"Nos tempos atuais, vivemos o grande mal da incapacidade de manter a atenção", diz o neurologista Galileu Chagas. "Os meios digitais nos levam a mudar de foco com muita frequência e velocidade e isso é extremamente deletério para o nosso cérebro", completa. Segundo ele, a exemplo do que acontece em meditações como o mindfulness, as pessoas se sentem melhor, mais tranquilas e felizes em momentos de foco e atenção, inclusive no momento da leitura. O problema é que o mundo atual tem dado muito estímulo às leituras superficiais e fragmentadas e pouquíssimo àquelas mais profundas. "A competição é desleal, pois os estímulos do mundo digital são enormes, não vêm apenas escritos, mas com movimento, som", explica a professora de licenciaturas e especialista em neuroeducação Flávia Alcântara. A dificuldade é ainda maior para os jovens, que estão crescendo nesse contexto de estímulos difusos e pouca oportunidade de concentração.
A boa notícia é que é possível recuperar essa habilidade e criar esse hábito. No caso das crianças, entra aqui a importância da escola na formação leitora - quesito em que ainda é preciso avançar muito. No caso do adulto, entra o comprometimento e a disciplina de fazer disso parte da rotina, e colher os frutos de boas histórias somadas a cérebros mais sagazes. Na entrevista a seguir, os dois especialistas discutem o assunto:
Quem são:
- Flávia Alcântara, 39 anos
- Origem: Divinópolis (MG)
- Formação: Psicopedagoga e pedagoga com mestrado em educação e linguagem e doutorado em história da educação pela UFMG e especialista em neuroeducação pela UNESA
- Carreira: É professora de licenciaturas da Estácio
- Galileu Chagas Lourenço, 29 anos
- Origem: Governador Valadares (MG)
- Formação: Graduado em medicina pela UFMG, fellow de neurorradiologia intervencionista pelo Biocor Instituto e neurologista pelo Hospital das Clínicas da UFMG
- Carreira: Coordenador do serviço de neurologia do Hospital Vila da Serra
ENCONTRO - Qual é a diferença de aprendizados como andar ou falar e o aprendizado da leitura?
Flávia Alcântara - A linguagem verbal é adquirida por imitação. Já no caso da leitura, se as competências não são ensinadas por imersão, é muito pouco provável que as pessoas aprendam. É claro que existem casos em que, por observação, as pessoas podem aprender e se apropriar do sistema de escrita, mas é muito mais difícil. Sem o ensino, em geral, não se aprende a ler e a escrever com intencionalidade (o que é diferente de fazer cópia).
Galileu Chagas - Enquanto temos áreas do cérebro relacionadas com a visão, com a linguagem, a leitura é realizada por meio de conjunto de áreas. Quando realizamos estudos de neuroimagem funcional e vemos quais áreas são ativadas durante a leitura, é ativada a área da visão, a de linguagem, a de associação terciária, enfim, envolve várias delas, principalmente aquelas do lado esquerdo do cérebro. Outras também são ativadas quando a leitura é mais emocional, por exemplo. A leitura demanda uma série de funções cerebrais para acontecer.
Flávia - Qualquer leitura aciona mecanismos cerebrais, algumas funções cerebrais estarão ativas, mas quando se consegue atribuir sentido ao que se lê, outras habilidades são desenvolvidas, como a representação do mundo, projeção, a capacidade de entrar em outros papéis, o jogo simbólico.
Galileu - O neurocientista Miguel Nicolelis diz que o cérebro é como uma orquestra em que instrumentos se modificam à medida que são tocados. Se toco berimbau tão belamente como se tocasse um violino, com o passar tempo, o berimbau se torna um violino. O contrário também é possível, se toco muito mal um instrumento de maior complexidade, ele pode se tornar um de menor complexidade do que tinha potencial para ser. A leitura é isso, uma forma de exercitar o cérebro, de otimizar potencialidades. Com ela, aprofunda-se raciocínio, léxico, melhora-se a memória, encontram-se outras realidades e formas de pensar que mudam minha estrutura de pensamento. Alguns estudos mostram que a leitura de ficção estimula uma série de estruturas do cérebro relacionadas com a emoção, empatia, a compreensão com o outro.
Por que tem se falado em leitura profunda?
Flávia - A neurocientista e pesquisadora Maryanne Wolf diz que a velocidade de informações com as quais somos bombardeados o tempo todo gera uma ansiedade, um imediatismo que têm dificultado momentos de sentar e se aprofundar na leitura. Por isso temos falado tanto em leitura profunda. É muito em função desse contexto do imediatismo digital. Ou seja, a leitura profunda é um conceito que se dá em oposição ao imediatismo e leituras rápidas que a gente tem de fazer nos dias atuais a partir dessa expansão de recursos digitais, e-mail, Whatsapp. O que foi observado é que esse tipo de leitura não permite o desenvolvimento que a leitura profunda permite: poder parar, entrar em outro contexto, se apropriar da narrativa, realizar inferências, metáforas… A gente só vai fazer apropriação de biblioteca íntima, aumentar vocabulário, se ele for contextualizado, e isso só consegue ser feito em uma leitura aprofundada. E a competição é desleal, pois os estímulos do mundo digital são enormes, não vêm apenas escritos, mas com movimento, som.
