com a maconha não é diferente: ela também é uma droga que pode ser extremamente problemática em alguns casos. Do ponto de vista do sistema respiratório, ela faz muito mal. Isso tem que ficar claro: drogas diferentes trazem problemas diferentes.

 

ENCONTRO – O consumo de maconha, não só no Brasil, mas em todo o planeta, é hoje muito alto. Ela deveria ser mesmo descriminalizada? Existem países, como a Holanda, que liberam a maconha em alguns ambientes...

FABRÍCIO MOREIRA – É fato que a chamada guerra contra as drogas, como ela é feita hoje, é um caso perdido. É muito difícil não aceitar o fato de que esta guerra foi perdida. Analisemos o caso da maconha: no Brasil, ela é uma droga ilegal. Tanto o porte quanto o consumo. Mas sabemos que ela é utilizada com muita frequência nas universidades, em shows. Por isso é necessário discutir a questão. Mas, em primeiro lugar, é preciso separar a questão da descriminalização da legalização. Sou a favor de uma mudança gradual, em que, primeiro, seja feita a descriminalização, ou seja, o fato de que, se alguém portar a droga, não significa que é criminoso. Sou a favor de que a pessoa seja considerada paciente. A utilização recreacional, ou não médica, da substância traz danos para a saúde. O uso da maioria das drogas, a curto, médio ou longo prazo, pode ser negativo. Veja bem: eu não estou entrando na questão moral ou religiosa. Estou fazendo uma observação científica: o consumo de substâncias médicas ou não médicas, licitas ou não lícitas, apresenta consequências para o organismo. Inclusive, o consumo da maconha. Existem evidências muito claras de que o uso excessivo da maconha pode ser associado a problemas psicológicos, a problemas relacionados à perda de memória e de aprendizado.

 

ENCONTRO – Já se sabe, cientificamente, que a maconha pode causar esse tipo de problema?

FABRÍCIO MOREIRA – Sim. Existe uma correlação do uso da maconha e problemas de memória e aprendizado. Algumas pessoas argumentam que utilizar maconha por um determinado período não causa nenhum problema. Mas, para mim, os riscos de que esses problemas aconteçam aumentam. Em outras palavras: se alguém utilizar essa droga estará mais exposto a esses riscos. E se, um dia, a maconha for mesmo descriminalizada, que exista uma política pública efetiva de informação e educação em torno desses efeitos.

 

ENCONTRO – Algo parecido com o tabaco, para o qual o Estado não impõe proibição de consumo, mas cria restrições de uso?

FABRÍCIO MOREIRA – Algo parecido. A meu ver, comparativamente, hoje a sociedade sabe como lidar mais com os problemas do tabaco do que com o da maconha. E é muito importante que fique claro: não estou dizendo que a guerra contra o tabaco esteja ganha. Não está. Mas, de qualquer forma, não podemos negar o quanto o tabaco vem perdendo espaço em vários países. Inclusive no Brasil, onde o consumo é muito menor do que era nos anos 1980. A apologia ao tabaco já não existe mais. Antes era charmoso, elegante e agora não é. Isso aconteceu de forma gradual. E as pessoas foram perdendo o interesse. Este pode ser um caminho, mas a guerra contra o tabaco, insisto, não está ganha. Muitas pessoas morrem por causa do cigarro. E a maneira de comercializar o cigarro, me parece, ainda não é correta. É verdade: nós não temos mais absurdos como era em 1980, em que a propaganda de cigarros era feita com pessoas praticando esportes. Isto não existe mais. Mas acho que ainda temos muitos problemas: você pode ir a qualquer padaria brasileira e vai encontrar balas e cigarros do mesmo lado, no caixa. Para mim, a venda de cigarros deveria ser mais restrita. Legalizar qualquer droga não resolve todos os problemas.

 

ENCONTRO – Algumas pessoas relacionam a descriminalização com o aumento do consumo da droga. Países que liberaram o uso da maconha tiveram seu consumo aumentado ou não?

FABRÍCIO MOREIRA – Isso é variável. A política chamada de redução de danos, ou seja, de tentar lidar da maneira mais realista possível com o problema e descriminalizar a droga tratando o usuário não como fora da lei, mas como paciente, tem resultados variáveis. É muito difícil dizer, a partir do exemplo da Holanda, que é sempre muito citada, o que aconteceria no Brasil. Este é um ponto perigoso. É muito difícil comparar com a realidade de um país que é completamente diferente do nosso. Acho difícil dizer que um modelo que vem sendo empregado lá pode servir para nós. O que se argumenta em favor do caminho que a Holanda seguiu é que, por mais que o consumo aumente, ele acontece fora de um contexto de criminalidade. E isso de fato é positivo: o consumo da maconha não está associado ao crime. Na Holanda, como você sabe, a maconha pode ser consumida em cafeterias. A ideia é que se não se pode vencer a guerra contra a droga, é possível vencer a guerra contra a criminalidade que está associada a ela. É muito difícil responder se isto funcionaria por aqui.

