Frango xadrez com cogumelo e broto de bambu, arroz chop suey e, com sorte, banana caramelada de sobremesa.
Da primeira vez que comi, torci o nariz. Gostei foi do capuccino servido depois do jantar. Uma mágica um pozinho que, com um pouco de água quente, virava um café com pinta de chocolate. Voltei mais uma vez, interessada no capuccino, e foi então que o sabor da China me pegou de vez – e é esta a China que quero guardar comigo.
Talvez tenha sido assim também com o meu pai. Obrigado a comer de tudo quando criança, ele cresceu revidando: virou um adulto chato pra comer. Tradicional, passou a jantar no chinês quase toda semana, variando entre dois ou três pratos num cardápio com mais de 150 itens. (Aprimorei a espécie: escolho sempre um mesmo determinado prato em cada restaurante que costumo frequentar.)
Lembro das vezes em que fui sua única convidada, coisa rara numa família de sete pessoas.
Sim, era este o meu conceito de luxo. Hoje, ao lado dos fast food, pizzas, e outros restaurantes que foram surgindo na vizinhança, o prato chinês soa pobre e trivial. Não sonho mais com ele, e sim com o cavalheiro que me conduzia ao restaurante, charmoso e enigmático, embora cheio de manias. Faz mais de 10 anos que ele não me faz convites para jantar.
Voltar ao Yun Ton é possível. Voltar no tempo, não. Dos meus pais, sobraram centenas de fotos esmaecidas. E a criança que se sentava àquela mesa já passou dos 40. Mas continua apreciando aquele sabor que não se altera – ou que talvez melhore com o tempo, enfeitado pelo afeto e saudade de uma época em que nada era assim tão fácil.
Era festa viajar de avião, ficar no Grande Hotel, nadar em piscina aquecida, patinar no gelo. Coca-cola era coisa de almoço de domingo (e eu me pergunto como é que aquela garrafa de vidro de um litro dava para a família toda). Álbuns de fotos 10 por 15 eram privilégios de aniversários, viagens e formaturas. Premiados com 36 fotos, só os novos bebês na família.
E essas lembranças de pequenas e fúteis faltas me preenchem de histórias ricas para levar vida adiante.
Com esse raciocínio recheado de buracos, me vem um pensamento espesso: e aqueles, a quem nada faltou? Do que é feita a vida de quem já nasceu com o álbum de figurinhas completo?
Um silêncio como resposta.
É um privilégio ter problemas a resolver, relações a aprimorar, processos para entender. Sinal de vida longa ter dezenas de sonhos ainda por realizar.
Falo de sonhos concretos, sim. Aqueles que, depois de realizados, deixam provas que podemos tocar. É por eles que começamos a aprender o que é sonho, para depois amar os sonhos abstratos e sutis.
Ganhar o carro do Iron Man no dia das crianças. Soprar a vela dos 5 anos usando a fantasia do Homem-Aranha. Juntar dinheiro para comprar o primeiro computador. Tirar carteira de motorista. Fazer um curso fora do país. Pagar a primeira parcela da máquina de lavar. Comprar um apartamento.
Minha mãe sonhou a vida toda em quitar as prestações do BNH. Dois meses depois de sua morte, meu pai pagou a última parcela da casa. Não posso dizer que o pai do meu filho morreu dormindo, mas durante um sonho: seu maior desejo era ver o rostinho do bebê que ia nascer.
Para as vidas que continuam, histórias assim parecem ter um gosto amargo. Mas que gosto têm as histórias de quem nada sonha? Do que é feita a vida de quem não tem com o que sonhar?
Cris Guerra é publicitária e escritora, autora do blog www.hojevouassim.com.br e escreve mensalmente na Encontro
.