Revista Encontro

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Donos da rua

None - Foto: Emmanuel Pinheiro e Cláudio Cunha
 

Quando se fala em trânsito, a palavra que deve prevalecer em qualquer conversa é a paciência. Além dos temíveis congestionamentos, inerentes a qualquer metrópole, os motoristas devem ter jogo de cintura para driblar ameaças e a prepotência dos conhecidos flanelinhas. Eles insistem em tomar conta de seu veículo em troca de moedas, notas e até mensalidades. Nesse caso, as vias deixam de ser públicas. O direito de ir e vir é alijado por pessoas que acreditam ser donas da rua. Encontro percorreu várias vias de Belo Horizonte para saber quem são eles. Descobriu, porém, que, felizmente, ainda há profissionais que tratam os motoristas com respeito, gentileza e fazem muito além de sua função para conquistar a clientela.

 

Sexta-feira, 18h. Período no qual a maioria das pessoas encerra o expediente e muitas delas optam pela diversão, o famoso happy hour.

Mas antes de entrar em um bar ou restaurante, o motorista tem de enfrentar um problema muito mais difícil do que procurar um lugar para sentar: estacionar o carro. Neste dia e horário, a reportagem esteve na rua Sergipe, na região da Savassi, uma das mais badaladas da capital, com muitos bares e restaurantes.

 

Rapaz cobra por guardar motos na avenida Oiapoque, no centro:
“Tem gente que paga por semana, outros por dia”
 

 

Minutos depois de chegar ao local, entre as ruas Tomé de Souza e Antônio de Albuquerque, descobrimos quem era o dono do pedaço. O rapaz gesticulava para todos os veículos que trafegavam pela via. É ele quem define onde estacionar. Uma motorista que não quis se identificar informou que o flanelinha não deixa ninguém parar fora do lugar indicado. Do contrário, o motorista atrapalharia seu serviço. “Poxa, aí você me quebra, dona!”, é o que ele fala depois da desobediência.

 

Sem nos identificar, abordamos o rapaz. Solicitamos uma vaga para alguns amigos fictícios que estavam para chegar. Sem pestanejar, o flanelinha disse que daria para segurar uma vaga até às 19h. Como? “Pode deixar que coloco uma moto”. Maus exemplos como esse se multiplicam pela cidade.

 

 

 

No bairro Santa Efigênia, na região leste, também à noite, um guardador diz tomar conta de carros na porta de uma boate, na avenida do Contorno. Ao sinalizar a parada, o homem já começa a ajudar a motorista na manobra. Antes que a moça entre no estabelecimento, o homem deixa claro: “Na volta, é R$ 10 viu, dona?” Mais tarde, caso a motorista se recuse a pagar, o flanelinha faz cara de poucos amigos.

Na rua Passa-Tempo, no bairro Sion, lugar também com grande movimentação por causa de bares, um rapaz sem identificação se responsabiliza por tomar conta dos carros e arranjar uma vaga para motoristas.

 

O dia amanhece e a rotina continua. Flagramos uma modalidade pouco falada: o flanelinha de motos. Na avenida Oiapoque, em frente ao shopping popular de mesmo nome, um rapaz conhecido como Leandro fica o dia inteiro à espera dos clientes, que não são poucos. O valor para guardar ou lavar as motos depende do veículo e do motorista. “Tem gente que paga por semana, outros por dia”, afirma. A poucos metros dali, na rua Curitiba, outro rapaz conhecido como Reinaldo também cobra por guardar motos. “Não sou regularizado, trabalho aqui há duas semanas”. O novo emprego parece lhe render um bom dinheiro. “Chego a ganhar R$ 90 por dia”. Por incrível que pareça, seu local de trabalho é bem em frente a um estacionamento particular.

 

Antônio Marcos da Costa, que trabalha de modo regular na região hospitalar:
“Não é com qualquer um que se pode deixar a chave do carro hoje em dia”
 

 

A situação dos flanelinhas em BH está hoje num impasse.

