Revista Encontro

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Mulheres contra o crime

Vicente Cardoso Jr.
None - Foto: Nereu Jr; Eugênio Gurgel; Paulo Márcio; Geraldo Goulart; Paulo Márcio; Léo Araújo;

Os plantões, operações de madrugada e longos inquéritos ganham mais sentido para Karla Silveira Marques quando ela ouve da filha pequena: “Mamãe, quero ser policial igual a você, para prender quem faz coisa errada!”. Se a vontade da menina se confirmar no futuro, a mãe garante que dará apoio. Afinal, Karla, que é delegada da Polícia Civil há seis anos, sabe que o desejo manifestado pela filha pode não ser coisa de criança: ela própria seguiu a carreira inspirada pelo pai, Carlos Marques, hoje policial aposentado. Foi em 1972 que a primeira mulher ingressou no quadro da Polícia Civil mineira. Nesses quarenta anos, elas conquistaram seu espaço e garantem: há lugar para todos e todas. Só não pode haver para o preconceito.

 

Assim que foi aprovada no concurso para delegada, Karla foi lotada em Januária, no norte de Minas. Ela foi criada em Montes Claros e conhecia o machismo que faz parte da cultura da região. Por isso, achou que precisaria ter mais rigidez para corresponder ao posto que assumia.

“Não sei se realmente havia preconceito por parte de colegas e dos cidadãos, mas eu mesma, por ser mulher e ser nova, sentia que precisava me impor mais”, diz Karla. Mas em pouco tempo constatou que delicadeza e seu largo sorriso não eram incompatíveis com o trabalho policial.

 

 
 

Renata Ribeiro Fagundes também defende que a postura de delegado – ou delegada – não exige cara feia o tempo todo, mas reconhece que sua figura jovem e feminina às vezes surpreende quem chega a seu gabinete. “Outro dia veio um senhor que foi vítima de furto e falou: ‘Olha, não vou conseguir te chamar nem de doutora nem de senhora, porque você tem a cara da minha filha’”, conta Renata. Deixar de lado a vaidade por causa da profissão nunca passou pela cabeça dela, que confessa sempre carregar uma nécessaire para um retoque básico na maquiagem. Até para as operações fora da delegacia ela se arruma, mas nem sempre dá para manter o visual quando emenda uma ação de madrugada com o expediente do dia seguinte.

 

Durante as operações, não há distinção do papel que homens e mulheres exercem. Para Valéria Vieira da Silva, delegada da Polícia Federal, se há alguma diferença em ser mulher na polícia é apenas para o lado positivo. “Na hora de ouvir alguém, a pessoa se abre mais e fica mais tranquila com uma mulher. Até na hora de fazer uma busca, acho que a pessoa fica menos apreensiva”, diz a delegada. “O fato de ser mulher não me impede de ser firme, então isso sempre me beneficiou.” Valéria foi feirante, comerciante e advogada antes de se tornar delegada, e hoje, mãe de gêmeos de quase 2 anos de idade, reconhece que a carreira não é especialmente difícil de conciliar com a criação dos filhos. “Em termos de entrega, é um trabalho como outro qualquer.”

 

 
 

Para a carioca Alessandra Wilke, delegada da Polícia Civil mineira desde 2006, o trabalho muitas vezes toma tempo da vida particular, mas, no seu caso, a compreensão em casa é facilitada pelo fato de seu marido, Júlio Wilke, também ser delegado. Os dois foram parceiros nas investigações do desaparecimento de Eliza Samudio, que envolveu o então goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes – época em que Alessandra reconhece que a dedicação à vida particular foi praticamente nula. “Naquele mês e meio que duraram as investigações, nos entregamos completamente ao caso”, afirma. Em uma rotina normal, ela consegue encaixar todas as demandas do dia a dia na agenda, mas admite que fica apertado.

“Ser mulher, delegada, mãe, dona de casa e também esposa é delicado. Mas as mulheres conseguem fazer muita coisa ao mesmo tempo. Se depender do meu marido, ele sempre se esquece de pagar uma conta”, brinca Alessandra.

