Revista Encontro

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"Viver em família é administrar conflitos"

João Pombo Barile
None - Foto: Eugênio Gurgel

Até que a morte os separe. O juramento, feito ainda hoje pelos noivos na hora do casamento, está cada dia mais difícil de cumprir. Que o diga o aumento do número de divórcios experimentado em todo o país. Em Minas não é diferente. E os números falam por si: desde que foi promulgada a emenda constitucional em 2010, garantindo que os divórcios pudessem ser realizados diretamente nos cartórios de notas sem passar pela homologação judicial, os pedidos dispararam. A desburocratização mostrou a verdadeira cara do Brasil. Só em Belo Horizonte, esse aumento foi de 109,5%. Com o aumento das separações, a pergunta inevitável: será que a família está em crise?  Ou estaria até mesmo acabando?

 

Para o psiquiatra e homeopata Aloísio Andrade, discursos apocalípticos não fazem sentido.

“A família é totalmente dependente da época. E vai se organizando em função do contexto, vai dançado conforme a música”, explica o médico nesta entrevista. O especialista questiona certa visão romântica de que algum dia existiu uma família ideal. “Esta família de antigamente, estruturada a partir da rigidez e desse autoritarismo da hierarquia, funcionava só aparentemente bem”, dispara.

 

1) ENCONTRO – Nos últimos 40 anos, a família experimentou mudanças na sua estrutura. Com o aumento dos divórcios, nessa nova família convivem irmãos e pais de outros casamentos. É possível dizer se esta família contemporânea é mais feliz ou infeliz se comparada à antiga?
ALOÍSIO ANDRADE –
Em primeiro lugar, temos de lembrar que a espécie humana é a que mais tempo demora a liberar seus filhotes. Isto faz com que, dentre outros fatores, precisemos ser animais de bando, de grupo. Para ter de cinco a sete anos, período que o ser humano precisa para que o filhote fique mais autônomo, tem de haver um mecanismo de proteção conjunto-coletivo. Este é o primeiro ponto: a família não é uma mera curtição social. É uma necessidade imperiosa para que a espécie seja preservada. Em segundo lugar, devemos saber que a família se organiza para ter uma estrutura. E em função de um contexto. Resumindo: a família é totalmente dependente da época e se organiza em função do contexto, vai dançado conforme a música.

 

2) ENCONTRO – O conceito de família vai mudando ao longo do tempo?
ALOÍSIO ANDRADE –
Claro.

O que tínhamos nas décadas de 1940, 50 e até início de 60 eram famílias com estruturas rígidas, onde o diálogo era colocado em segundo plano. A hierarquia vinha sempre na frente. As famílias surgiam a partir de um homem e uma mulher que se casavam sem praticamente se conhecerem. Às vezes eram prometidos pelos próprios pais e esses namorados não tinham sequer a oportunidade de uma convivência maior. Era um tiro no escuro: fazem parte dos maiores traumas do gênero feminino os traumas de lua-de-mel. A mulher não tinha vivência e experiência nenhuma. Essa família, estruturada a partir da rigidez e desse autoritarismo da hierarquia, funcionava bem só aparentemente. Só quem fazia parte dela sabia o que de verdade acontecia entre quatro paredes.

 

3) ENCONTRO – O sr. está dizendo que fantasiamos a ideia de um certo tipo de  família tradicional, que teria existido, e que nos últimos 50 anos deixou de existir?
ALOÍSIO ANDRADE –
Na verdade, ela nunca existiu. O que existia era uma aparência de adequação.

Essa é a vantagem do autoritarismo e das normas: você simplesmente pega uma caixa, bota tudo dentro e tampa. Mas isso não quer dizer que não existam problemas. Pelo contrário. Quer dizer apenas que eles não eram manifestos. As famílias antigas tinham, aparentemente, estruturas saudáveis. Mas se sustentavam na base da força e da falta de liberdade de expressão.

 

4) ENCONTRO – Famílias com um volume de ressentimentos muito grande.
ALOÍSIO ANDRADE –
Exato. Parto do princípio de que as relações familiares são relações energéticas, espirituais e cármicas. E temos de admitir: algumas cármicas boas e outras, não. Não existe relação familiar neutra, normal. Ou a gente tem identidade com esse irmão, com esse pai, com essa mãe, com esse filho, ou não. Não existe meio-termo. Todas as relações familiares, em todas as famílias, têm pontos controversos, pontos de administração de conflitos. E temos então o primeiro problema: a convivência. A convivência gera contato, contato gera atrito, atrito gera cargas elétricas, cargas elétricas geram descargas elétricas, que são as explosões. O primeiro desafio do núcleo familiar é ter de conviver muito, ou pelo menos mais do que com os outros grupos, num nível de intimidade maior do que no grupo de trabalho. A partir desta convivência cotidiana começam a surgir as primeiras dificuldades.

