Revista Encontro

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Capital do hip hop

Daniela Costa
None - Foto: Leo Araújo

O hip hop tem território marcado e demarcado na região central de Belo Horizonte. Todas as sextas-feiras, por volta das 21h, o agito toma conta das noites no quarteirão entre a Praça Rui Barbosa, ou Praça da Estação, e a Serraria Souza Pinto, cenário que ganha uma diversidade de estilos e classes sociais. Há cinco anos, sob o viaduto Santa Tereza, jovens se concentram à espera da festa, marcada pelo incrível Duelo de MCs neste movimento cultural em que o rap, a dança e a arte do grafite se encontram. 

 

Enquanto sobre o viaduto circulam pedestres apressados e motoristas com seus carros e ônibus, embaixo, no palco improvisado, os preparativos para o evento correm a todo vapor, com os testes dos equipamentos de som e a inscrição dos participantes, que é feita na hora, ao custo simbólico de R$ 2 − valor convertido em prêmio para o ganhador dos duelos. A única ajuda financeira que os organizadores recebem vem de doações que são colocadas em uma latinha, que é passada de mão em mão entre a plateia. O dinheiro é usado para pagar despesas com o transporte de material.

 

Um grito de guerra repetido com intensidade pelo MC Monge, mestre de cerimônias, sempre marca o início do duelo: “O que acontece aqui?”. O público, entusiasmado, responde por três vezes seguidas: “Duelo de MCs”. Na sequência, oito candidatos começam, em duplas, a disputa pela liderança em dois ou três rounds de 45 segundos. Nas batalhas ou freestyle, vence quem faz  a melhor rima, demonstra maior conhecimento sobre o assunto, é mais ágil e tem mais carisma.

 

“Na ‘batalha de enfrentamento’ o tema é livre.

Mas no ‘duelo de conhecimento’ existe um tema específico e palavras de referência que precisam ser respeitadas. Desde 2010, também fazemos o duelo do ‘Bate e Volta’, em que a contagem é feita no compasso da música”, explica Leonardo Cezário (MC Leo), 32 anos, idealizador do evento e integrante do coletivo Família de Rua, grupo que realiza diversos eventos ligados ao hip hop em BH.

 

Do Duelo de MCs de BH saem fortes representantes do hip hop mineiro no Brasil, como os MCs Vinição, Brisa Flow e Douglas Din: “Fui finalista do duelo nacional realizado pelo rapper Emicida e fiquei muito feliz”, diz Douglas
 
O grafite também está presente no Duelo de MCs e traz nova identidade às paredes do viaduto Santa Tereza: “É uma intervenção positiva, que reflete parte da cultura da cidade”, explica o grafiteiro Michel
 

 

Apesar de implícitas, as regras da disputa são claras. Qualquer manifestação de caráter negativo, por exemplo, é pontuada pelo mestre de cerimônias após o duelo, e o candidato perde pontos. “Eles são julgados por dois juízes e também pelo público. Desta forma, conseguimos manter o nível dos nossos duelos”, explica Pedro Valentim (MC PDR), 28, que também é um dos organizadores.

 

Antes de dar início aos trabalhos, o DJ Juninho agita a pickup com raps politizados que falam de amor, criticam o sistema ou fazem referência a problemas sociais vividos especialmente pelas comunidades carentes. Próximo ao palco, b-boys e b-girls arriscam passos tímidos de dança que, com o passar das horas, se tornam cada vez mais frenéticos. Elas se deixam levar pelo gingado dos bambolês; eles, rodopiam em movimentos que, de tão rápidos, às vezes são difíceis de ser visualizados.

 

Entre os dançarinos, o destaque é o coreógrafo Eduardo Sô, 44 anos, um dos precursores do break na capital mineira. “O street dance é um rótulo usado para denominar vários estilos de danças urbanas, entre elas o hip hop dance e o breaking, ambas de caráter social, e que sempre são apresentadas aqui”, diz. Na metade do espetáculo, uma banda − geralmente formada por jovens que querem divulgar o seu trabalho e não têm oportunidade nos meios convencionais − é convidada a se apresentar.

 

Em sua pickup, o DJ Juninho garante a diversão do público no Duelo de MCs, tocando raps politizados que falam de amor a problemas sociais: “O hip hop defende e toca a igualdade”
 
Em ritmo acelerado, b-boys e b-girls dançam o street dance ao lado do palco. À frente, o coreógrafo Eduardo Sô, a referência: “O breaking é uma das mais fortes manifestações da cultura hip hop”
 

 

Ao mesmo tempo, as colunas do viaduto Santa Tereza sofrem intervenções feitas por grafiteiros, como o professor de arte Michel Testa, 29 anos. “O grafite é uma manifestação artística que dá identidade a um lugar, a uma cidade, e reflete a mensagem que o artista quer transmitir”, afirma.

