Revista Encontro

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Cadê nossos craques?

Vicente Cardoso Jr.
None - Foto: Cláudio Cunha, Júnia Garrido, João Carlos Martins, Divulgação

Na seleção brasileira tricampeã de 1970, quatro dos jogadores titulares vestiam a camisa 10 em seus clubes. Na ocasião, Jairzinho levou a 7; Gerson, a 8; e Rivelino, a 11, pois ninguém disputaria a 10 com seu “inventor”, Pelé. Depois dele, esse número estampado no uniforme nunca mais foi o mesmo no futebol – virou sinônimo de craque. Tradicionalmente, o 10 é o jogador que faz a ligação entre o meio e o ataque, com capacidade para criar jogadas e finalizar. “É a posição mais propícia para ser o craque do time”, afirma o jornalista esportivo Marcelo Barreto, autor do livro Os 11 Maiores Camisas 10 do Futebol Brasileiro. Entretanto, se em outras gerações o Brasil foi berço de notáveis jogadores que encarnaram e reforçaram o mito da 10, hoje levanta-se a questão: foi apenas o futebol que mudou ou o país já não forma mais tantos craques como antigamente?

 

No futebol mineiro, com a falta de grandes jogadores locais para desempenhar esse papel de ligação, o jeito foi buscar no país vizinho alguém para fazer o enganche (‘engate’, em espanhol – outro modo de se referir aos camisas 10 na Argentina). Walter Montillo é quem veste a camisa histórica no Cruzeiro desde o segundo semestre de 2010. “Em todo o lugar, o 10 é o cara diferente”, ressalta o argentino, mostrando-se já familiarizado com a gíria brasileira.

Segundo Montillo, o cara que engancha meio e ataque, perdeu certo espaço no futebol argentino atual, mas sua função ainda é respeitada no Brasil. “Para nós é bom, porque a gente pode demonstrar que o camisa 10 continua vigente”, avalia o jogador que, antes de chegar ao Cruzeiro, estava no futebol chileno.

 

Damián Escudero chegou ao Atlético Mineiro no início do ano para reforçar a presença hermana nos gramados mineiros. A adaptação foi rápida – ele já está no futebol brasileiro desde o ano passado, defendendo o Grêmio de Porto Alegre. Além disso, Escudero considera que o “jogo mais rápido, mais dinâmico” praticado no Brasil coloca vantagens para um jogador de seu estilo. O futebol argentino, mais truncado e de maior contato, costuma ser menos generoso com seus camisas 10 do que o brasileiro.

 

O jornalista Marcelo Barreto, autor de um livro sobre os melhores jogadores da posição no Brasil: “Investir num craque leva tempo e custa dinheiro"
 

 

Coincidentemente, os dois jogadores foram recebidos pelo mesmo treinador em suas chegadas ao futebol mineiro. Cuca, atual comandante do Atlético-MG, treinava o rival Cruzeiro quando Montillo foi contratado. Ninguém melhor, portanto, para falar dos dois: “O Escudero é um jogador mais tático, de lado de campo, que entra bem em diagonal; já o Montillo é um meia-ponta-de-lança, que faz a jogada individual mais vertical em direção ao gol”, explica. Postas as diferenças de estilo, o que os dois meias trazem em comum é a responsabilidade de serem hoje os principais articuladores de suas equipes.

 

Escudero assumiu a 10 do time alvinegro desde o primeiro jogo da temporada e se destaca como principal garçom da equipe, liderando o número de assistências. Montillo, por sua vez, já é ídolo indiscutível e entrou para a história do Cruzeiro como seu principal goleador estrangeiro, com 31 gols (até o fechamento desta edição).

 

A vinda dos dois jogadores para Belo Horizonte tem a ver com o momento vivido pelo mercado sul-americano. “O poder econômico do futebol brasileiro melhorou significativamente, com aumento das cotas de TV e das receitas dos clubes, enquanto mercados que eram mais fortes, como o argentino e o uruguaio, perderam competitividade”, explica Eduardo Maluf, diretor de futebol do Atlético-MG. “Hoje, é muito mais barato trazer um jogador argentino do que contratar um de mesmo nível dentro do próprio país”, completa. Ao mesmo tempo, o futebol brasileiro também se tornou mais atrativo para os jogadores de países vizinhos, em termos de remuneração e visibilidade.

 

Marcelo Oliveira, ex-camisa 10 do Atlético e atual treinador do Coritiba: “Se ficar parado demais, o jogador acaba sendo anulado por um mais forte”
 

 

Uma espécie de efeito cascata também explica a tendência. Com vários jogadores sul-americanos se destacando no Brasil, outros clubes voltam sua atenção para esse mercado.

