Revista Encontro

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"Autoridade se impõe pela confiança, não pela violência"

João Pombo Barile
None - Foto: Maíra Vieira

Numa área em que as notícias quase nunca são positivas, sempre recheadas de escândalos e quedas de ministros, o ano de 2012 começa com uma boa-nova para a política do estado: numa pesquisa realizada no ano passado pelo respeitado Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o pessedebista mineiro Eduardo Barbosa foi eleito o melhor deputado federal.

 

Publicada pela revista Veja, a enquete, chamada de Ranking do Progresso, classificou deputados federais e senadores com base em seu ativismo legislativo em favor de um Brasil mais moderno e competitivo. A pesquisa identificou oito grandes eixos (carga tributária menor, infraestrutura, qualidade da gestão pública, combate à corrupção, qualidade da educação, transparência e independência nas agências do governo, diminuição da burocracia e equilíbrio entre os três poderes), considerados fundamentais para uma boa legislatura e o que cada político fez em 2011, com projetos e participações em comissões do Congresso Nacional.

 

No quinto mandato como deputado federal, o médico Eduardo Barbosa é um homem discreto, de poucas palavras e muita ação. Presidente da Federação Nacional das Apaes (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), ele atua, desde os anos 1980, na luta pelos direitos das pessoas com deficiência e na modernização da legislação, a fim de torná-la melhor para as instituições que lidam com pessoas portadoras de deficiência. O médico mineiro é hoje uma referência nacional quando o assunto é educação.

 

“Fiquei muito feliz com a indicação”, conta o único deputado nota 10 da pesquisa. “No parlamento temos outros processos de avaliação, mas são sempre muito vinculados a articulações políticas que influenciam as decisões de governo. A vida parlamentar, mesmo, nunca é avaliada”, afirma Barbosa nesta entrevista a Encontro.

 

 

 

ENCONTRO – O senhor foi o único deputado nota 10 na pesquisa feita pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Esperava o resultado?

EDUARDO BARBOSA – Não, confesso que fui realmente pego de surpresa. Disseram-me apenas que uma pesquisa tinha escolhido os 50 melhores parlamentares.

Mas, sinceramente, não sabia que era o primeiro, não.

 

ENCONTRO – O senhor comemorou muito?

EDUARDO BARBOSA – Sim, fiquei feliz, porque o ranking não é alguma coisa feita de maneira subjetiva. Pela primeira vez, vi uma avaliação parlamentar de verdade. No parlamento temos outros processos de avaliação, mas sempre muito vinculados a articulações políticas que influenciam as decisões de governo. A vida parlamentar mesmo nunca é avaliada, e fica meio esquecida.

 

ENCONTRO – Desde o inicio de sua carreira o senhor sempre foi muito ligado à Apae. Poderia contar um pouco dessa história?

EDUARDO BARBOSA – Sou pediatra, e, quando me formei, minha mulher, que é fisioterapeuta, teve uma oportunidade de trabalho em Pará de Minas. Ela foi para lá trabalhar como voluntária na Apae, em meados dos anos 1980. Foi quando surgiu também uma chance de trabalho para mim lá. A Apae de Pará de Minas precisava de um pediatra, mas não tinha como remunerar um médico. Eu, a princípio, achei uma loucura e quase disse não, porque achava que deveria seguir carreira acadêmica. Mas, depois de uma visita que fiz à instituição, acabei me encantando com a Apae e me engajando no projeto.

 

ENCONTRO – A Apae de Pará de Minas, com a sua direção, acabou se tornando referência nacional?

EDUARDO BARBOSA – Sim. Eu era totalmente leigo no início, mas essa vontade de trabalho acabou fazendo com que montássemos uma equipe técnica muito boa. Aos poucos, fomos nos tornando referência regional, depois nacional e, hoje, internacional.

 

ENCONTRO – E quando a Apae em Minas decidiu lançar candidato?

EDUARDO BARBOSA – Em 1994 decidiram que eu deveria ser o candidato. Eu não era filiado a partido nenhum e acabei sendo uma zebra na eleição, com 38.640 votos ‒ uma votação expressiva para a época.

 

ENCONTRO – O senhor está no seu quinto mandato e, nos últimos meses, tem afirmado com insistência que os debates políticos no Congresso Nacional estão cada vez mais superficiais.

O debate público brasileiro está mesmo despencando?

EDUARDO BARBOSA – Nos últimos anos, tenho percebido uma perda de qualidade dos debates conceituais. O Congresso é uma casa que discute temas diversos e com pontos de vista diferentes. É um local muito rico, até para o aprendizado. E tenho percebido uma perda da qualidade. Hoje, o Congresso funciona muito a toque de caixa, a partir de uma agenda definida pelo executivo. Tudo é aprovado sem o aprofundamento das questões, e a gente vê que o corporativismo, de várias áreas, tem impedido o debate.

