Assustado e perplexo, o poder público tentou reagir.
Encontro foi às ruas para tentar achar duas respostas. A primeira: saber exatamente o que os manifestantes de Belo Horizonte – jovens, em sua esmagadora maioria – querem.
A segunda resposta que Encontro buscou, junto a manifestantes, personalidades, empresários, artistas e representantes da sociedade civil é o que precisa ser efetivamente feito para que Belo Horizonte se transforme numa cidade melhor para se viver. Chegamos a três consensos: todos os consultados apoiam as manifestações; todos querem mudanças; e o transporte público aparece como o principal problema de BH. Os depoimentos podem ser conferidos nas páginas desta reportagem. “Precisamos de soluções ousadas para a grave questão da mobilidade urbana, que passe pela interligação entre todos os municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH)”, diz, por exemplo, o empresário Olavo Machado, presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), um dos principais e mais respeitados radares dos problemas que afligem o país. “É primordial investirmos na mobilidade urbana e no transporte público. Apenas o BRT (sigla em inglês para o transporte em ônibus rápido) não vai atender à demanda”, reforça o presidente da Ordem dos Advogados de Minas Gerais - Seção Minas Gerais (OAB-MG), Luís Cláudio Chaves. Há quem defenda a criação de um consórcio metropolitano para encontrar soluções conjuntas para a RMBH – e já há até aqueles que acham que o BRT, cujas obras rasgam as principais vias da cidade neste momento, chegará defasado. Finalmente, há também os que batem no pacto federativo, como o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Dinis Pinheiro (PSDB). “Precisamos de uma reforma radical na distribuição dos recursos arrecadados, que hoje ficam, em sua maioria absoluta (70%), nos cofres da União”, diz o parlamentar.
A questão é: há muito o que ser feito. A população parece ter acordado e descoberto a necessidade de mudanças somente agora. Mas algumas sementes do movimento de junho já estavam sendo plantadas antes das manifestações. Voltemos ao mês de março, quando o Movimento Passe Livre de Porto Alegre (RS) foi às ruas e conseguiu barrar o aumento da passagem de ônibus. Em maio, foi a vez da população de Natal (RN) brigar pela redução da tarifa. Porém, o rastilho de pólvora cruzou o país de um Rio Grande ao outro e encontrou o campo minado em São Paulo.
Em 6 de junho, quatro dias após o anúncio do aumento do valor da passagem, de R$ 3 para R$ 3,20, os manifestantes foram às ruas. Doze veículos foram depredados e outros 53 foram pichados. A avenida Paulista chegou a ser bloqueada por manifestantes que atearam fogo em sacos de lixo. No mesmo dia, protestos aconteceram em Natal, Goiânia e no Rio de Janeiro. A repressão endureceu. No dia 10 de junho, no Rio de Janeiro, 13 pessoas foram detidas e no dia seguinte, em São Paulo, outras 20 foram presas. No dia 13 de junho, uma quinta-feira, a Polícia Militar usou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Mais de 200 pessoas foram detidas e cerca de 6 mil manifestantes participaram do ato. No sábado seguinte, em BH, 8 mil pessoas partiram em passeata saindo da praça da Savassi até a praça da Estação.
No sábado, 22 de junho, mais de 60 mil pessoas marcharam da praça Sete até a barreira policial que protegia a área da Fifa, próxima ao Mineirão, onde Japão e México se enfrentariam. Mais uma vez, os manifestantes exaltados, chamados pela polícia de vândalos, partiram para o ataque e foram reprimidos com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha. A repressão aumentou a fúria dos exaltados, que depredaram o comércio da avenida Antônio Carlos e seguiram para o centro da cidade. Como resposta, a polícia montou uma operação de guerra para evacuar a praça Sete.
Em todo o Brasil, as manifestações se intensificaram e ganharam ares de batalha. Em Brasília, no dia 21 de junho, uma sexta-feira, um grupo se deslocou da massa de 60 mil manifestantes e depredou o prédio do Itamaraty. Mais de 60 janelas foram quebradas. Cinco dias antes, outros 5 mil manifestantes invadiram o espelho d’água e subiram no teto do Congresso Nacional, proporcionando imagens que rodaram o mundo. A pressão surtiu efeito. A toque de caixa, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 232/07, que destina 75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde. Também foi aprovado projeto que reduz a zero as alíquotas do PIS/Pasep e Cofins sobre os serviços de transporte público municipal coletivo, metroviário, ferroviário e aquaviário. O voto aberto nos processos de cassação de mandato parlamentar, um antigo desejo de quem quer transparência no Congresso Nacional, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça – e abriu-se o processo de cassação do deputado Natan Donadon (PMDB-RO), que teve a prisão determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se do primeiro parlamentar preso no exercício do mandato. O Senado também sucumbiu à pressão e aprovou novas regras para a partilha do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o projeto que torna corrupção crime hediondo.
Mesmo após essas conquistas, mais de 50 mil belo-horizontinos foram às ruas na quarta-feira, 26 de junho. A despeito do vandalismo, que gerou prejuízos para diversos empresários, e até da dor irreparável da família do jovem Douglas, uma cena que ficará para sempre na mente de quem estava no local remete a uma batalha épica: carros incendiados, rastros de bombas no céu, helicópteros em voo rasante, muita fumaça e gás lacrimogêneo no ar e dezenas de milhares de pessoas gritando enfurecidas: “Não vai ter Copa”. É pouco provável que a frase se torne realidade, mas as ruas falaram.
O fato é que, neste momento, nem o Brasil nem Belo Horizonte podem jogar no lixo a oportunidade de debater a fundo os problemas que realmente castigam a população. O recado foi claro: o país precisa de mudanças. O poder público precisa se reencontrar com a sociedade. Os belo-horizontinos querem uma cidade melhor. Querem poder deslocar-se de casa para o trabalho em um transporte eficiente e de qualidade. Querem hospitais e escolas compatíveis com o que se paga de impostos aos cofres públicos. Querem ir e vir em segurança. Querem ter a dignidade que merecem como cidadãos honestos. Tapar os ouvidos para os protestos seria um erro grave. Até porque as ruas continuam vigilantes. “Só vamos transformar a cidade se continuarmos na luta”, resume o rapper Flávio Renegado. É hora do diálogo por uma cidade onde realmente valha a pena de se viver.
* Com Marina Dias, Simone Dutra, Rafael Campos, Pabline Félix, João Barile e Daniela Costa
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