Revista Encontro

Entrevista | Adriana di Mambro

Vida moderna está prejudicando o desenvolvimento das crianças, alerta psicóloga

Ela afirma que não é por acaso que os diagnósticos de TDAH estão aumentando

Marina Dias
- Foto: Samuel Gê/Encontro
A educação dos filhos nos tempos atuais é uma tarefa solitária para os pais - muitas vezes também para as crianças. Com núcleos familiares cada vez menores, a rede de apoio a quem cuida das cranças diminui. A isso, soma-se o fato de os horários de trabalho estarem mais extensos e o contato com outras famílias em ambientes públicos, em meio à natureza, ser raro. Muitas vezes os pais ficam inseguros em relação a sua forma de educar, ao desenvolvimento do filho e aos sintomas que porventura possam aparecer. Os diagnósticos de hiperatividade e TDAH vêm aumentando e começaram a pipocar crianças com a condição da moda, o transtorno opositivo-desafiador. Além de isolados com um possível diagnóstico nas mãos, os pais muitas vezes sofrem ao ter os filhos encaminhados, por indicação da escola, para diversos especialistas por comportamentos "fora do padrão", que às vezes não são enquadrados em nenhuma condição específica. "Crianças diferentes" foi o tema do último encontro do Entre Nós, projeto de rodas de discussão sobre parentalidade, infância e educação e relações afetivas que acontece em BH. Na conversa, em setembro, pais compartilharam as angústias, dificuldades e descobertas por que passam quando um filho é apontado como diferente.
Uma das convidadas do encontro foi a psicóloga mineira Adriana di Mambro, especialista em educação infantil, que conversou com Encontro sobre a infância da atualidade - com muito tablet e pouca vida prática e brincadeiras reais.


ENCONTRO - O que se quer dizer quando se afirma que uma criança é "diferente"?
Adriana di Mambro - Quem aponta a diferença geralmente é a escola ou algum outro espaço social em que as crianças estão inseridas. Pois, até então, o filho é aquele que o casal tem, com o qual já estão lidando. Quando a criança vai para o meio social e, por alguma razão, foge ao comportamento da grande maioria, ela começa a ser observada e às vezes taxada. As diferenças podem ser muitas. Mas também precisamos nos perguntar o que é o padrão e quem é que o estabelece, para que possamos aceitar melhor as crianças, olhar para elas com olhar mais amoroso.

A senhora diz que o filho será inevitavelmente diferente dos pais e da expectativa que eles têm de filho...
Na verdade, é impossível ter um filho sem criar expectativa. E todo pai e mãe quer fazer o melhor possível. E faz, dentro do que pode, sempre. Só que o filho é uma surpresa. Você não sabe quem vai nascer e, depois, quem vai se tornar essa pessoa. Você vai a conhecendo, e é nessa relação que um vai estabelecendo vínculo com o outro, e que a criança vai respondendo ao mundo. Só que pode acontecer de ela ser um tipo de pessoa, com um temperamento diferente do da mãe e do pai. Às vezes o pai pode até pensar "como vou dar conta disso? Tudo que eu falo ele não entende!". Então é preciso ter consciência dessa questão.
Os pais devem se perguntar se não estão esperando demais do filho, esperando que ele seja uma pessoa que eles não foram, ou a pessoa que querem que ele seja. Ou se realmente estão ajudando o filho a ser ele mesmo. Pai e mãe têm de fazer esse exercício. O filho vai contar quem ele é ao longo dos anos, e precisamos ajudá-lo a ser essa pessoa. Se conseguimos fazer isso, todos encontram seu lugar no mundo. Mas ele precisa crescer com segurança, confiando nas características que ele tem, na capacidade que ele tem.

