Revista Encontro

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O jogo mais importante do Cruzeiro e do Galo

Heitor Oliveira
None - Foto: Washington Alves e JĂșnia Garrido

Imagine-se dono de uma empresa que atua em um mercado poderoso, responsável por movimentar centenas de milhões. Melhor ainda: ele reúne em torno de si um consumidor fanático, que cultua – e compra – o produto que sua empresa vende. Só há um problema: essa sua firma concorre em um setor cada vez mais oligopolizado. E, pior, querem tirar dela nacos significativos de mercado.

 

Você pode não ser dono de uma empresa que fatura milhões, mas seu time provavelmente se enquadra no exemplo acima. Atlético e Cruzeiro, duas das mais importantes “instituições” mineiras, buscam fôlego em um setor cada vez mais seletivo. Ganhar o Campeonato Brasileiro deste ano seria bom para ambos os clubes, mas o maior desafio dos dois é saber situar-se frente à nova realidade que vem se delineando no futebol do país.

 

Em economia, dá-se o nome de “concorrência imperfeita” a uma estrutura de mercado em que pelo menos uma empresa ou consumidor tem poder suficiente para influenciar todo o mercado. São os monopólios, duopólios e oligopólios. Pois o futebol brasileiro, que sempre apresentou como atrativo a forte competição entre suas marcas, corre o risco de sofrer com a concorrência imperfeita.

 

Ainda há forte disputa aqui, diferentemente do que ocorre na Alemanha (monopólio do Bayern Munique) ou na Espanha (duopólio Barcelona/Real Madrid).

“Mas a situação ficará assim também aqui no Brasil, pois está ficando impossível concorrer com os grandes de São Paulo e Rio”, reclama um diretor remunerado de um grande clube brasileiro. “Por um dinheiro imediato, estão matando a galinha dos ovos de ouro.”

 

Há várias razões para isso, como a má distribuição dos recursos entre as marcas, a gestão temerária de algumas delas e o poder econômico paulista, que concentra quase metade do PIB brasileiro. A má gestão é problema do clube e deve ser resolvida por ele, da mesma forma que não é possível interceder no poder da indústria paulista e seus reflexos sobre o futebol.

 

Zezé Perrella, presidente do Cruzeiro:
“Ou buscamos uma solução ou vai
ficar difícil disputar com chances”
Alexandre Kalil, presidente do Atlético:
“O futebol é imprevisível, mas não podemos
deixar acontecer aqui o que ocorreu na Espanha”
   

 

Mas a má distribuição dos recursos, sobretudo os de TV, está aumentando a diferença entre as marcas e esgotando o diferencial econômico do Brasil nesse mercado. “Ou o futebol busca uma solução ou em breve o poderio de alguns do Rio e São Paulo tornará muito difícil disputar com chances esse mercado”, resume o presidente do Cruzeiro, Zezé Perrella. Seu rival – no futebol –, o presidente do Galo, Alexandre Kalil, é um pouco menos pessimista: “O futebol é muito mais imprevisível do que outros segmentos de mercado”, afirma. “Mas não podemos deixar acontecer aqui o que ocorreu na Espanha.”

 

O caso espanhol é um típico exemplo de mercado oligopolizado. Se a ideia brasileira é copiar a “bilionária organização” da Espanha, há motivos para que cruzeirenses e atleticanos se preocupem. Lá, Barcelona e Real Madrid ganharam nada menos que 86% de todos os campeonatos nacionais – nos últimos 20 anos, foram 17 triunfos da dupla, ou 85% do total. Na Itália, o trio Juventus, Inter e Milan ganharam 85% dos últimos scudettos. Na Inglaterra, o equilíbrio é bem maior. Manchester United e Liverpool faturaram metade dos títulos da Premier League.
Não é coincidência. Veja a distribuição da verba da TV: o Campeonato Inglês tem um dos mais igualitários sistemas de distribuição das receitas. Na temporada 2010/2011, o clube que menos arrecadou, o Blackpool, faturou R$ 101 milhões com TV.

Isso dá 67% da renda do campeão Manchester United. Na Espanha, o Sporting Xerez faturou apenas 11% das receitas dos dois gigantes.

 

A divisão mais igualitária dessas receitas proporciona maior nivelamento do campeonato. Na prática, aumenta sua atratividade. No Brasil, esse equilíbrio ainda existe. Nos últimos 20 campeonatos, 45% foram vencidos pelo trio que ganha a maior receita. Será fruto do acaso que justamente esse trio (Flamengo, Corinthians e São Paulo), vencedor de nove dos últimos 20 certames, seja também o campeão do faturamento da TV?