 

ENCONTRO – E em que setor da sociedade esse corporativismo é mais forte?

EDUARDO BARBOSA – Em vários. A sociedade civil brasileira é hoje muito organizada, e percebo que esta organização só tem aumentado. Eu não participei da Constituinte, em 1988, mas vários colegas me disseram que era assim também naquela época. Depois, houve um resfriamento, que, nos últimos tempos, só tem aumentando. Hoje, as próprias lideranças políticas orquestram vários segmentos na defesa dos seus interesses.

Na área dos trabalhadores, de uma forma geral, e na área da educação, a pressão é muito forte. É claro que os empresários sempre foram fortes, mas a mobilização deles é sempre maior nos bastidores. Além disso, não podemos nos esquecer dos grupos religiosos, que hoje têm muita força. Eles trazem questões muitas vezes de forma dogmática que acabam impedindo uma discussão mais racional.

 

ENCONTRO – A bancada religiosa atrapalha muito?

EDUARDO BARBOSA – Não posso dizer que atrapalha, mas tem uma visão muito cristalizada. E estou falando de todos os credos; não podemos ser preconceituosos. São evangélicos, católicos e de outras religiões. Todos têm estratégias fortes que muitas vezes impedem uma discussão mais aprofundada no Congresso.

 

ENCONTRO – De que maneira?

EDUARDO BARBOSA – Não se pode nem lançar a discussão, por exemplo, do aborto ou do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e você já é tachado como sendo a favor. A pessoa ganha o estigma e é rotulado só porque quer colocar a discussão em debate. Nosso processo democrático é ainda muito fraco. As pessoas são muito movidas pelas manchetes dos jornais e não se aprofunda a discussão. Elas são ainda muito regidas pelo chamado ‘politicamente correto’.

 

ENCONTRO – Como este ‘politicamente correto’ atrapalha a vida parlamentar?

EDUARDO BARBOSA – Eu gosto muito de dar o exemplo da área da educação. Ele é muito elucidativo. Nesta área, temos vários chavões, e o mais famoso deles é "o professor é mal remunerado". A solução? Pura e simplesmente aumentar a remuneração dos profissionais já resolveria a questão. E o que eu digo? É claro que a remuneração é um fator importantíssimo, mas não resolve tudo. É preciso aprofundar mais a discussão se quisermos realmente melhorar a educação no país. Na educação, o comprometimento de todas as pessoas é fundamental; além disso, é muito difícil discutir a meritocracia nessa área. É só você lançar essa discussão para logo dizerem que é uma tendência ideológica. Por causa desse ‘politicamente correto’, ficamos impedidos de discutir outras formas de educação.

 

ENCONTRO – Em comparação com a época do seu primeiro mandato, o senhor diria que o nível dos debates no parlamento hoje é mais baixo?

EDUARDO BARBOSA – É claro que a renovação do Congresso sempre é muito boa. Pode trazer pessoas de qualidade. Mas vejo que o interesse individualista hoje é muito maior, embora sempre tenha existido. No entanto, havia um momento que o interesse pelo bem comum, coletivo, republicano, prevalecia. Hoje, não. O que percebo é que a maioria das pessoas já chega ao parlamento querendo entender que proveito terá sobre aquilo, como vai garantir o seu próprio espaço, sem pensar em discutir as grandes teses. Acho que existe um aumento de parlamentares que têm uma visão mais individualista, mas é claro que isso não acontece apenas no parlamento. As pessoas, no geral, estão mais individualistas e isso se reflete lá. O mais grave é que esse espírito individualista acaba refletindo no trabalho parlamentar.

 

ENCONTRO – E quais são as consequências disso?

EDUARDO BARBOSA – Sem espírito coletivo, a formulação é míope; as leis são formuladas dentro de uma lógica pragmática, de um interesse imediato. E o parlamento não pode ser assim: ele tem de pensar o país a longo e médio prazo. Este ‘politicamente correto’ atrapalha dessa maneira: só se pensa no imediato e para satisfazer a determinados grupos. Só se pensa na frase de efeito, que pode dar manchete. Por isso gostei da pesquisa: ela não valorizou a retórica, porque não foi feita para jogar para a plateia. Uma retórica que não muda nada e não influencia nas decisões parlamentares. E, muitas vezes, a própria mídia acaba caindo na tentação da retórica também.

 

ENCONTRO – A velha história dos jornais sempre atrás da manchete...

