1 | O senhor diz que a sua trilogia As Areias do Imperador questiona a história como uma verdade absoluta. Como avalia a construção que fazemos da história no nosso presente?
A história deve ser um objeto de diversão, de encantamento. Em vez de se procurar apenas as verdades dos fatos, poderia se procurar o sentido da história, que são as suas versões, os depoimentos humanos. Não sou brasileiro, mas pensando na história do Brasil, acho que faria falta ouvir o depoimento dos próprios índios, como eles se veem. Isso não deve ser visto como um fato conflituoso, porque a história é contraditória, é composta por várias vozes. O nosso presente se torna história todos os dias. Nós estamos fazendo isso neste exato momento e é importante não observarmos a nossa história por uma única janela. Faz-me aflição, por exemplo, olhar para a Palestina ou para a Síria, como só um país de vítimas. Há histórias de heroísmo ali, há resistência. Só para falar de dois dos exemplos mais dramáticos que temos hoje no mundo.
2 | Existe atualmente uma onda conservadora em vários continentes, que atinge também a cultura. Como o senhor vê a censura a algumas obras de arte? É pertinente?
Não é a arte que os incomoda. Essa é uma ameaça que foi produzida e inventada. Disseram que o mundo estava sendo pervertido, os valores devassados pelas forças da esquerda.
3 | O senhor disse certa vez que o medo foi o seu primeiro mestre. Do que tem medo hoje?
Tenho medo desse medo que está sendo produzido como uma espécie de alerta, para que se mobilizem as forças sociais e que se crie a ideia de que é preciso esse apelo conservador, que parece dominante hoje no mundo. Tenho medo do fantasma das ameaças externas, da imoralidade. O medo do outro, do diferente, tem um lugar dominante, e isso me assusta muito. Meu trabalho é uma resistência contra esse sentimento. Quando escrevo sobre os outros, conto histórias sobre aqueles que estão do outro lado. Parece-me que essa é uma maneira de descontruir esses medos.
4 | Temos hoje uma grande discussão sobre as fake news e suas responsabilidades. O senhor já foi alvo de alguma informação falsa?
Sim, já, várias vezes.
5 | Em um mundo tão conflituoso, a literatura pode nos salvar? Alguma vez o senhor já foi salvo por um livro?
Sim. Na adolescência, quando eu estava vivendo uma severa crise existencial, me questionando sobre quem seria eu, quando tinha vários eus dentro de mim, cheguei a pensar que tinha uma doença. Havia certa prescrição de que era preciso uma identidade única. Cheguei a pensar que teria de ir a um psiquiatra para resolver essa questão, que era muito forte. Mas então fui salvo pela poesia do Fernando Pessoa, que nos diz sobre os vários eus que existem dentro de nós. Ele foi o meu psicanalista. Os livros, em certos momentos, podem nos salvar, podem resgatar uma esperança perdida.
6 | E qual é o seu livro de cabeceira? O senhor tem algum autor que gosta no Brasil? Muitos o comparam a Guimarães Rosa...
Meu livro de cabeceira é o Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa. É um livro infinito, um mestre, uma espécie de minha autoajuda. Quanto aos autores, sou muito amarrado a uma geração que descobri na minha adolescência. Confesso que conheço pouco do Brasil atualmente. Gosto do Milton Hatoum, sou um fiel seguidor dos seus livros. Guimarães Rosa, eu releio sempre. Ele teve uma grande influência em mim, fui marcado por aquilo que ele fez. Mas eu também sei que faço uma coisa totalmente diversa do que ele fez. O elemento poético que ele introduziu na prosa, sim, me interessa. Certo sentimento mágico do mundo, também. Mas existem muitos outros autores que também fazem isso.
7 | Seu próximo livro vai resgatar sua infância, falar do seu pai. O senhor tem uma boa memória dos seus tempos de menino? Como a criança que o senhor foi pode conversar com a garotada de hoje?
Eu sou uma pessoa que não tem memória quase nenhuma (risos), e isso me ajuda muito, porque eu me sinto livre para inventar sobre o que aconteceu. Da minha infância eu tenho apenas laivos, sombras que persigo. Não quero saber exatamente o que aconteceu. Na verdade, todas as nossas lembranças são inventadas. Eu pensei que fosse o único que fizesse isso, mas todos nós, quando não possuímos essa memória, a reconstruímos. O nosso presente nos leva para o passado. Quanto às crianças, hoje elas vivem de maneira totalmente diferente. Eu brincava na rua e esse era o meu universo, as crianças hoje vivem em um ambiente mais fechado, mas a capacidade de se espantar, de serem possuídas pela brincadeira, pelo inventar o mundo, não mudou. Elas são capazes de se compreender melhor do que nós, adultos, porque estão despidas de preconceitos, têm uma visão do mundo mais aberta, mais disponível. Acho que a diferença está nisso. Quando nos tornamos adultos ficamos menos disponíveis.
8 | E de onde vem sua inspiração?
Um escritor deve gostar de ouvir. Em Moçambique, eu gosto de encontrar pessoas que me contam histórias. E gosto principalmente do que ficou não dito. Do que eu imagino sobre as histórias que ouço.
9 | É verdade que foi você mesmo que escolheu o seu nome? Trocou António Emílio por Mia?
Meus pais me contaram essa história (do nome Mia) várias vezes. Quando eu era criança, gostava muito de gatos, chegava a pensar que era um deles. Então anunciei que queria me chamar Mia. Quem escolhe o nome são os pais, mas eles aceitaram o meu pedido.
10 | Como lida com a responsabilidade de ser um escritor admirado, com tantos leitores?
Eu tenho saudades do meu primeiro livro, quando poderia errar à vontade, disso tenho saudade. Eu fico feliz que haja pessoas que gostam do que eu faço, mas a verdade é que eu me afasto disso. Fico longe para não me influenciar, continuo sendo um homem caseiro, longínquo, recatado. Na maior parte das vezes, eu parto para um livro como se fosse o primeiro. Esta é a maior responsabilidade, ser verdadeiro, apaixonado e escrever com o mesmo gosto.
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