 

Na Inglaterra, dos R$ 2,5 bilhões arrecadados este ano, 66% são divididos igualmente entre os 20 clubes. Do restante, metade é distribuída de acordo com as colocações dos clubes ao término da temporada. Somente pouco mais de R$ 400 milhões são distribuídos proporcionalmente à audiência das partidas.

 

No Brasil, em 2010, enquanto a cota de Atlético e Cruzeiro foi inferior a R$ 30 milhões, a do Corinthians, dono da maior torcida de São Paulo, superou R$ 55 milhões. Some-se a isso o faturamento maior com publicidade e ações de marketing e o desequilíbrio torna-se ameaçador.
A culpa é da TV? Provavelmente não. Ela agora negocia os valores diretamente com os clubes e, naturalmente, faz o possível para fechar valores que lhe interessam.

É dos clubes? Em parte, sim. De qualquer modo, talvez seja o caso de copiar alguns bons exemplos lá de fora.

 

Buscar medidas que reduzam esse desequilíbrio não é tão estranho para uma economia de mercado. É preciso, porém, vontade política, principalmente dos clubes. “Está mudando, mas há ainda uma velha visão amadora dos dirigentes, de resolver apenas problemas imediatos, sem se preocupar com o longo prazo”, diz Amir Somoggi, diretor da área de esporte total da BDO RCS Auditores Independentes.

 

Mesmo nos Estados Unidos, considerados a meca do liberalismo econômico, houve intervenção para salvar a concorrência. Na NBA, a bilionária liga do basquete americano, criou-se um sistema de contratação que privilegia os últimos colocados do campeonato anterior: 30 times da NBA contratam os 30 melhores jogadores universitários americanos e 30 jogadores estrangeiros. A equipe de pior desempenho no último torneio escolhe primeiro.

 

Também para evitar a supremacia das equipes mais ricas, a NBA criou um teto salarial. Há também outro limite: se a soma dos salários ultrapassa US$ 57,7 milhões, o valor além sofre uma taxa de 100%. O teto tem como objetivo nivelar as equipes e foi adotado em 1983.

 

Até há poucos anos, esse não era um problema real. Em primeiro lugar, os clubes brasileiros não ganhavam tanto dinheiro com cota de TV – hoje, a receita com direitos de transmissão representa em média 41% do faturamento total dos 12 dos maiores times do país, segundo levantamento do especialista Emerson Gonçalves.

 

Além do mais, até o fim dos anos 1980, grandes jogadores costumavam ficar muitos anos em seus clubes – foi assim que Cruzeiro e Atlético conseguiram montar esquadrões. Hoje, os dois ainda formam bons times, mas não têm como disputar os jogadores mais caros com alguns clubes de São Paulo e o Flamengo. “Veja o caso do Ronaldinho Gaúcho: jurava amores ao Grêmio, mas acabou fechando com o Flamengo”, lembra o sociólogo e autor do livro Páginas Heróicas, Jorge Santana.

 

Uma boa fonte de receita é a venda de jogadores, mas ela também está desgastada. “O modelo exportador de atletas está em crise”, afirma Santana. A crise econômica europeia só aprofundou essa crise.

 

A saída mais palpável – fora a melhor distribuição das receitas, é claro – é a multiplicação dos sócios. Foi a receita seguida pelo Internacional de Porto Alegre, que já tem 100 mil deles e ganhou nos últimos anos dois campeonatos continentais e um mundial.

 

Essa alternativa, porém, é praticamente inviável para Cruzeiro e Atlético, pelo menos por enquanto. O fechamento do Mineirão para a Copa do Mundo de 2014 tira o maior atrativo para os sócios, que é o ingresso mais barato ou de graça. “A saída é o torcedor nos socorrer”, diz Perrella. “Mas tínhamos duas casas e fomos morar sob a ponte”, completa, lamentando a ausência do principal estádio mineiro e também do Independência, no Horto. Kalil reforça: “Galo e Cruzeiro estão pagando a Copa em BH”.

 

Mauro Holzmann, diretor de novos negócios da Traffic, considerada a maior empresa de marketing esportivo da América Latina, lembra que o Brasil chegou atrasado em transformações já feitas há mais tempo na Europa. “A profissionalização dos clubes aqui começou só no fim da década de 1980, e bem modestamente”, afirma. Além disso, vigorava no Brasil até o fim do século passado a ideia de futebol como um espetáculo muito barato. “Quase de graça, um circo”, diz Holzmann.

 

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