- Foto: Samuel Gê/EncontroQuando há um descompasso, a dificuldade de diagnóstico, de classificação, traz angústia para as famílias?
Achar um caminho que ainda não foi trilhado não é tarefa fácil. Tentar descobrir o que vai ajudar seu filho na escola, nas relações sociais ou até mesmo a sobreviver é difícil. E isso gera angústia. Quando a criança é diagnosticada, isso dá certo alívio, porque os pais conseguem procurar por outras crianças com o mesmo quadro e quais caminhos essas famílias seguiram. Nesse sentido, o diagnóstico acolhe, pois os pais não se sentem sozinhos e percebem que podem aprender com outras experiências.
Por outro lado, o diagnóstico também pode fechar a visão, pois a criança é um indivíduo que pode ter as mesmas características ou não de outras com a mesma condição. Então corre-se o risco de ficar com o olhar só naquele nome e se esquecer de considerar que existe um indivíduo ali.

Hoje fala-se muito do transtorno opositivo-desafiador. De que forma surgem essas novas classificações?
Nós temos a necessidade de dar nome para tudo, inclusive para aquilo que não compreendemos. Então passa um pouco por aí. Mas acho que também é preciso considerar como a visão sobre a criança, sobre a infância, foi sendo modificada ao longo da história. No período da revolução industrial, a criança era um miniadulto: fez 7 anos, era roupa de adulto, sapato de adulto e trabalho também. Hoje, estamos na outra ponta. Existe a infância, que todo mundo deseja entender, atender, e as pessoas respondem a isso, mudando o jeito de ver a infância e de se comportar. Isso acontece inclusive com a própria criança. Então, será que não estamos diante, na verdade, de um conjunto de comportamentos que vêm da forma como está sendo conduzida a infância? Existem avanços, sim, descobertas em termos neurocientíficos. Mas também uma cultura da medicalização, a partir da qual a gente dá nome para as coisas e em seguida o remedinho para padronizar o comportamento. Algumas pessoas ficam satisfeitas com isso, porque lidar com uma criança que fala "não vou", "não quero", não é fácil. Muitas vezes um remedinho acalma e não se tem que se haver consigo mesmo, com o jeito do seu filho, com a individualidade dele.

Então, se, de um lado, há a valorização da infância, de outro, elas estão sem espaço para o que é característico dessa fase?
Sim. Há uma tentativa de colocar as crianças em um limite que foi pensado para elas. A começar pelo seguinte: vende-se uma ideia de que há uma idade certa para colocar na natação, no curso de línguas, no segundo curso de línguas, que tem um hall de escolas e um tipo de ensino para que a criança "seja alguém no mercado de trabalho" - que ninguém sabe qual será em dez anos. Existem passos vendidos e comprados pelas famílias, que elas devem seguir para o filho ser bem-sucedido e feliz. O que você quer que seu filho seja? "Feliz!" Mas alguém é feliz o tempo todo? Tem-se desafios na vida, uma hora se está feliz, outra triste. Mas não se pode ficar triste, não se pode chorar. Existem dúvidas e anseios das famílias, querendo acertar, oferecer o melhor, mas acabam criando limites para a criança entrar nesses anseios e seguir a vida.

O pediatra Daniel Becker diz que temos tirado da criança elementos essenciais da infância e então sintomas como ansiedade inevitavelmente apareceriam. Concorda?
Concordo plenamente. Temos tirado da criança a chance de ser criança. Do que ela precisa? Descobrir o mundo, aprender a se relacionar, ter frustrações para criar força para resolver problemas e encontrar caminhos. E a criança muito pequena está intimamente vinculada aos ciclos da natureza, então ela precisa conhecer isso. O contato com a natureza oferece à criança um contato consigo mesma, um tempo que é da natureza do ser humano. Estamos tirando tudo isso dela. E também a chance de se relacionar entre iguais. Se vão a uma praça, as crianças estão cada uma com seu brinquedinho e com um adulto tomando conta. No primeiro conflito, o adulto já resolve do seu jeito, na primeira queda já leva embora porque o filho ralou o joelho... Estamos roubando as experiências e colocando outras, artificiais, no lugar. As escolas optam por espaços extremamente higienizados, sem nenhum obstáculo… Estamos artificializando a vida das crianças, e aí é claro que vêm os sintomas. Vejo uma inversão de valores: a criança não domina o português, mas precisa aprender uma segunda língua. Não sabe se relacionar, trocar brinquedo, mas tem de mexer em jogos eletrônicos.

