Revista Encontro

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Tem festa na casa do Bituca

Ailton Magioli
None - Foto: Túlio Santos, Beto Magalhães/EM, Romanelli/EM, Maria Tereza Correia/EM

Lô Borges, o caçula do Clube da Esquina, já avisou: só perde a festa de aniversário de Milton Nascimento em 26 de outubro, no Rio de Janeiro, se estiver na estrada. “A chance de eu ir é bem grande. São 70 anos de meu grande amigo”, justifica o cantor e compositor de 60 anos, lembrando que, além de estar o ano inteiro ao lado de Milton na turnê comemorativa aos 50 anos de carreira, 45 de Travessia e 40 do Clube, gravou Mantra Bituca, no álbum Horizonte Vertical, para homenagear o amigo.

 

Em épocas assim, artista e família optam pela discrição. Afinal, essa acabou se tornando a marca do carioca mais mineiro de que se tem notícia, desde que Milton Nascimento foi adotado e se mudou com a família para Três Pontas, no Sul do estado. No boca a boca, no entanto, corre que a sexta-feira, dia 26, será daquelas de virar madrugada na casa da Joatinga, na zona oeste carioca, com direito a uma extensa lista de convidados preparada pela irmã Elizabeth, a Betinha.

 

Além das inevitáveis presenças mineiras, sabe-se que as cariocas também são marcantes, com direito a parte importante de atores, além de amigos convidados, tais como Tunai e Jorge Vercilo, que não perdem um sarau sequer na casa de Bituca. De Belo Horizonte, se tudo der certo, conforme planos do designer gráfico Tavinho Bretas, seguirão representantes da nata do samba e do choro feitos hoje na capital, representada por nomes como Thiago Delegado, Marcos Frederico (Grupo Siricotico) e Gustavo Maguá.

 

Fernando Brant, o mago das palavras, e o retrato da “turma” com JK 
em Diamantina: “Muita saúde, muita vida e muita música para o Bituca”
 
 

“Somos os netos do Clube da Esquina”, afirma Thiago, 29 anos, recordando a surpresa e emoção que tomaram conta dele no dia em que descobriu Bituca na plateia do projeto Delegas Cia., que protagoniza nas noites de quarta-feira em A Casa, no Santa Efigênia, zona leste da capital. “Eu queria fazer os Tambores de Minas com o violão”, derrete-se o jovem fã, numa referência ao disco do ídolo. Como faz questão de lembrar Flávio Henrique, que no ano passado esteve com o grupo vocal Cobra Coral na festa de aniversário de Milton, apoiar e lançar novos nomes no cenário musical é característica marcante na trajetória do líder do Clube da Esquina.

 

“De Lô Borges a Beto Guedes, passando por Flávio Venturini, Tavinho Moura,Toninho Horta, Celso Adolfo, Tadeu Franco, Telo Borges, Chico Amaral e Helder Costa, até Maria Rita, Marina Machado, Simone Guimarães e Cobra Coral”, diz Flávio, ele mesmo representante de uma das gerações apoiadas por Bituca.

“Milton é uma entidade. Uma pessoa simples e tranquila”, diz Marcos Frederico, apresentado ao mestre por Gabriel Guedes, filho de Beto. Integrante da banda de Bituca há mais de 15 anos, o pianista Kiko Continentino orgulha-se de ter tocado nos principais palcos do mundo ao lado dele. “Do Carneghie Hall ao Lincoln Center, nos Estados Unidos, passando por Montreaux, na Suíça”, recorda.

 

Segundo revela, Milton apoia novos artistas inclusive no exterior. “Em Lisboa, por exemplo, fizemos uma festa juliana este ano para 30 mil pessoas, que contou com a presença dos cantores portugueses Antonio Azambujo, Ana Moura e Carminho”, recorda o pianista. Kiko não se esquece de um dos aniversários de Bituca, no Rio, em que as rodas de violão se espalhavam pelos cômodos da casa da Joatinga. “Milton é o cara da história que mais abriu espaço para gente nova”, reforça Flávio Henrique, antecipando que o Cobra Coral, que reúne Mariana Nunes, Pedro Morais e Kadu Vianna, planeja um disco de repertório do ídolo. “Ele é o compositor que o grupo mais canta”, conclui.

 

 
 

Apesar da timidez característica, Milton não esconde o lado festeiro quando recebe convidados em casa. Este ano, chegou a declarar a Tavinho Bretas que gostaria de passar o aniversário pilotando um avião ao lado de amigos, numa clara reverência a Beto Guedes, cuja paixão por aviões continua plena. Na surdina, no entanto, amigos e familiares vão armando as festas surpresas com as quais acaba se envolvendo totalmente. A música, como fez questão de lembrar em passagem recente pelo Palácio das Artes, chegou cedo à vida dele.

 

Do canto da mãe, em casa, às boates de Três Pontas, onde aos 14 anos ele já tocava ao lado do amigo Wagner Tiso. “Só saíamos do palco quando o Juizado de Menores chegava”, recorda um divertido Bituca, adepto assumido dos bailes da vida. “Muita saúde, muita vida e muita música para ele”, deseja o amigo e parceiro Fernando Brant, que, aos 65 anos, mantém na ativa a histórica parceria com o amigo.

Outro companheiro de outrora, Pacífico Mascarenhas, que levou Milton Nascimento e Wagner Tiso ao Rio em plena década de 1960 para gravar o segundo e antológico disco Sambacana, lembra que em início de carreira o cantor-compositor “era virado com a bossa nova”. “Apesar de carioca de nascimento, Bituca nunca havia voltado ao Rio, depois de sair de lá menino”, recorda Pacífico, salientando que a Agostinho dos Santos caberia ajudar a escrever um dos capítulos seguintes da vida de Milton, ao inscrever três músicas dele no II Festival Internacional da Canção (FIC), de 1967: Travessia (melhor intérprete e segundo lugar), Morro Velho (sétimo lugar) e Maria, Minha Fé.