Galileu - A leitura profunda nada mais é do que uma leitura concentrada, com atenção mantida. Nos tempos atuais, vivemos o grande mal da incapacidade de manter a atenção. Por isso essa pseudopandemia de TDAH que, em muitos casos, é cronicamente a ausência de estímulo à concentração mantida e, do outro lado, uma profunda estimulação de distração ininterrupta. Os meios digitais nos levam a mudar de foco com muita frequência e velocidade e isso é extremamente deletério para o nosso cérebro, que foi feito para se concentrar. Um exemplo são algumas meditações, como o mindfulness, que têm mostrado com boa evidência científica benefícios cognitivos, para transtorno de ansiedade e de humor. E o mindfulness nada mais é do que a atenção plena. A leitura profunda é isso: se estou inteiro na leitura, concentrado, sem distração, vou de fato ver aquilo que estou lendo, e aí serei transformado por ela.
Flávia - É preciso falar do papel da escola na formação de leitores, pois não se pode delegar para as famílias, considerando as realidades completamente diversas. O espaço formal de formação de leitores é a escola. Em termos de leitura profunda, a gente fala especialmente de leitura literária, e é importante que a literatura não seja usada de forma utilitária e com o pragmatismo didático. Usa-se muito a literatura como pretexto para ensinar conteúdo. Para recuperar o gosto de ler, existem projetos de desenvolvimento de leitura literária, isso é algo que se ensina.
Galileu - Isso é muito frequente na prática clínica, a queixa de não conseguir se concentrar. Da mesma forma que para pacientes com insônia eu posso recomendar higiene do sono, a "higiene da leitura" pode também acontecer. Primeiro passo: é preciso se conscientizar que a leitura não pode acontecer concomitantemente com outras atividades. Na hora da leitura é só leitura. Essa consciência e essa prática são o mais importante. Tudo leva um tempo, tenho de treinar o cérebro. Mas, pouco a pouco, conforme me disciplino para separar um tempo para a leitura, evitar as distrações, o cérebro vai se adaptando àquilo e a atividade acontece de forma mais leve, menos forçosa, mais eficaz.
Flávia - Para os adultos, a tomada de consciência dos benefícios pode ajudar, e também a tentativa de criação de uma rotina de leitura. Separar um horário para isso, procurar ambiente agradável e tirar as distrações. Se o seu celular é seu suporte de leitura, deixe em modo avião. E tentar descobrir o que gosta de ler - pode ser gibi, autoajuda, não importa, contanto que se leia. Com o tempo, vai-se ganhando mais desenvoltura e o leque pode se ampliar.
Existe temor de que jovens, que estão crescendo nessa cultura do imediatismo digital, não desenvolvam essas competências associadas à leitura profunda?
Flávia - Estudos ainda são insuficientes, não tem como a gente saber efetivamente como ficaria essa questão de prejuízo a longo prazo pela mudança de hábito leitor. Contudo, gosto de pensar por uma ótica otimista. Assim como Wolf, acredito na possibilidade de nosso cérebro desenvolver algo semelhante ao bilinguismo: da mesma forma como a gente consegue pensar em dois ou mais idiomas de formas específicas, há a possibilidade de o cérebro se adaptar às formas de leitura. A leitura do mundo digital, que é intensa, fragmentada, ela também é pungente e é uma demanda cada vez maior. Por outro lado, e aí é importante pensar em estratégia de formação de leitor, se a gente desenvolve a capacidade de formação de leitores para leitura profunda, para um momento de introspecção, acredito que a gente possa desenvolver habilidades cerebrais que nos permitam participar com eficiência tanto da lógica rápida, fragmentada e superficial e quanto recursos para momentos de leitura profunda sem uma conflitar com outra.
Galileu - Eu não acho que a leitura fragmentada seja prejudicial. O problema é a ausência da leitura concentrada. Se consigo desenvolver no jovem a atenção na leitura, tudo bem ele fazer diversas outras modalidades de interpretação da realidade. A questão é que de forma geral os jovens não têm conseguido realizar a leitura profunda, pois justamente no período de construção do pensamento, de suas capacidades cognitivas, ele é tão bombardeado pelas leituras fragmentadas que não consegue se dedicar de forma calma, concentrada a realizar a atividade. E isso é o que deve ser incentivado, esse momento de entrega à leitura.
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