EDUARDO BARBOSA – Exato: a busca da manchete. E isso vira um círculo vicioso, a valorização de um vazio, que não ajuda em nada o debate. Para mim, o Congresso não foi feito para jogar para a plateia. Temos uma obrigação mais séria com a população. Devemos aprofundar mais as discussões. Não quero, com esta análise, dizer que a situação é de terra arrasada no debate do Congresso. Mas temos, sim, vários problemas.

 

ENCONTRO – Um dos chavões que a imprensa ajudou a criar foi a chamada “lei da palmada”. Quase todas as matérias colocam a questão quase como uma piada. O senhor é um dos defensores da lei. Como mudar essa impressão?

EDUARDO BARBOSA – Esse é mesmo um ponto muito sério. É preciso esclarecer o que queremos com esta lei, então vamos por partes. Indicadores sociais mostram que a criança brasileira vivencia um grau de violência muito grande dentro de casa. Todas as pesquisas mostram que muitos dos meninos que estão na rua hoje, na verdade saíram de casa por causa da violência doméstica. O espancamento é uma das maiores expressões de violência que temos dentro da nossa cultura. A lei, que acabou sendo rotulada erroneamente de “lei da palmada”, nada mais é do que um processo de castigo aos castigos corporais. Em sã consciência, ninguém quer que as relações familiares se estruturem a partir da violência. E quando falamos de castigo corporal não é só um tapinha, não. São castigos que vão do espancamento até apagar cigarros na pele da criança. Não é uma coisa tão simples assim.

 

ENCONTRO – E o que precisa ser feito?

EDUARDO BARBOSA – O que se deseja é estabelecer uma cultura diferente, em que as famílias comecem a perceber que têm de criar um ambiente familiar mais confiável e saudável. Um ambiente não de autoritarismo, mas de autoridade. E autoridade se impõe pela confiança, não pela violência. A sociedade brasileira tem de começar a perceber que a violência não pode ser uma constante.

 

ENCONTRO – Os críticos da lei dizem que ela seria uma interferência muito grande do estado na criação dos filhos.

EDUARDO BARBOSA – A lei quer apenas servir de referência. Este projeto não quer apenas definir novo comportamento entre os brasileiros. Por isso já fomos aos ministérios da Saúde, Educação e do Desenvolvimento Social. A gente sabe que não tem apenas de definir um comportamento; é preciso dar apoio às famílias por meio de órgãos do governo que consigam identificar onde existe a violência. Por isso os educadores e os profissionais de saúde são tão importantes, podem ajudar a identificar onde está a violência. A imprensa fala muito da violência presente na rua, mas se esquece de que a origem é doméstica.

 

ENCONTRO – Então é preciso mudar a sociedade brasileira?

EDUARDO BARBOSA – Uma lei como essa traria, no médio prazo, uma importante mudança de comportamento que, claro, vai se refletir nas ruas. Recentemente, eu vi um caso, ocorrido em Neves, de duas alunas que brigaram e bateram na professora. No outro dia, as duas mães foram convocadas para discutir o problema das filhas. E o que aconteceu? As duas mães também acabaram brigando. Ou seja, as filhas estavam apenas reproduzindo o ambiente em que sempre viveram. É preciso quebrar esse ciclo e a lei é uma tentativa disso.

 

ENCONTRO – A lei, então, não representaria uma interferência?

EDUARDO BARBOSA – O estado, hoje, tem realmente essa tendência de intervir na vida pessoal das pessoas, mas não é isso que estamos propondo. Sou contrário à interferência; de, em nome do politicamente correto, impor uma visão de mundo. Muitos argumentam que a lei seria uma interferência muito grande e que, amanhã, um pai não poderá dar um tapa no filho para poder educá-lo, porque seria denunciado. Eu também não quero que a minha vida seja regida pelo estado, mas não é este o caso da criança agredida.

 

ENCONTRO – Entre os deficientes mentais essa violência é ainda maior?

EDUARDO BARBOSA – Sem dúvida. Quanto mais deficiente, mas dependente da família. Quando você não tem nos pais a formação e a percepção das limitações de um filho deficiente, a violência acaba sendo maior. É muito comum, por exemplo, estupro e abuso sexual dentro de casa, e geralmente não existe denúncia. São pessoas que têm ciclos restritos de convivência; estão o tempo todo com a família ou na escola. O problema é que a pessoa com deficiência intelectual nunca é levada a sério, e o controle desse tipo de violência fica mais difícil.

 

ENCONTRO – A tendência é de que a lei seja aprovada?

EDUARDO BARBOSA – Tenho minhas dúvidas. Temas como esse a gente não consegue prever o que vai acontecer no plenário. Minha esperança é que hoje temos muitas mulheres parlamentares, e elas, com certeza, estarão a favor. Vão trazer o lado mãe-e-mulher para a discussão, fundamental para o debate. E pode ser que elas contagiem os demais.

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