 

ENCONTRO – Algumas pessoas dizem que a maconha pode ser a porta de entrada para outras drogas. Do ponto de vista científico isso é verdade?

FABRÍCIO MOREIRA – Do ponto de vista científico é muito difícil estabelecer esta correlação. O que eu acredito é que ela possa existir muito mais por uma questão social. Ou seja: as drogas são objetos de consumo que se diferenciam de acordo com a classe social. Como a compra de um carro ou de uma roupa. Certas classes sociais utilizam mais uma droga ou outra. Pense na cocaína. Ela era a droga dos anos 1980, da chamada geração yuppie. Era a cocaína cheirada, em pó. Hoje temos a cocaína em outra forma, que é o crack, a cocaína fumada. E esta droga é usada de forma dominante entre as classes mais baixas.

 

 

 

 

ENCONTRO – A questão social direciona muito...

FABRÍCIO MOREIRA – Exatamente. Utilizando o álcool ou a maconha, qual a droga que a pessoa usará em seguida? Isto é muito variável. Não necessariamente a maconha vai ser uma porta de entrada do ponto de vista biológico. No entanto, do ponto de vista social, dependendo de onde se compra a droga, o traficante pode oferecer para a pessoa outra droga. No mundo do tráfico, quem compra maconha tem, em geral, outra droga à disposição. A questão da porta de entrada está, para mim, muito relacionada com a questão social. Preste atenção: podem até existir fatores biológicos que determinem que uma pessoa passe de uma droga para outra. Mas seria muito reducionista não considerar a questão social.

 

ENCONTRO – E apologias do tipo da marcha pela maconha?

FABRÍCIO MOREIRA – Sou veementemente contra qualquer tipo de apologia. E, infelizmente, ela existe muito em torno da maconha. Existem músicas, passeatas. Sinceramente, não vejo razão nenhuma para se fazer uma passeata em prol do uso de uma substância. Nós temos, é claro, que discutir a política, discutir a descriminalização. Não faz nenhum sentido fazer apologia de uma droga. Seja ela lícita ou ilícita.

 

ENCONTRO – O senhor estuda a maconha nos seus diversos efeitos medicinais. Poderia falar um pouco sobre sua pesquisa?

FABRÍCIO MOREIRA – A maconha apresenta diversas propriedades que podem ser interessantes do ponto de vista medicinal. Algumas delas já são conhecidas há milênios. Já sabemos, por exemplo, que a maconha pode apresentar efeitos analgésicos. Há mais de dois mil anos os chineses já descreviam a droga com um caráter analgésico. Além disso, sabemos que a maconha tem efeitos anticonvulsivantes. E efeitos ansiolíticos e antidepressivos, e pode ser utilizada até no tratamento da esquizofrenia.

 

ENCONTRO – Mas a maconha não poderia causar a esquizofrenia?

FABRÍCIO MOREIRA – Uma das substâncias da maconha, o THC, pode aumentar o risco de o indivíduo desenvolver a esquizofrenia. Mas existem outros componentes na maconha, que atualmente estamos estudando, para conhecer suas possíveis propriedades medicinais. Existe uma substância chamada CBD e que parece ter propriedades diferentes do THC. Algumas até contrárias. Nosso grupo, aqui da UFMG, trabalha em colaboração com a USP de Ribeirão Preto, tentando identificar estas propriedades para tratar algumas doenças psiquiátricas. E nós já identificamos, em vários níveis de estudo, que este CBD tem efeito antipsicótico. Ou seja: enquanto o THC pode precipitar a esquizofrenia, na mesma planta existe outra substância, o CBD, que pode ser o contrário. Uma alternativa para o tratamento da esquizofrenia.

 

ENCONTRO – O THC já é utilizado em alguns países como medicamento?

FABRÍCIO MOREIRA – Em situações específicas ele é utilizado em alguns medicamentos nos Estados Unidos, para atenuar náuseas e vômitos. Além disso, ele já é utilizado no Canadá e alguns países europeus, um medicamento chamado Sativex, produzido por uma empresa inglesa. Este medicamento é utilizado na forma de spray no tratamento da esclerose múltipla, para ajudar a atenuar alguns dos efeitos da doença.

 

ENCONTRO – O senhor tem que viajar para poder pesquisar...

FABRÍCIO MOREIRA – Tenho. Vou regularmente à Alemanha para poder desenvolver a pesquisa, estudos que seriam impossíveis de se fazer aqui. No Brasil, não posso comprar a maconha para o estudo científico. E esta é a grande ironia: todo mundo sabe que, por meios ilegais, é muito fácil comprar um cigarro de maconha em qualquer esquina de uma cidade brasileira. Mas comprá-la, por meios legais, para fins científicos, é praticamente impossível. É tanta burocracia da Anvisa , que somos obrigados a desenvolver as pesquisas fora daqui. Isso mostra como o país não sabe lidar com esse tema de maneira adequada: proíbe-se o uso científico por causa de uma lei absurda.

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