Revista Encontro

None

"O tabagismo começa na infância"

João Pombo Barile
None - Foto: None

Câncer: a palavra ainda causa medo. E muita gente não tem coragem nem mesmo de pronunciá-la. O câncer de laringe do ex-presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, trouxe de volta ao debate público a discussão sobre o assunto. “Precisamos desmistificar a doença”, afirma o médico oncologista mineiro Enaldo Melo de Lima. “Com a população vivendo mais, hoje todo mundo tem um parente ou conhecido que já teve ou terá câncer. E ele não significa, necessariamente, uma sentença de morte”, afirma um dos mais importantes especialistas do Brasil.

 

“Hoje, o câncer é mais bem estudado. Trabalho nesta área há 20 anos e a situação é muito melhor agora. Desde a ‘declaração de guerra’ do presidente norte-americano Richard Nixon contra o câncer em 1971, a situação melhorou de forma extraordinária: naquele tempo, apenas 5% a 10% dos casos eram curados lá.

Atualmente este número chega a até 70%”, diz, otimista. Segundo o especialista, as chances de cura do câncer de laringe, em fase inicial, são de 70%.

 

O tratamento é feito com a quimioterapia e a radioterapia em sequência. Já em casos avançados, nos quais as chances de cura chegam a 50%, pode ser necessária uma cirurgia para a retirada da laringe, que significará a perda da voz. “No câncer de laringe alguns pacientes não têm reposta ao tratamento conservador, da quimioterapia ou da radioterapia. Nestes casos, é preciso fazer a cirurgia de retirada de laringe, de mutilação do órgão”, explica o dr. Enaldo.

 

O médico alerta que o câncer de laringe afeta mais os homens e é o mais comum entre os tipos de tumores que atingem a região da cabeça e do pescoço. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), representa 25% dos tumores malignos nessa região e 2% de todos os cânceres.

 

Profissional requisitado em todo o país, Enaldo tem um currículo invejável: já foi presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica duas vezes – a primeira entre 2005 e 2007, e a segunda, de 2009 até este ano. Depois de ter trabalhar por 19 anos na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, em junho assumiu a unidade de Oncologia do Mater Dei. Além disso, Lima é conselheiro do Ministério da Saúde em sua área.

 

ENCONTRO – Recentemente os jornais noticiaram que BH supera a média nacional em número de casos de câncer por causa do cigarro...
ENALDO MELO DE LIMA –
Isto é fato. Minas Gerais, no geral, representa 10% dos casos de câncer do Brasil. E Belo Horizonte, por ser uma cidade com índices socioeconômicos melhores dentro do estado e com acesso mais facilitado aos exames de diagnóstico e tratamento, acaba sendo uma cidade que tem um número de casos mais facilmente diagnosticados. O número é maior por causa do acesso. Além disso, BH representa o que alguns polos do Brasil também representam: tem hábitos da cultura ocidental.

Aqui se consome mais gordura e temos ainda o problema do cigarro. Onde a taxa do tabagismo é maior, a de câncer também é. E não só o câncer de pulmão, mas câncer de cabeça e pescoço, laringe, esôfago, estômago, bexiga, intestino grosso...

 

ENCONTRO – Esta média de 10%, de Minas, é maior se comparada a outros estados?
ENALDO MELO DE LIMA –
Não, Minas está dentro do padrão. O último número do Ministério da Saúde fala em 500 mil casos por ano no Brasil. Em Minas são 50 mil. Veja bem: nos Estados Unidos você tem uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas e 1,5 milhão de casos por ano. No Brasil, que tem uma população em torno de 200 milhões teríamos, mais ou menos, um milhão de casos por ano. E o Ministério da Saúde calcula 500 mil. O que significa que, provavelmente, este número é subestimado. Eu não acho que este número chegue a um milhão no Brasil, não. Mas é mais do que 500 mil.

Algo em torno de 700 a 750 mil.

 

ENCONTRO – Mas os números de casos em Belo Horizonte são maiores?
ENALDO MELO DE LIMA –
O que acontece é que a cidade está localizada em uma região do país de transição. Minas é um estado de transição. Estamos entre o norte e o sul do país. Na região Nordeste, por exemplo, tem muito câncer de colo uterino, que acontece em locais de pouco desenvolvimento. Não há esse tipo de câncer onde as mulheres têm acesso aos exames. Já a região Sul é o lugar onde há mais casos de câncer de mama e câncer, relacionados aos maus hábitos: pulmão, esôfago.

 

ENCONTRO – Existe, então, uma relação entre o tipo de câncer e a classe social?
ENALDO MELO DE LIMA –
Existe, sim. O câncer de colo uterino, por exemplo, acomete mais pessoas menos favorecidas socialmente. Pessoas que não têm a chance de ir pelo menos uma vez por mês ao médico. No sul do país é detectada maior incidência de câncer de mama do Brasil. E não é só porque a população é mais obesa ou usa mais hormônios, não; é porque lá se faz mais exames.