 

Tanto o break quanto o grafite, o rap (MCs) e os DJs fazem parte de um só contexto: a cultura hip hop. Iniciada na década de 1970 em Nova York por Afrika Bambaataa, ela tem como princípio fundamental a inclusão social. “A intenção é desconstruir o preconceito e diminuir a distância entre as classes, mudando também a maneira como as pessoas enxergam as ruas da cidade e entendem a ocupação do espaço público que, na verdade, é um direito nosso”, garante Pedro Valentim.

 

O Duelo de MCs surpreende pela diversidade de estilos e classes sociais de seus frequentadores.
Entre eles, o casal Carolina Lima e César Augusto Santos: “Sempre que podemos, trazemos o Eduardo, nosso filho, para curtir o evento”
 

 

Vencer o preconceito é um dos desafios enfrentados diariamente pelos integrantes do Duelo de MCs. “Não só existe preconceito das pessoas em ir ao duelo, como com o hip hop em geral. O fato de ser uma manifestação popular, de estar na rua, debaixo de um viaduto, assusta muita gente”, desabafa Cezário.

 

Com cerca de mil participantes em cada sexta-feira, outro desafio é conscientizar os frequentadores sobre a necessidade de se manter o respeito e a ordem no espaço utilizado. Como é um evento de rua, há pessoas que vão ao local com outras e perigosas intenções, como o uso e até tráfico de drogas. “Por isso, começamos a articular parcerias com o poder público e a sociedade civil para coibir e, ao mesmo tempo, instruir estas pessoas”, explica Pedro. O objetivo é apontar novos caminhos e possibilidades aos frequentadores, e, ao mesmo tempo, garantir a segurança dos presentes, a limpeza do espaço e a revitalização do viaduto.

 

A iniciativa tem dado certo, pois há gente das mais diferentes classes, profissões e idades participando do duelo. Um exemplo é o casal Carolina Fernandes Lima, 25 anos, enfermeira, e César Augusto Santos, 30 anos, artista plástico, que sempre que pode leva o filho, Eduardo, de 6, para curtir os embates. “Aqui tem gente de todas as tribos, é uma reunião de estilos e conceitos variados. Por isso, é muito legal participar”, diz Carolina.

 

O Duelo de MCs da capital mineira tornou-se referência nacional, sendo respeitado por grandes nomes do movimento, como o rapper Emicida, que citou o evento em duas de suas músicas e recentemente enfatizou a importância do movimento em entrevista dada à TV. Outro nome de peso que apoia o movimento é o pernambucano Nelson Triunfo, conhecido como o pai do hip hop no Brasil.

“O hip hop dominou, está nos quatro cantos do país. Por toda parte encontro pessoas que representam bem os quatro elementos desta cultura. E, em Belo Horizonte, o Duelo de MCs é uma manifestação muito importante”.

 

De BH saem fortes representantes que se destacam em duelos como o promovido pelo próprio Emicida em março deste ano, em seu programa de TV, Sangue B. Na grande final estava o mineiro MC Douglas Din, 21 anos, que enfrentou o carioca MC Nissin. “Desta vez não fui campeão, mas quase”, brinca Douglas, que é um dos favoritos em BH. Outro MC de destaque na cidade é Vinição, 19 anos, que conta o segredo para participar de um duelo: “Tem que sentir o momento, conter a emoção, saber conduzir o tema e ter sensibilidade”, diz.

 

 

 

Apesar de estar em número bem menor, já que poucas meninas encaram o freestyle (as temidas batalhas de rimas),  as mulheres também seguem carreira no hip hop. Uma delas é Brisa Flow, MC que, aos 24 anos, já participou de duelos e agora se dedica à divulgação do primeiro disco (Muito Longe para Ir. Muito Perto para Celebrar), lançado este ano em parceria com o rapper Fritz. “Estou muito feliz porque, além de fazer o que eu gosto, estou ganhando dinheiro com o rap”, diz Brisa.

 

Na estrada desde 1990, o grupo musical Julgamento também é referência em Minas e foi destaque no evento Palco Hip Hop 2012, que aconteceu em março, em BH, e segue com uma gama de programações em várias regiões da capital. Em seu álbum Muito Além, lançado em 2011, o som da guitarra, baixo e bateria se mescla à linguagem sonora do rock e do funk, embalado pelas batidas dos DJs. “O hip hop é comportamento, estilo de vida e, por isso, em nossas músicas, transmitimos o respeito à individualidade e à multiplicidade cultural e étnica”, diz o rapper Roger Deff, fundador da banda.

 

O viaduto Santa Tereza segue como palco certo das atrações do hip hop na cidade. E o coletivo Família de Rua prossegue com projetos como o Game of Skate − evento de skate tradicional na capital − e o Duelo de MCs Nacional, que pretende levar a disputa a sete capitais para escolher o melhor do Brasil, em uma eliminatória que terá Belo Horizonte como palco. O projeto já foi aprovado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura e agora só resta aguardar as boas novas. Como dizem os MCs, tudo "na tranquilidade".

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