Segundo a regional centro-sul, responsável pelo programa Guardadores e Lavadores de Carro – criado em 1998 – na região, existem 1305 trabalhadores regularizados. O resto é conhecido como flanelinha ou toureiro, profissional clandestino. Ainda de acordo com a regional, a PBH não está cadastrando mais profissionais por falta de demanda e devido às vias destinadas a esse tipo de trabalho estarem todas preenchidas.

 

Martim dos Santos, presidente do Sintralamac, que representa os lavadores, guardadores e manobristas de carros na cidade, reconhece que a situação está complicada, mas, segundo ele, parte da culpa é da prefeitura, que não regulariza os clandestinos. “Ela é que está fomentando essa situação, jogando todo mundo no mesmo bojo”. Em relação às conhecidas ameaças e achaques de flanelinhas, o presidente do sindicato garante que orienta os trabalhadores a não exigir valores pelo serviço. Em situação semelhante, explica Martim, o aconselhado é o motorista acionar a polícia militar.

 

Ivanildo Souza Gomes guarda carros na rua Aimorés, no centro:
“Todos os dias tenho sob minha responsabilidade quase R$ 1 milhão”
 

 

Mas como conviver com eles? É praticamente impossível evitá-los. Para a professora Cynthia Adriadne, da Faculdade de Educação da UFMG, esse cenário merece um olhar mais abrangente. “Existem pessoas que estão exercendo sua cidadania a duras penas, é o caso desses profissionais. O que não pode ocorrer é generalizar. Há pessoas de bem.”

 

A psicóloga Renata Borja afirma que para as pessoas demonstrarem gentileza é preciso antes entender a realidade do próximo. “Se todos os motoristas conhecessem os guardadores ou tivessem alguma referência de sua seriedade, a relação entre o profissional e o motorista seria bem diferente do que estamos acostumados a ver”, afirma.

 

 

 

Existe luz no fim do túnel? Sim, existe. Ivanildo Souza Gomes, de 52 anos, é guardador de carros regularizado da rua Aimorés, entre as ruas da Bahia e Espírito Santo. “Todos me conhecem. O diferencial é ser honesto com os clientes. Todos os dias tenho sob minha responsabilidade quase R$ 1 milhão”, diz Ivanildo, como referência aos valores somados dos veículos.

 

Na região hospitalar, outra área com grande número de guardadores de carros, trabalha Antônio Marcos da Costa, de 41 anos. O homem, pai de quatro filhos, guarda e lava carros no quarteirão da rua Padre Rolim, entre as avenidas Brasil e Bernardo Monteiro. “Sou regularizado. Não tenho colete, pois o meu está todo rasgado”. Marquinhos, como é chamado pelos motoristas e frequentadores do local, explica como é sua função. “Revejo os rotativos para os motoristas. Alguns chegam com tanta pressa que nem colocam a folha no carro. As pessoas têm confiança em mim, não é com qualquer um que se pode deixar a chave do seu carro hoje em dia”, afirma.
Luciene Machado, de 36 anos, é proprietária de uma loja na região, por isso cliente assídua dos guardadores de carro. “Nunca tive problemas aqui. Eles são nossos parceiros”, revela. Luciene afirma que em outro ponto da cidade já teve seu carro roubado, mesmo pagando a um flanelinha para tomar conta.

 

Mas o que falta de gentileza e seriedade em alguns guardadores de carro sobra para Israel Teixeira Leão, de 61 anos, dez deles dedicados à segurança dos veículos no quarteirão da rua Rio Grande do Norte, ao lado de uma pizzaria. “A pessoa que trabalha nisso deve transmitir muita confiança”, diz. Teixeira Leão revela que já teve de enfrentar clandestinos que insistiam em trabalhar na rua, tendo que acionar a PM. Como trabalha no período da noite, ele faz questão de acompanhar o motorista até o seu destino, para evitar assaltos. “Se me perguntam quanto cobro, respondo: você paga o valor que eu merecer, apenas isso”. Ah se todos fossem iguais a você, seu Israel.

 

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