Revista Encontro

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No alto da montanha

None - Foto: Geraldo Goulart, João Carlos Martins

Quando os fidalgos portugueses Antônio da Silva Bracarena e o irmão Lourenço (religioso que fundou o Colégio do Caraça) alcançaram o topo de uma serra nos caminhos do ouro de Minas Gerais para erguer um humilde eremitério e uma pequena igreja no século XVIII, não imaginavam que estavam dando início à história de um lugar que mais tarde receberia milhares de fiéis anualmente. Com o recente título conquistado de Atrativo Turístico de Especial Relevância – conferido pelo governo estadual –, o Santuário Nossa Senhora da Piedade, próximo a Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a 50 quilômetros da capital, tem tudo para se firmar como um dos principais redutos da fé no país. A capela original, chamada de Ermida, domina a paisagem do alto da serra e tem obras atribuídas ao mestre do barroco, Aleijadinho.

 

Vani Pedrosa, no restaurante Dom Resende, 
com delícias típicas da culinária local: doces, salgados, bolos e biscoitos produzidos 
de maneira fiel aos idos de 1700
 
 

Todos os anos, cerca de 120 mil pessoas deixam de lado o estresse da vida urbana em busca de tranquilidade e espiritualidade a 1.746 metros de altitude. O número de visitas está prestes a dar um salto, já que até maio do próximo ano será inaugurado um audacioso projeto: o Caminho Religioso Estrada Real (Crer), que ligará o Santuário de Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas, à Basílica de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, em Aparecida do Norte (SP). A ideia foi gestada pelo Instituto Estrada Real (ligado à Fiemg) nos moldes do famoso Caminho de Santiago de Compostela, que vai da Espanha à França e que atrai milhares de peregrinos de todos os cantos do mundo. “Estamos criando uma alternativa segura e preparada para receber as pessoas. O percurso poderá ser feito a cavalo ou mesmo de bicicleta”, afirma o secretário de Turismo de Minas Gerais, Agostinho Patrus.

 

Reitor do santuário desde 2009, padre Nédio Lacerda trocou o bairro Floresta em BH 
pelo santuário em Caeté: “Tive de aprender 
a dinâmica da montanha”
 
 

O caminho terá 850 quilômetros de extensão e coincidirá com parte da Estrada Real, passando por 37 cidades – 32 em Minas e cinco em São Paulo. Outra novidade é que a Cemig foi autorizada pelo governo a iluminar a entrada e o alto da Serra da Piedade para trazer maior segurança para devotos e turistas, o que deve também fazer o lugar ficar ainda mais bonito.

 

Outros projetos em andamento dependem de recursos financeiros.

Um deles é o do Centro Cultural João Paulo II, que abrigará todo o memorial da Serra da Piedade e do frei Rosário, que viveu por lá durante 50 anos. “O centro terá uma biblioteca com quase 12 mil volumes já restaurados e catalogados, e mais de 2 mil revistas e periódicos ligados à espiritualidade e à teologia”, revela o padre Nédio dos Santos Lacerda, reitor do santuário.

 

A estudante Geovana Andrez busca 
a paz e a tranquilidade da serra: “Venho para 
rezar e agradecer, e já recebi muitas graças 
de Nossa Senhora da Piedade”
 
 

Mas se engana quem pensa que o espaço da Serra da Piedade é dedicado apenas à religiosidade. A parte gastronômica vem ganhando destaque nos últimos meses, e estão em curso algumas pesquisas de resgate da culinária da região situada no Quadrilátero Ferrífero, que abrange cidades minerárias como Betim, Caeté, Catas Altas e Congonhas. Vani Maria Fonseca Pedrosa, supervisora de alimentos e bebidas do santuário, está à frente de um desses estudos. No restaurante Dom Resende Costa estão sendo servidas delícias que eram elaboradas nas fazendas mineiras da região lá pelos idos de 1700. São doces, salgados, bolos e biscoitos produzidos de maneira fiel à época. “Naquele período, a culinária mineira era marcada pela cozinha da escassez, ou seja, as pessoas faziam a substituição de vários ingredientes. Foi assim que a nossa culinária surgiu”, explica a pesquisadora. Um dos carros-chefes do restaurante é o café colonial, nome dado à farta refeição matinal que era servida na época da colônia. Na mesa, o tradicional pão de queijo, biscoito de polvilho, doce de leite, broas, roscas, entre outros quitutes.