“Se esses jogadores estão vindo e dando bons resultados, claro que o outro vai buscar também. Tem momentos em que acontece o contrário: quando se contrata dois ou três e nenhum dá certo, gera desconfiança”, afirma Givanildo Oliveira, treinador do América Mineiro, outro time que foi à Argentina buscar um enganche. O meia Sebastián Sciorilli, formado pelo River Plate (de Buenos Aires) e contratado por empréstimo, juntou-se à equipe no início do ano e aguarda sua estreia. Já integrado ao grupo do Coelho e bem adaptado ao país, Sebastián reconhece a contribuição de seus compatriotas em sua transferência para o futebol brasileiro: “Eles me abriram as portas, agora tenho de fazer as coisas tão bem quanto eles”, diz.

 

Além de representar uma reação de mercado, a presença de argentinos assumindo a 10 no futebol brasileiro desperta a discussão sobre a formação de atletas no país. O ex-camisa 10 do América, Jair Bala, consagrado como maior jogador da história do clube, expõe sua visão um tanto apocalíptica e saudosista do tema: “Virou tanta marcação, marcação, marcação... que o futebol morreu!” Para ele, as categorias de base passaram a priorizar o preparo físico e a preferir o jogador alto e forte ao habilidoso. O resultado seria uma formação cada vez menor de atletas técnicos, com as características do típico 10: “Antigamente, se jogava com 10 craques e um quebrando o galho. Hoje, são 10 quebrando o galho e só um craque no time”, diz Jair Bala.

 

Jair Bala, o maior jogador da história do América: “Antigamente, se jogava com 10 craques e um quebrando o galho. Hoje, são 10 quebrando o galho e só um craque no time”
 

 

Atual técnico do Coritiba, Marcelo Oliveira também já carregou a responsabilidade da camisa 10, assumindo-a no histórico time do Atlético Mineiro dos anos 1970 e 80. Oliveira, que treinou a base do clube mineiro por quase 10 anos, discorda que os mais baixinhos perderam espaço nas categorias formadoras, mas destaca que a evolução do preparo físico de fato mudou o sistema de jogo, fazendo com que o 10 tradicional perdesse um pouco de sua liberdade criativa.  “O futebol ficou mais dinâmico.

O jogador tem de cumprir muito mais funções; se ficar parado demais, acaba sendo anulado por um jogador forte”, afirma o treinador. Em contrapartida, ele destaca outro fator que teria contribuído para uma menor inventividade entre as novas gerações. “Na minha época, até uns 14 anos jogava-se pelada quase todo dia, em grama, terra, quadra... Essa base de pelada praticamente acabou, e era um fator que aguçava a criatividade”, ressalta Oliveira.

 

Titular da 10 no time cruzeirense que ganhou a Taça Brasil de 1966 e a Libertadores de 1976, Dirceu Lopes lembra que os maiores times do futebol brasileiro foram formados essencialmente por pratas da casa. Hoje secretário de Juventude, Esportes e Lazer de Pedro Leopoldo, na grande BH, ele vê o cenário da formação de atletas de modo similar a Jair Bala: prioridade para o físico; a técnica, em segundo plano.

 

O jornalista Marcelo Barreto, do canal de televisão por assinatura Sportv, explica que essa inversão de valores tem como pano de fundo o caráter exportador que se estabeleceu no futebol brasileiro: “Investir num craque leva tempo e custa dinheiro. Muito mais fácil é selecionar os garotos mais altos e mais fortes, ensiná-los a marcar e negociá-los como zagueiros ou volantes”, diz.

 

Dirceu Lopes, titular do time cruzeirense que ganhou a Taça Brasil de 1966 e a Libertadores de 1976, sobre o momento do futebol no país: prioridade para o físico e técnica em segundo plano
 

 

Uma fagulha acesa pelo passeio do Barcelona, da Espanha, diante do Santos de Neymar, na final do Mundial de Clubes da Fifa, em dezembro de 2011, dá alguma esperança a Dirceu Lopes. Em bom mineirês, o ex-jogador do Cruzeiro reproduz o espanto de Guardiola, técnico do Barcelona, com as perguntas dos jornalistas brasileiros sobre o modo de jogar de seu time: “Uai, mas meu avô e meu pai sempre me falaram que o futebol brasileiro era assim. Eu não inventei fato nenhum, meu time simplesmente joga futebol”, teria dito o técnico da equipe catalã, nas palavras de Dirceu. Este, por sua vez, acredita que essa partida possa ser um princípio da lição que os dirigentes brasileiros precisam aprender.

 

Ao mesmo tempo em que Montillo e Escudero comandam Cruzeiro e Atlético, o mundo assiste a outro argentino que, no mesmo Barcelona, se destaca cada vez mais como o grande craque deste século. Lionel Messi é hoje quem atualiza, a cada jogada brilhante, o mito da camisa 10. Enquanto isso, a seleção brasileira passeia entre opções incertas para assumir a camisa que Pelé imortalizou. Pode ser escassez de momento, como também pode haver realmente uma crise na formação de meias habilidosos no futebol brasileiro.

 

 
 
 
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