Revista Encontro

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A dança em 30 atos

Carolina Lenoir
None - Foto: Geraldo Goulart, Eugênio Gurgel

Quando a plateia sai de um espetáculo, mal sabe que foi cúmplice de um trabalho de equipe que beira a alquimia. Bagagens de vida, estilos e referências distintas convergem, no palco, em uma linguagem única. Fazer isso por 30 anos, sobrevivendo a turbulências e aceitando com singeleza os ápices, é um segredo para poucos. O Grupo de Dança Primeiro Ato completa três décadas com uma assinatura reconhecida para além das montanhas de Minas, mas faz questão de homenagear suas raízes em seu 16º trabalho, Pó de Nuvens, que estreia este mês.

 

Quando se fala na assinatura do grupo, trata-se de um modo muito singular de se pensar a dança. O Primeiro Ato não flerta com outras artes – é “casado” com elas. A sinergia com a literatura, as artes plásticas e o teatro permite ao grupo tocar públicos diferentes, especialmente por meio da harmonia entre gesto e dramaturgia. O grupo deve essa filosofia à sua diretora e fundadora, Suely Machado, que, na década de 1980 – ao lado de Ivana Petuzzi, Maria Inês Menegucci e Simone Capolari –, começou a construir uma companhia de dança e um espaço de formação de novos talentos.

 

Suely conta que as jovens bailarinas foram convidadas a se apresentar em um festival e, no ônibus, conversaram sobre os valores da dança e os caminhos que vislumbravam. “Surgiu a ideia de criarmos um grupo, mesmo que tivéssemos estilos diferentes”.

Em 3 de março de 1982, o Primeiro Ato foi criado. Nasceram um grupo profissional e um centro de formação, com aulas de clássico, contemporâneo, jazz, sapateado e, depois, danças urbanas e oficinas como consciência corporal e criação de gestos.

 

Ao longo dos anos, novos parceiros foram se juntando ao projeto e, com suas particularidades, ajudaram a construir a identidade do Primeiro Ato. Um deles é o diretor de teatro de bonecos Paulinho Polka, fundador do Armatrux, que durante nove anos deu aulas de expressão teatral, jogos cênicos e mímica. Somam-se a Paulinho pessoas e participações tão diferentes quanto a de Dona Romancina, que foi faxineira na sede do Primeiro Ato e hoje é cantora no grupo Meninas de Sinhá, e a da maître de balé do grupo, a argentina Bettina Bellomo, professora de clássico desde a fundação. Estes e outros personagens devem estar no livro em comemoração aos 30 anos do grupo. A responsável é a historiadora e ex-aluna Glória Reis. A tarefa de reunir pessoas e momentos marcantes na trajetória do grupo – que recebeu vários prêmios e se apresentou na Europa, América do Norte e América Latina, mas que viveu também momentos difíceis – não é simples. São muitas as passagens memoráveis e as mãos amigas que se estenderam em períodos como o da perda do patrocínio de manutenção do grupo, em 2005.

 

Suely Machado, diretora e fundadora: 
“Normalmente, o tempo de trabalho cria 
estabilidade, mas isso não existe na dança”
 
 

“A vida é como eco. O que você dá, recebe de volta. O apoio que tivemos de algumas pessoas foi inesquecível, como Marco Paulo Rolla, Chico de Paula, Tatu Guerra, Valmyr Ferreira. Havia feito o convite para o cantor e compositor Zeca Baleiro fazer a trilha do espetáculo Geraldas e Avencas antes da perda do patrocínio. Ele me ligou para saber se seria desconvidado e eu expliquei que não tinha como pagá-lo. Ele me respondeu que não havia perguntado sobre pagamento, mas se eu queria que ele participasse.

Que o dia que eu pudesse, o pagaria”, lembra Suely.

 

Sem a menor perspectiva financeira, quem ficou no grupo tinha a certeza da continuidade. “Passamos 2006 inteiro sem nenhum apoio e todos os bailarinos que participaram sabiam que não tínhamos um tostão, mas muita dignidade e uma estrutura construída com bagagem, credibilidade e fé no que fazíamos. Geraldas e Avencas acabou sendo um dos trabalhos mais interessantes e premiados do grupo e nos mostrou que não ter dinheiro é circunstancial, e que mais importante é ter identidade.”

 

O grupo é outro depois daquela época. Entre as mudanças está uma nova maneira de trabalhar. “Até hoje não temos patrocínio fixo. O mercado da dança é instável, improvável, e hoje entendemos isso. Podemos ter 30 anos, mas não sabemos o que vai ser no ano que vem, porque não existe uma política pública. Por isso, criamos a nossa sobrevivência todas as manhãs. Normalmente, o tempo de trabalho cria estabilidade, mas isso não existe na dança. Nosso capital é a competência no fazer artístico.”

 

Suely explica que, para formar o grupo, procura pessoas interessantes que saibam dançar com apuro técnico, qualidade e tenham consciência do que escolheram para as suas vidas.

Essa ideologia transborda no palco e foi ao assistir pela primeira vez uma montagem do Primeiro Ato que Alex Dias, um dos bailarinos mais antigos do grupo, tomou coragem e pediu para ter aulas. “A companhia me interessou pelo tipo de movimento, a coreografia não era só técnica, mas também expressão, dramaturgia”, explica.

 

Carlos Antônio e a paixão pela dança: “Fiz jazz contemporâneo e agora estou no balé clássico”
 
 

Alex destaca o fato de ser parte de um grupo formado por bailarinos muito diferentes, dos 20 aos 40 anos, e que têm papéis misturados o tempo todo. “Não somos só bailarinos, nem somos só coreógrafos. Não é uma maneira fácil e, por isso, não se pode estar isento de si mesmo quando cria ou interpreta. É um trabalho diário incessante.” Marcela Rosa, assistente de direção do Primeiro Ato, concorda. No grupo desde 1985, garante que sua motivação em permanecer esses anos todos é se renovar no cotidiano. “Vivemos várias realidades nessas três décadas. O desejo artístico é desenfreado, impulsivo. Se faz na facilidade e na dificuldade, com dinheiro ou sem.”

 

O Primeiro Ato é formado pela companhia de dança profissional, o Centro de Formação em Dança, o Espaço de Acervo e Criação Compartilhada e o projeto social Dançando na Escola, que integra o “Reinventando a Escola”, realizado desde 1999 na Escola Estadual Dona Augusta, no bairro Santa Lúcia. Em parceria com a Cultura Inglesa, atende cerca de 180 alunos por ano.

 

Carlos Antônio de Souza Junior, 18 anos, foi um deles, em 2010. “Eu só dançava na rua, com os meus amigos. Tinha paixão pela dança, mas nunca pensei como uma carreira.” Hoje, ele é aluno do centro de formação e garante que, agora, entende o que é ser um profissional. “Descobri que minha paixão é a dança, independentemente do estilo.”

 

 
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