 

 
 

O doce de leite servido no restaurante é bem diferente do que é produzido atualmente. Vani Pedrosa diz que para fazer o doce é preciso “secar o leite”, ou seja, deixá-lo cozinhando por seis horas, adicionando pouco açúcar, em fogo brando. “O resultado é um sabor delicioso e mais suave”, diz. Já o conhecido empadão, tradicional torta salgada, surgiu a partir das sobras: “O macarrão, a batata, o frango e a linguiça que sobravam das refeições viravam ingredientes dessa torta, que era coberta por uma massa”, diz a supervisora.

A ideia tem conquistado muitas pessoas. De acordo com Vani, o restaurante já está com a agenda fechada até novembro para receber grupos durante a semana à procura do café. No fim de semana, o café é servido a R$ 29,90 o quilo, das 15h às 18h30, no sábado; e das 8h às 10h30, no domingo.

 

Marcos Pessoa, gerente da lojinha de artigos religiosos: “As pessoas não escolhem trabalhar aqui; elas são escolhidas”
 
 

Outra receita resgatada é a de um queijo que pode se transformar no primeiro queijo tipo azul produzido em Minas, que deverá ser comercializado em breve. O pai da ideia é o antigo reitor do santuário, frei Rosário Joffily, que morreu em 2000, um dos principais personagens da história do templo. Alair Silva Severino, de 38 anos, que trabalha no santuário desde os 12, conviveu de perto com o frei. Foi Alair, aliás, uma das pessoas que ajudaram a trazer de volta a receita do religioso, que era elaborada a partir do queijo canastra. “Frei Rosário colocava o queijo por pelo menos 90 dias num quarto, e o produto ficava exposto ao clima da região. Não existe outro igual, o sabor é único”, diz Alair.

 

A aposentada Maria Tereza Félix, 
em sua primeira visita à ermida: 
“É uma bênção estar aqui” 
 
 

Além da fé e, agora, da gastronomia, a exuberância natural do lugar continua atraindo muita gente. E se é especial para quem visita, imagina para quem tem o lugar como local de trabalho? “Eu trabalhava na igreja Nossa Senhora das Dores, no bairro Floresta (em BH), e tive de aprender a dinâmica da montanha. É, sem dúvida, um privilégio”, afirma o padre Nédio dos Santos, reitor do santuário há três anos.

Marcos Pessoa, de 39 anos, gerente da loja Boas Lembranças, que vende artigos religiosos e artesanais, não troca o local de trabalho por nenhum outro. “As pessoas não escolhem trabalhar aqui, elas são escolhidas”, diz.

 

 
 

Mesmo nos dias de semana, há muitas pessoas que optam por assistir à missa na ermida do santuário, a primeira igreja erguida no local. A estudante Geovana Andrez, de 15 anos, é uma delas. “É um lugar que transmite muita paz e tranquilidade. Venho para rezar e agradecer, pois já recebi muitas graças de Nossa Senhora da Piedade”, diz.

 

O empresário Fabrício Marques Rocha, de 30 anos, também frequenta a Serra da Piedade em busca de uma graça: “Sou devoto da santa e tenho fé de que ela vai ajudar a minha mãe, que está passando por problemas de saúde”. Pela primeira vez na ermida, a aposentada Maria Tereza Félix, de 76 anos, não esconde a alegria de rezar: “Este lugar é lindo; é uma bênção estar aqui”, diz.

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