 

5) ENCONTRO – Portanto, viver em família é viver em um ambiente onde precisamos saber administrar os conflitos.
ALOÍSIO ANDRADE –
Você não pode se esquecer que, dentro da família, com a pessoa que a gente tem mais identidade, temos de tomar cuidado para não nos tornarmos dependentes dela. Quer dizer: tenho tanta satisfação de conversar com determinado parente que, se puder, fico com ele o dia inteiro. E também o contrário: o desafio daquele filho, ou daquele pai, de que você tem antipatia, diferença energética espiritual. As famílias são ambientes de desafio. Viver em família é administrar conflitos.

 

6) ENCONTRO – Não podemos dizer, então, que exista um padrão único de família?
ALOÍSIO ANDRADE –
Não. Hoje nós temos o que antigamente a psiquiatria chamava de “famílias disfuncionais”. O que era uma família disfuncional? Era uma família não composta de pai, mãe, e três ou quatro filhos. Uma família que tivesse, por exemplo, a mãe e os filhos, mas não o pai, era disfuncional. Ou ainda era disfuncional uma família que tivesse só pai, mãe e apenas um filho, disfuncional porque não era usual, não tinha o modus operandi tradicional, da casa cheia de filhos. Com as transformações acontecidas na sociedade, sobretudo a partir dos anos 1960, passamos a ter as chamadas novas famílias. Temos hoje, por exemplo, a família de uma única pessoa. É muito comum uma pessoa que mora sozinha, com um bicho de estimação e algumas plantas. E podemos chamar este tipo de organização de família. Além disso, é cada vez mais comum a chamada produção independente: mulheres que têm seus filhos descartando o pai já logo no primeiro momento. Ela não tem interesse que o pai biológico tenha relação com a criança e que seja pai efetivamente da criança. E devo confessar: esse tipo de família tem me preocupado muito.

 

7) ENCONTRO – Por quê?
ALOÍSIO ANDRADE –
Porque essa mulher estabelece uma cumplicidade com o filho que acaba sendo algo que não é incestuosa sexualmente, mas que é, de certa maneira, inadequada afetivamente. O que Freud chamava de simbiose. Freud ensina que a simbiose, no homem, significa que uma metade junta com outra e acha que é um inteiro. Quando uma das duas metades sai, a outra simplesmente despenca. Por isso essas relações são muito neuróticas. O projeto de ter um filho sem ter alguém que compartilhe, ajudando a fazer o contraponto, não é bom.

 

8) ENCONTRO – Ter a figura dos dois, do  pai e da mãe, é fundamental na formação da criança?
ALOÍSIO ANDRADE –
Normalmente, o que acontece? A mãe mais gente boa e mais compreensiva. E o pai mais jogo duro, mais durão. No treinamento da criança, ela precisa ser estimulada por aquilo que a gente chama de impulso do entusiasmo; mas ela precisa, também, ser limitada por meio do freio. Um limite do não. Por exemplo: você não vai comer um brigadeiro antes do almoço. Por quê? Porque se você comer vai estragar seu apetite. O limite, aquilo que a gente chama de “careta”, normalmente é função do pai. E o acolhimento é mais a mãe. Mas, hoje, os papéis às vezes estão trocados.

 

9) ENCONTRO – E essa troca funciona bem?  
ALOÍSIO ANDRADE –
Funciona, sim. Desde que, claro, não haja neste pai cuidador, neste “homem dono de casa”, o sentimento de revolta, de mediocridade, de ele se sentir pior porque, teoricamente, está dentro de casa e não na rua. Ele, em vez de estar fazendo o dinheiro, está administrando o dinheiro. Nós temos hoje adolescentes, na faixa de 14 anos, que já tiveram dois ou três pais. O pai biológico, depois um ou dois padrastos. E fora os meio-irmãos. Esta quantidade de novas formas da família gera uma necessidade muito grande de adaptação e de criatividade. São famílias novas com um padrão diferente. Hoje já é comum, por exemplo, casais do mesmo sexo que criam filhos.

 

10) ENCONTRO – O que o senhor pensa sobre esse tipo de casal adotar e criar filhos?
ALOÍSIO ANDRADE –
O que posso dizer é que não existe nada unicausal. E dou um exemplo: um filho de alcoólatra pode se transformar em alcoólatra por causa do mau exemplo de um pai. Mas também pode pegar uma grande aversão ao álcool por conta do trauma. O que quero dizer é que não é possível sabermos se o filho de um alcoólatra vai seguir ou não o padrão do pai. O que apenas podemos dizer é que uma das principais características do ser humano é adaptabilidade. Acho que hoje as relações familiares são mais saudáveis porque as coisas são mais explícitas. Claro: cabe ao Estado um regulamento para essas novas famílias. Você pode ter, sim, um casal homossexual, masculino ou feminino, que propicie um ambiente mais harmônico que um casal de heteros. Não podemos, portanto, é trabalhar com juízos de valores

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