E o que, na sua experiência, são esses sintomas vindos da falta de contato com elementos da infância?
Muitas crianças novas já apresentam sintomas de ansiedade, como comer as unhas, irritabilidade, alteração no sono e na alimentação. Às vezes crianças de 3 anos ou menos. Algo muito comum que gera essa ansiedade é a intelectualização do bebê. Muita explicação, teoria, conceitualização... Pais que ensinam o tempo inteiro… Que tal dar menos estímulo mental? Deixar o filho brincar mais sozinho, pé no chão, tirar os eletrônicos… Mas os pais vão encarar tirar os eletrônicos? Eles às vezes perguntam: o que ele vai fazer se tirarmos os eletrônicos?

- Foto: Samuel Gê/EncontroEm um dos diagnósticos mais comuns, o de TDAH e hiperatividade, o que os pais devem fazer?
Tirar os eletrônicos. Se a criança for menor de 7 anos, ela não tem que jogar joguinho, ficar no celular, nada disso. Isso precisa ser substituído por brincadeiras que a ajudem a extravasar a energia e a usar o potencial criativo, porque são muito criativos. A criança tem de brincar em espaços abertos, diariamente, praticar esportes, além de ter vivências que lhe deem a chance de lidar com situações, como ir à padaria e trazer o pão, consertar a bicicleta… E, acho, que para todas as crianças, não dá para ter uma vida mágica: sentou à mesa, o jantar está lá; foi escovar os dentes, quando voltou, a mesa está retirada e limpa; a roupa está sempre limpa, guardada no armário. Os adultos, especialmente quem for mais agitado, também precisa se autoeducar para uma rotina mais calma, com menos estímulos. É preciso ajudar a criança a chegar ao final de cada atividade, uma a uma. Mas o adulto também tem de dar conta de fazer isso.

Qual o caminho do meio entre enfrentar um diagnóstico que os pais temem estar exagerado e o temor de estar negligenciando a condição do filho?
Até achar o caminho do meio, a família sofre, às vezes alguns anos, procurando por ele. Porque ninguém quer ser negligente, mas algumas querem fugir da medicalização, se possível. Digo algumas, porque a maioria não quer fugir. Mas quem quer entender o filho normalmente passa por muitos profissionais, muitas conversas. O que vejo que tem ajudado as pessoas são rodas de conversa, grupos, trocas de experiências, que fortalecem os pais. Temos vivido de forma muito solitária, e isso não é bom. Os adultos ficam inseguros ao precisar educar sozinhos. É importante ter com quem dividir, outras pessoas que ajudem a pensar sobre seu filho, a cuidar dele também. Essa vida solitária dos adultos também leva a uma vida solitária das crianças e a esses problemas todos sobre os quais estamos conversando.

Como a alfabetização precoce pode ser prejudicial à criança?
Essa questão da alfabetização precoce ocorre já há alguns anos, quando o primeiro ano foi incorporado ao ensino fundamental. Isso antecipou alguns processos. E mesmo que inúmeros profissionais da educação e da saúde digam que a criança precisa brincar - e que na brincadeira ela desenvolve muito do que vai precisar no futuro -, existe uma dificuldade, que eu não sei de onde vem, de oferecer isso. Então, quando a criança de 6 anos foi para o primeiro ano, alguém achou que a de 5 deveria ser preparada para ir para o primeiro, a de 4 também, e algumas escolas já estão preparando o aluno de 3. Aos 3 anos, a coordenação motora ainda está sendo desenvolvida. Esse aluno precisa muito jogar bola, subir em árvore. Contudo, o que vemos é que uma criança de 3 anos não sabe pular corda, mas tem de saber escrever o nome. Estamos pulando fases, e estão ficando lacunas por causa disso. A criança não tem mais vida prática: vai de casa para a escola, para a casa da avó, de carro, sem oportunidade de desenvolver um monte de atividades. Deveríamos estar poupando os meninos da internet, de assuntos de adulto, de conversa intelectualizada fora de hora. Em vez disso, nós os poupamos do que eles na verdade precisam. .