 

Depois da bossa nova, Milton é o que há de mais sofisticado na música popular brasileira, diz Chico Amaral, o letrista-compositor e instrumentista que, para provar a tese, escreve a biografia musical de Bituca. “Com Milton há uma evolução da linguagem musical. Ele traz novos parâmetros para a composição, nos quais entram, inevitavelmente, harmonia, melodia e a questão rítmica”. Bituca, de fato, embaralhou a cabeça de muita gente no início de carreira. Críticos e músicos não conseguiram classificar a sua música (bossa nova, MPB, jazz, romântica, samba-canção?). Por isso, ele, que também trabalhou com cinema (Ruy Guerra e Werner Herzog, em Fitzcarraldo) e dança (Grupo Corpo), guarda com carinho a definição de seu estilo que viu estampada em um cartaz de um show que fez na Dinamarca: “Milton Nascimento. Estilo: Milton”.

 

“Ele chega com muita sofisticação”, acrescenta Chico, lembrando que ao perguntar a Bituca quem achava que trazia tal sofisticação, não por acaso ele cita o norte-americano George Gershwin (1898-1932), além, claro, do maestro Tom Jobim (1927-1994). “Milton é a tradição de sofisticação da canção popular do século XX”, defende ele, cuja convivência com Bituca teve início nos anos 1980, quando Milton Nascimento apoiou o amigo Wagner Tiso a criar a casa noturna Cabaré Mineiro, no bairro Funcionários, em Belo Horizonte, paralelamente à Escola Música de Minas, em Lourdes. Afinal, “gênio”, reconhece Chico Amaral, “não se explica”.

Muito menos suas raízes, como o próprio Bituca diz: “Sou do ouro, eu sou vocês. Sou do mundo, sou Minas Gerais”.

 

Em compasso de espera

 

 
 

Milton Nascimento demonstra estar ainda mais envolvido com os 50 anos de carreira do que com o aniversário de 70 anos. “As comemorações da data serão em família, para poucos convidados”, diz Danilo Nuha, assessor de Bituca, que não confirma qualquer declaração do aniversariante a respeito de uma vontade de comemorar a data nos ares, em companhia de amigos, pilotando um avião, ou até em uma grande festa.

 

No dia 6 o palco da Vivo Rio, no Rio de Janeiro, receberá Bituca, banda e convidados para a gravação do DVD do show comemorativo dos 50 anos de estrada. A Lô Borges, companheiro da turnê nacional, vão se juntar convidados cujos nomes são guardados a sete chaves.

 

Paralelamente, Milton prepara um disco com o guitarrista gaúcho Ricardo Vogt, radicado em Nova Iorque que integra a banda de Speranza Spaldin, cujo repertório e data de lançamento ainda não estão fechados. Além da parceria estreante da dupla, o CD de inéditas também deverá contar com o parceiro Fernando Brant, que confessou estar aguardando novas melodias de Bituca para colocar letra.

 

 
 
Bituquinha, meu irmão
 
 
Márcio Borges
 
 

Bituca faz 70 anos. Ainda ontem nós éramos meninos nas ruas de Belo Horizonte, Três Pontas, Chile e Bahia, e para nossos corações de estudantes não existia cidade vazia. Nosso amor por Vera Cruz era ingênuo, mas era autêntico. Nosso amor pelos pobres e deserdados desse chão era verdadeiro e nosso pranto, sentido no fundo de nossas almas. Queríamos transformar o mundo e esse era todo o sucesso que almejávamos. A música, o cinema e as palavras foram as armas que usamos. A revolução que veio foi anti e contra, foi involução e beijo partido. Medo e timidez eram paredes contra as quais nos empurravam. Nossa vida não era uma festa, apesar de gostarmos muito delas. A gente pegava na geladeira de nossos pais a pequena fartura, umas garrafas de cerveja, outro tanto de batidas de limão no Bigodoaldo’s, onde batizávamos nossas “filhas”, as canções que correram mundo antes mesmo de nossos pés. E isso, para nós, era banquete e comunhão.

 

Bituca faz 70 anos e esta data me emociona. Agora mesmo, ao ver no retrato da memória aquele molequinho magricela, com o rosto talhado e o porte de príncipe africano, deixo correr inevitáveis lágrimas, menos de saudade do que de gratidão ao destino e à vida, que me deram de presente, nos meus 17 anos, essa alma gêmea da qual nunca mais me separei.

 

Preparo para ele neste dia meus melhores sentimentos, minha prece agradecida, minha renovada jura de amor – e talvez até minha presença física. Essa parte ainda não sei, porque tem aniversários em que Bituca foge das pessoas e dos contatos mundanos e se isola em qualquer parte do planeta, só reaparecendo dois ou três dias depois. Tem outros que ele dá festas de arromba, algumas inesquecíveis.

 

Bituca faz 70 anos e isso, por si, me causa vertigem. Estamos no alto de uma pirâmide chamada tempo, e daqui de cima é impossível volver a los 17. As lágrimas caem lá embaixo e talvez uma ou outra molhe as sementes novas que ela planta todo santo dia.

 

Bituquinha, meu irmão, meu amigo, meu parceiro de vida e trabalho, meu amor fraterno, meu exemplo mais bem-sucedido de guerreiro que venceu, como ele mesmo adora dizer, “as vicissitudes da vida”.

 

Tudo de bom pra você, meu txai 
(“a fortaleza que não cai”).

 
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