 

A delegada Tania Darc, que tem  três filhos jovens e está há 26 anos na Polícia Civil, também teve de superar situações difíceis. Ela ingressou no órgão como escrivã em 1985 e, nove anos depois, tornou-se delegada. De lá para cá, Tania garante que viu a inclusão da mulher na polícia se tornar cada vez mais natural, mas essa evolução não ocorreu sem percalços – até para ela própria. Ao engravidar da filha caçula, Tania foi vítima de retaliação e acabou sendo transferida sem justificativa, já que seu companheiro à época era um investigador da Polícia Civil, cargo hierarquicamente inferior ao que ela ocupava. “Fiquei muito machucada. Afinal, não poderia escolher com quem queria ter um filho?”

 

 
 

A história virou passado, e hoje Tania acredita que uma maior inclusão da mulher na polícia é importante até mesmo para desfazer a imagem de policial “pé na porta” que ainda prevalece na sociedade. “Hoje, essa imagem do policial tosco, durão, vem sendo trocada pela de uma polícia mais humanizada e respeitosa”, afirma.

 

Se cada vez há mais espaço para todos, por que não haveria para uma mulher que, além de competente, é símbolo de beleza? Após vencer um concurso de modelos, Margareth Travessoni experimentou a carreira na moda por cerca de seis meses durante a faculdade, mas a paixão pelo Direito falou mais alto. “Não quis trocar o certo pelo duvidoso; pelos estudos, você sabe que vai chegar a algum lugar”, afirma Margarth.

E logo ela viu que estava certa: pouco depois de se formar foi aprovada no concurso da Polícia Civil.

 

Para a delegada e ex-modelo, a identidade masculina ainda prevalece no meio policial, mas as mulheres conquistaram seu espaço com qualidades mais importantes que a força física. “À medida que a polícia se torna um órgão mais investigativo e menos de uso da força, as mulheres conquistam espaço, pois se equiparam em inteligência e em responsabilidade”, avalia Margareth, que há um ano foi cedida do quadro da Polícia Civil ao governo do estado, onde exerce o cargo de subcontroladora da Informação Institucional e da Transparência.

 

 
 

Paralelamente ao crescimento do número de mulheres no quadro da Polícia Civil, o órgão passou a especializar seu atendimento aos crimes cometidos contra o sexo feminino. Em 1985 foi criada em Belo Horizonte a primeira delegacia da mulher do país. Margareth Rocha, policial civil desde 1995, integrou a equipe de 1997 a 2001 e retornou em 2006.  Hoje é chefe da divisão de atendimento à mulher, ao idoso e ao deficiente, e também aos cidadãos LGBT. “Sempre tive muita identificação com a causa desses grupos mais vulneráveis. Nosso esforço é no sentido de tirar essas pessoas das situações de violência e de preconceito”, diz Margareth.

 

Por admirar o trabalho da irmã, Elizabeth Rocha, gêmea de Margareth, também enveredou para a carreira policial, assumindo também o posto de delegada da Polícia Civil em 1997. Sua trajetória também caminhou para o combate à violência contra a mulher e se tornou experiência fundamental em sua própria vida. “Delegada que trabalha no plantão guarda isso para sempre. É muito marcante, porque a vítima chega em um estado fragilizado, não só fisicamente, mas também emocionalmente”, relata Elizabeth. “Mais que operadores de direitos, temos de ser aquela pessoa que acolhe e ajuda”, completa.

 

O trabalho das irmãs à frente da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher rendeu às duas o título de cidadãs honorárias, concedido pela Câmara Municipal de Belo Horizonte. Para elas, o reconhecimento pelo trabalho certamente inspira outras mulheres a seguir a carreira policial. No entanto, acreditam que o cenário ideal será o dia em que o sexo feminino não desperte mais surpresas por suas conquistas. “Claro que as mulheres ainda se esforçam para chegar lá, mas o objetivo não é passar à frente dos homens”, diz a delegada Margareth. Como toda mulher, independente da profissão, o que ela deseja é que o fato de a mulher ocupar posições de destaque não seja visto como diferente. “Espero que um dia isto seja algo natural.”

 

 
 
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