 

ENCONTRO – Nos dias atuais, quando alguém é diagnosticado com câncer, isso ainda representa uma sentença de morte?
ENALDO MELO DE LIMA –
Não, de forma nenhuma. Analise os números nos EUA. Lá, uma criança com câncer tem uma chance de cura em torno de 80%. Já um adulto, de 65%. No Brasil, temos um cálculo preciso para crianças: em torno de 11 mil crianças por ano têm câncer. E a chance de cura das crianças, aqui, é em torno de 70%. Para adultos este número não é confiável, mas estimo que seja em torno de 40%. No Brasil este número é menor porque temos os diagnósticos feitos de forma mais tardia. E porque grande parte da população não tem acesso ao tratamento. Não se esqueça de que 80% dos brasileiros são atendidos pelo SUS, enquanto 20% são atendidos pelo sistema privado. E a população que tem atendimento público tem muito mais dificuldade de diagnóstico e tratamento.

 

ENCONTRO – Então esse discurso de que o SUS atende de maneira satisfatória quem tem câncer é falso?
ENALDO MELO DE LIMA –
É completamente distorcido. Não é a realidade do Brasil. O sistema não funciona de forma tão boa assim. Para se ter uma ideia, cerca de 100 mil pacientes por ano com indicação de radioterapia simplesmente não conseguem fazer o tratamento. A questão da cirurgia é outro fator importante. A tabela de pagamento médico e hospitalar para a cirurgia oncológica é tão aviltante que os pacientes não conseguem fazer as cirurgias. O que acaba acontecendo é que temos uma distinção clara entre o que é um tratamento de uma pessoa que tem convênio e o de uma que é atendida pela saúde pública. A diferença é gritante, monstruosa. O SUS ainda não dá conta de atender, de maneira satisfatória, à população, quando o assunto é câncer. E em todos os setores: no acesso ao diagnóstico, nos exames, no tratamento. Temos ainda problemas muito grandes.

 

ENCONTRO – O tratamento do câncer no Brasil melhorou nesta última década?
ENALDO MELO DE LIMA –
Melhorou. O modelo de tratamento hoje, que é feito através da Apac , é uma fórmula muito bem pensada. Se fosse bem aplicado e tivesse recursos adequados, o modelo do SUS seria talvez o ideal de atendimento. Ele é universal, gratuito e tem assistência domiciliar de medicação oral. Hoje, mais ou menos 30% dos tratamentos são orais e só o SUS fornece isso. Os planos de saúde, por exemplo, não dão. Muitos pacientes de convênio privado vão para o SUS para buscar medicação oral. Não podemos nos esquecer de que, no Brasil, 80% da população que tem câncer se trata pelo SUS. O modelo do SUS é muito bem pensado, mas faltam recursos.

 

ENCONTRO – E o câncer do presidente Lula, noticiado com muito estardalhaço pela mídia? Quase todos os meios de comunicação dizem que o caso dele é de risco médio. É isso mesmo?
ENALDO MELO DE LIMA –
A doença do ex-presidente Lula está ligada a fatores específicos: o tabagismo e uso excessivo de álcool. Quem fuma e consome álcool tem muito mais chance de ter câncer de cabeça e pescoço na faixa etária em que Lula está. A doença do presidente está num estado intermediário para avançado. A chance de cura dele é razoável, mas não é a estimativa que os jornais estão dando, de até 80% de chance de cura. Não é verdade. No estágio em que está sendo divulgada a doença dele, a chance é em torno de 40% a 50%. O tratamento que o ex-presidente está fazendo é o que a gente chama de conservador. Fazer a quimioterapia com a radioterapia, tentando evitar a amputação do órgão. E o tratamento que Lula está fazendo não é um tratamento que ele teria no SUS. A cobertura não é a mesma.

 

ENCONTRO – Podemos afirmar, de maneira precisa, quantas pessoas vão morrer este ano no Brasil por causa do cigarro?
ENALDO MELO DE LIMA –
Em torno de 200 mil pessoas. E aí entra não só o câncer. Entram AVC, infarto, doenças cardiovasculares.

 

ENCONTRO – E o senhor acha que a política para controle do tabagismo no país é boa?
ENALDO MELO DE LIMA –
É uma das melhores políticas de controle do mundo. E isso se reflete em números: em 1989, quando começou a campanha de controle do tabagismo, tínhamos 25% da população adulta fumante. Hoje, são apenas 14% da população adulta. Num período de 22 anos houve queda acentuada no número de fumantes. Hoje, o Ministério da Saúde já sabe: o tabagismo é uma doença pediátrica. Quem fuma começa com 11, 12 anos. As campanhas têm sempre que atuar nas faixas etárias de crianças e adolescentes. O Brasil já é signatário da Convenção Quatro sobre Controle do Uso do Tabaco, adotada pelos países-membros da Organização Mundial de Saúde. Ela prevê aumento do valor do preço do cigarro e taxações extras, além de um plano para que as pessoas que hoje vivem do plantio do tabaco, aproximadamente 500 mil pessoas, consigam empregos em outras áreas.

