Revista Encontro

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"O Brasil vai ditar as regras do capitalismo"

João Pombo Barile
None - Foto: Júnia Garrido

Mesmo aposentado da cadeira de Sociologia do Trabalho da Universidade La Sapienza de Roma, o italiano Domenico De Masi ainda é um dos mais conhecidos e influentes sociólogos europeus da atualidade. Durante visita a Belo Horizonte, em maio, a convite da universidade Fumec, ele fez um alerta: o Brasil, a partir de agora, vai ditar as regras do capitalismo ocidental, porém não é mais possível continuar imitando o modelo norte-americano.

 

Para Masi, o modelo de sociedade adotado no Brasil quase sempre foi o norte-americano. “Em tudo, na escola, na indústria, na universidade, nos jornais. É fácil copiar. E esta americanização só tem aumentado”, dispara o sociólogo. “Mas, agora que a América não é mais modelo, quem o Brasil vai imitar? A Índia? A China? O Islã? Pela primeira vez na história o Brasil terá que criar seu próprio modelo original. Um capitalismo diferente”, analisa.

 

Autor do best-seller  O Ócio Criativo, livro que nos anos 1990 esteve por mais de 52 semanas na lista dos mais vendidos, Domenico é um grande critico dos métodos de trabalho das grandes corporações. Segundo ele, muitas empresas brasileiras ainda não perceberam que inovação e criatividade são hoje fatores fundamentais para vencer no mercado, e ainda são gerenciadas por velhos paradigmas.

“Muitos empresários ainda confundem ócio com preguiça. E muitas empresas continuam a se organizar como uma linha de montagem do século 19, na qual a produção é resultado direto do número de horas trabalhadas”, afirma.

 

ENCONTRO – É verdade que foi a sua mulher, apaixonada pelo Brasil, que o convenceu a conhecer o país?
DOMENICO DE MASI –
É verdade. Minha mulher já conhecia o Brasil. E ela demorou muito tempo para me convencer a vir até aqui. Até que um dia, uma jornalista brasileira me procurou na Itália para uma entrevista. Depois que a matéria foi publicada, houve uma grande repercussão e começaram a chegar vários e-mails me convidando para vir ao Brasil. Mas eu sempre adiava a viagem. Até que um dia o convite foi duplo: para mim e para minha mulher. E então não pude negar.  Nesta primeira vez, estive em Porto Alegre, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, que acabou virando minha segunda cidade. Fiz lá grandes amigos: Affonso Romano de Santana, Marina Colasanti, Roberto Marinho, Ivo Pitanguy, Oscar Niemeyer. Sabe, eu gosto muito da cultura brasileira. Ela é mesmo extraordinária. Os brasileiros têm uma excelente literatura, antropologia, sociologia, arquitetura, música...

 

ENCONTRO – O senhor disse certa vez que se não morasse na Itália, moraria no Brasil ou na China.

Por quê?
DOMENICO DE MASI –
Moraria em um dos dois lugares não só porque são dois países em expansão econômica. Moraria porque são dois países com uma cultura extraordinária. É claro que o Brasil, por ser latino, é mais próximo a mim, que sou italiano do sul. Mas são duas culturas extraordinárias e, provavelmente, serão cada vez mais importantes para o mundo. Para mim, a Europa, além de viver hoje uma grave crise econômica, vive também um grande declínio cultural e política.

 

ENCONTRO – O senhor acredita mesmo que a Europa esteja em decadência cultural?
DOMENICO DE MASI –
Acredito. Não temos hoje mais os lideres que tínhamos no passado: pense na Alemanha de Konrad Adenauer, na Itália de Degasperi ou na Inglaterra de Churchill. Antes os lideres europeus tinham muito mais qualidade.

 

ENCONTRO – O senhor está falando de um declínio político e econômico. Mas será que este declínio é também cultural?
DOMENICO DE MASI –
Se não for declínio, eu diria que é desorientação cultural. Agora, o que eu não sei é se desorientação e declínio são a mesma coisa. É claro, esta desorientação não está restrita à Europa.

Temos uma desorientação demográfica com sete bilhões de pessoas no mundo e com uma longevidade que antes não existia; temos uma desorientação sexual com o papel do homem e da mulher muito confusos; uma desorientação política, já que é cada vez mais difícil sabermos o que é esquerda ou  direita; uma desorientação estética, porque esta cada vez mais difícil saber o que é feio e bonito. São muitos elementos de desorientação que atualmente definem a cultura européia.

 

ENCONTRO – Para o senhor esta crise européia vai demorar a passar?
DOMENICO DE MASI –
Claro que sim. A crise na Europa será permanente. A conta é simples. O PIB per capita europeu hoje é de US$ 37 mil dólares. Na China é um pouco mais de US$ 3 mil. Para onde o mundo vai continuar crescendo? Onde existe mais espaço. A China terá 400 milhões de automóveis em 2020. Você acha que a gasolina vai continuar custando o mesmo que hoje com esta demanda? Para os europeus, acabou a época de saquear os países pobres. O PIB europeu, a partir de agora, deverá começar a cair para algo em torno de US$ 22 mil. E isto não é ruim, já que o consumismo será posto em xeque.

 

ENCONTRO –  O senhor conhece o Brasil há pelo menos 20 anos. Como vê a situação do país hoje?
DOMENICO DE MASI –
Acho que a sorte do Brasil foi ter tido oito anos de centro direita e, logo em seguida, oito anos de centro esquerda. Isto foi uma maravilha. Fernando Henrique, Pérsio Arida, José Serra acumularam a riqueza. E Lula, logo em seguida, a distribuiu. Eu sempre digo:  se tivesse acontecido o contrário, primeiro Lula e depois Fernando Henrique, teria sido um fracasso. Esta ordem foi muito importante: Fernando Henrique, um grande economista e sociólogo, que criou o real, fez uma política cambial correta. E Lula que a distribuiu.

 

ENCONTRO – O que o senhor enxerga como a principal mudança?
DOMENICO DE MASI –
Sem dúvida nenhuma, em primeiro lugar foi a auto-estima. Os brasileiros hoje têm uma grande auto-estima. E isto é bom, claro. Mas também pode ser perigoso. E sabe por quê? Porque pode gerar arrogância. Outra coisa que tem me chamado muito a atenção quando venho ao Brasil é como os preços têm aumentado rapidamente. Os preços em BH, no Rio, São Paulo e Curitiba são exatamente os mesmos de Roma. Acho isto muito estranho. E me pergunto: se os salários não aumentaram, o que está acontecendo com a classe média brasileira? Ela só pode estar perdendo o seu poder de compra. E isto também é muito perigoso porque pode acabar gerando crise no consumo.

 

ENCONTRO – O senhor, sempre que vem aqui, diz que o Brasil ainda não percebeu a riqueza que o turismo pode gerar. Será que hoje os brasileiros ainda não descobriram o potencial do turismo?
DOMENICO DE MASI –
Ainda não. Hoje o turismo aumenta em todo o mundo. Há um bilhão de pessoas que se movimentam por todo planeta e por até 30 dias. Pessoas sempre mais ricas, mais cultas e mais estressadas. E enquanto o turismo aumenta em quantidade, aumenta também a qualidade do turismo. Hoje há um turismo mais culto, sofisticado, que não se interessa só pelas belezas naturais, mas também pela cultura. As pessoas querem hoje, alem do mar e da montanha, os museus e as salas de concerto. Na Itália, 11% do produto interno bruto é gerado pelo turismo. Na Espanha este número chega a 12%.  No Brasil este número é de apenas 2%.

 

ENCONTRO – Mas por que o senhor acha que o turismo não cresce por aqui de forma significativa?
DOMENICO DE MASI –
Eu diria que por dois motivos: em primeiro lugar, porque o governo brasileiro nunca se interessou, de verdade, em desenvolver o turismo. Aqui não existem, por exemplo, ferrovias. E isto é uma verdadeira loucura. Como explicar que não exista um trem decente que una o Rio de Janeiro e São Paulo? Belo Horizonte e São Paulo? É uma piada. Hoje de Marselha a Paris, que são 775 quilômetros, você faz em três horas e meia. Ninguém pega um avião para fazer esse trajeto. O mesmo acontece no percurso Roma-Milão. Mas o turismo também não cresce no Brasil por causa da violência, que espanta muitos turistas. E isto é realmente lamentável: na Itália recebemos, por ano, 35 milhões de turistas. Tenho certeza de que o Brasil poderia receber, por ano, ao menos 100 milhões de pessoas.  Eu sinceramente não entendo porque a classe dirigente brasileira ainda não entendeu como turismo pode gerar riqueza.