 

ENCONTRO – Há algumas décadas os Estados Unidos eram o país onde se encontravam os tratamentos mais avançados. Hoje, os doentes no Brasil e nos Estados Unidos recebem o mesmo tratamento?
ENALDO MELO DE LIMA –
Hoje, sim. A mesma medicação que existe nos Estados Unidos existe aqui. O que o paciente pode não ter, porque o Brasil ainda esta engatinhando nesta área, é pesquisa. No Brasil, o número de pesquisas em câncer ainda é muito aquém do que precisaria, e lá existe um campo de pesquisa enorme. Então, muitas vezes o paciente não tem mais recursos do que é aprovado pelas agências reguladoras, e nos Estados Unidos ele consegue se encaixar em uma pesquisa. O que pode, eventualmente, salvá-lo. Esta diferença entre os dois países ainda existe. No Brasil, o acesso à pesquisa deveria ser mais facilitado.

 

ENCONTRO –O número de pessoas com câncer no mundo está aumentando?
ENALDO MELO DE LIMA –
Sim, o câncer hoje é epidemia. No Brasil, o número, como já disse, é de 500 mil por ano. E no mundo todo são mais ou menos 13 milhões de casos novos. São mais ou menos 8 milhões de mortos por ano, no mundo. E no Brasil são 160 mil por ano. A estatística mais recente, de dois meses atrás, da Organização Mundial de Saúde, é de que em 2020 o câncer já vai ser a principal causa mundial de morte.

 

ENCONTRO – E já se sabem os motivos desse aumento? O estresse seria um deles?
ENALDO MELO DE LIMA –
Esta é uma boa pergunta. O que já sabemos é que mais ou menos de 30% a 40% dos cânceres são evitáveis. E como se evita câncer? Não fumando, reduzindo o consumo de bebida alcoólica, reduzindo o peso e o sobrepeso, evitando a exposição solar excessiva, fazendo o sexo seguro. Para se ter uma ideia, de 15 a 17% de todos os cânceres são causados por infecções, ou por vírus, como o HIV ou o HPV.

 

ENCONTRO – Outro ponto importante é o diagnóstico precoce...
ENALDO MELO DE LIMA –
Sem dúvida. Pegue, de novo, o exemplo dos Estados Unidos: eles têm 1,5 milhão de casos por ano, mas a curva de cura lá só está aumentando. E por quê? Primeiro, porque têm acesso aos bons tratamentos e por causa do diagnóstico mais cedo. Lá, o câncer é geralmente descoberto nos estágios 0, 1 e 2. E aí a chance de cura é maior. Para isto, eles fazem exames regulares. Mamografia, nas mulheres acima de 40 anos de idade; exame de fezes de sangue oculto, tanto em homens como mulheres acima de 50 anos etc. Diagnóstico precoce custa dinheiro, mas dá mais resultados.

 

ENCONTRO – O câncer hoje acontece em pessoas mais jovens?
ENALDO MELO DE LIMA –
Não. Outro número importante para a população: 70% dos cânceres ocorrem acima de 70 anos. Câncer é uma doença de pessoas mais velhas. O câncer está aumentado mais porque as pessoas estão vivendo mais. As últimas estatísticas do IBGE mostram que o brasileiro está vivendo mais: hoje vive, em média, 74 anos. Há 40 anos se vivia 50 e poucos. Esta diferença de mais de 20 é claro que vai aumentar o número de incidência de câncer.

 

ENCONTRO – Pessoas que têm parentes com câncer na família têm mais chance de ter a doença?
ENALDO MELO DE LIMA –
Este é outro dado interessante: a genética responde apenas por 10% dos casos.

 

ENCONTRO – Algumas pessoas às vezes psicologizam muito a doença: teriam câncer pessoas tristes ou deprimidas. Existe alguma comprovação disto?
ENALDO MELO DE LIMA –
Cientificamente não existe nenhuma comprovação. Não há nenhuma pesquisa que prove ser verdade.

 

ENCONTRO – O Brasil investe muito pouco em saúde?
ENALDO MELO DE LIMA –
Pouquíssimo. Países com o mesmo padrão socioeconômico do Brasil (Chile ou Canadá) gastam de 5% a 8% do PIB. O Brasil gasta apenas 3%. Os brasileiros têm que repensar esse número. Com o envelhecimento do país, teremos que discutir mais essa questão. A Emenda 29 acabou de ser aprovada e foi um avanço, mas só ela não resolve. A sociedade toda deve envolver-se.

 

ENCONTRO – O senhor foi presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia por dois mandatos.
ENALDO MELO DE LIMA –
Foi uma experiência muito marcante. Meu segundo mandato foi muito voltado para conseguir corrigir a tabela do SUS. Reorganizamos a tabela que foi publicada em agosto de 2010. Ela estava congelada há 12 anos pelo Ministério da Saúde. A partir de uma mobilização, conseguimos chamar a atenção da sociedade para a grave situação que tínhamos no atendimento público. Fizemos algumas correções, mas não todas.

 

 
.