 

ENCONTRO – O senhor já conhecia Minas?
DOMENICO DE MASI –
Estive aqui outras vezes. Minas é uma sociedade com uma mentalidade mais industrial que o resto do Brasil. Acho as pessoas aqui menos consumistas do que em São Paulo, que se parece muito com Miami ou Milão.  O verdadeiro problema do Brasil é que os brasileiros, a partir de agora, vão ter que criar um modelo social. Afinal, até agora, o que os brasileiros fizeram? Sempre imitaram os norte-americanos. Aqui o modelo dos EUA é adotado na escola, na indústria, na universidade, nos jornais, em tudo. É fácil copiar. E esta americanização só tem aumentado. Mas agora que a América não é mais modelo, o que o Brasil vai imitar? A Índia? A China? O Islã? Pela primeira vez na história o Brasil terá que criar seu próprio modelo original, um capitalismo diferente.

 

ENCONTRO – Seu livro O Ócio Criativo causou grande polêmica quando foi lançado nos anos 1990. Suas ideias ainda são validas?
DOMENICO DE MASI –
Em linhas gerais, acredito que os conceitos do livro são validos sim. Não se esqueça que a velocidade das novas tecnologias aumentou ainda mais na última década. E isto tem uma implicação direta: cada vez mais o trabalho deve ser criativo. Na sociedade industrial a maioria dos postos de trabalho exigia pouquíssimas aptidões profissionais. Até um macaco poderia trabalhar na linha de montagem. Na sociedade pós-industrial, não. A maioria das funções de trabalho exige alguma aptidão intelectual. Num certo sentido, acho que meu novo livro (“A Felicidade”),  retoma a tese do ócio criativo e com mais profundidade. Os dois conceitos estão em grande sintonia, porque só se alcança a felicidade com o trabalho, o divertimento e o estudo. Isto é, só se alcança a felicidade conseguindo esse equilíbrio, que é exatamente o conceito de ócio criativo.

 

ENCONTRO – O senhor já disse que o Brasil talvez seja o pais do mundo mais preparado para o ócio criativo. Por quê?  
DOMENICO DE MASI –
Porque é pouco industrializado e o mundo do trabalho não está tão dividido como nos países de capitalismo mais avançado. A indústria dividiu, lentamente, o mundo do trabalho, do mundo do jogo e da família. Antes, no mundo rural, tudo isto era misturado. Foi a indústria que dividiu estes mundos: no mundo industrial, quando se trabalha se trabalha, quando se diverte se diverte. Com a indústria, o trabalho passou a ser feito num lugar preciso, dentro da empresa e numa hora precisa. Na sociedade pós industrial esta divisão não faz mais sentido. Mas os países que estão habituados a esta divisão têm dificuldade de se adaptar a estes novos tempos. Muitos empresários ainda confundem ócio com preguiça. E muitas empresas continuam a se organizar como uma linha de montagem do século 19, na qual a produção é resultado direto do número de horas trabalhadas.

 

ENCONTRO – O seu primeiro livro publicado no Brasil, “Emoção e Regra”, também teve um sucesso enorme na época...
DOMENICO DE MASI –
Confesso que o sucesso não me surpreendeu. Ele já tinha dito grande repercussão na Itália. Escrevi aquele livro numa época onde todos os livros de marketing falavam sempre a mesma coisa: aquele mesmo discurso norte-americano, todos iguais, repetitivos. Ai pensei: mas e o trabalho criativo? Por que nenhum destes livros tratam do tema?  Escrevi então um livro que começava em 1850 e terminava em 1950 e peguei como exemplo vários grupos criativos que mudaram a cara do mundo como o Instituto Pasteur, de Paris; o Círculo Filosófico, de Viena; e o Instituto de Pesquisa Social, de Frankfurt.

 

 
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