Khaled Tomeh e Mary Ghattas, do Narjes, com lojas no São Pedro e Mercado Central: "Venho de um lugar com uma história formada há milhares de anos. Acredito no conhecimento. Não vendo só comida, quero ser um representante do meu país", diz Khaled - Foto: Paulo Márcio/EncontroNinguém estranha hoje palavras como babaganouche, homus tahine, tabule ou kafta. Desde início do século XX, quando aconteceu a primeira imigração de turcos e libaneses para a capital mineira, os belo-horizontinos aprenderam a gostar dos pratos vindos lá das arábias. Com o início da guerra civil na Síria, em 2011, muitos refugiados encontraram abrigo por aqui e uma nova leva de restaurantes do gênero invadiu a cidade. Até porque para quem veio em busca de dias melhores, essa cozinha representa também sobrevivência e reinvenção.
É o caso do casal Khaled Tomeh e Mary Ghattas, que desembarcou em Beagá em 2014. Ao chegar, Khaled logo percebeu que teria que desligar-se do passado e reconfigurar a vida. Seus diplomas em engenharia de agricultura e engenharia de alimentos por aqui nada valiam. "Começamos a fazer comida em casa para vender. Foi o jeito que encontramos para pagar as contas no fim do mês", lembra Khaled.
Entre um quibe e outro, no entanto, o sírio se formou em ciências biológicas na PUC Minas, e já tem duas unidades da Narjes, uma no São Pedro e outra, recém-inaugurada, no Mercado Central. "Venho de um lugar com uma história formada há milhares de anos. Acredito no conhecimento. Não vendo só comida, quero ser um representante do meu país, mostrar sua cultura, seu artesanato", diz. Fluente em português - o sotaque aparece vez ou outra para lembrar de suas origens - Khaled tem muito carinho pela terra que o acolheu. Ele e Mary foram naturalizados em 2020, mas nada os fazem mais brasileiros do que o nascimento das duas filhas, Yasmin, de 6 anos, e Clarissa, de 3, ambas belo-horizontinas. "Falo com muito orgulho que somos brasileiros." A especialidade da Narjes são os salgados, as famosas pastas árabes e os sanduíches kebab ou shawarma. Além do kibe, a clientela encontra outras delícias, como a esfiha de frango com sumac e o vegano falafel. Ainda dentro do leque do veganismo, o kibe de abóbora com grão de bico faz muito sucesso - todos custam 13 reais, a bandejinha com cinco unidades. O pão também é feito por eles e é vendido em pacotes de três tamanhos - grande (10 reais, com seis unidades), médio (10 reais, com oito unidades) e pequeno (7 reais, com 15 unidades).
Com uma receita familiar centenária, Samira Abuid faz mais de 1 mil esfihas por dia no seu Prazer da Esfiha: no início, ela cozinhava para a comunidade sírio-libanesa, até abrir o seu próprio estabelecimento, na Lagoinha, e receber a ajuda da filha, Luiza - Foto: Paulo Márcio/EncontroA travessia nunca é fácil. Superar a barreira linguística, se reinventar como profissional, encontrar acolhimento e paz para recomeçar são apenas algumas das muitas dificuldades que refugiados encontram quando desembarcam em um país estranho em busca de um porto seguro para viver. O sírio Fadi Alhaddad chegou por aqui em 2014. "Vim fugindo da guerra e o Brasil me deu uma oportunidade", diz.
Aos 19 anos, estudante de turismo e hotelaria em seu país, desembarcou sozinho em BH. Só dois anos mais tarde, conseguiu trazer os pais, Lama e Ghassan. A mãe, professora de matemática e o pai, engenheiro eletricista, também tiveram de se despedir do passado e começar uma nova história. Foi na cozinha que viram a chance de reinvenção. Primeiro, começaram a fazer os tradicionais pratos em casa. Dona Lama já era uma cozinheira de mão cheia e precisou de pouco tempo para conquistar o paladar da turma que não resiste a uma boa especiaria. "A comida que servimos tem gosto da comida da minha mãe, a comida que cresci comendo e sinto falta", diz Lama. Há dois anos, viram a chance de abrir o próprio negócio, o Aladdin Culinária Árabe, no Alípio de Melo. "Amo poder apresentar esse sabor para os brasileiros", completa Lama. Eles juram que não tem kibe melhor na cidade do que o preparado pela família.
"O nosso tempero é diferente e o jeito de fazer também", diz Fadi. Inclusive, o da família Alhaddad é bem tradicional, feito com carne e muita cebola (7 reais, o grande; 3,50 reais, o pequeno). Na categoria sanduíches, são sete opções. O que leva o nome da casa é preparado no pão sírio (feito na casa), carne moída, pasta de alho e picles (19 reais).
Ricardo Hamdan é a segunda geração da família no Brasil e aprendeu tudo sobre gastronomia com sua mãe, a libanesa Zaina: "Inclusive, diferente dos sírios, usamos manteiga na comida, o que dá um sabor muito diferenciado" - Foto: Uarlen Valério/EncontroFilho de uma libanesa, Ricardo Hamdan é a segunda geração da família no Brasil. Foi na barra de Dona Zaina que ele aprendeu todos os segredos da comida libanesa. "Inclusive, diferente dos sírios, usamos manteiga na comida, o que dá um sabor muito diferenciado", explica Ricardo. Ele se encantou com a cozinha aos 12 anos, quando ajudava a mãe e a avô, Najla, a preparar verdadeiros banquetes para receber os amigos. "Ali sempre foi um ambiente de muita alegria e cantoria. É essa lembrança que eu tenho de infância", diz. Apesar da memória afetiva, seu caminho acabou indo em outra direção. Formado em comunicação social, foi trabalhar na indústria farmacêutica e cervejeira. Durante um período morando nos Estados Unidos trabalhou em um restaurante e se reencontrou. Começou a preparar uns pratos em casa, em Rio Acima, mas logo percebeu que sua clientela estava em Belo Horizonte e, hoje, trabalha em uma dark kitchen atendendo pelo delivery. O pessoal gosta tanto do tempero dos Hamdan que em três meses ele se tornou um dos restaurantes mais pedidos do iFood na capital. Ricardo é também um personal chef bastante requisitado. "Faço eventos grandes, mas já montei um jantar inspirado nas Mil e uma Noites para um casal", diz. Um dos pratos que mais faz sucesso no cardápio, é o pernil de cordeiro marinado por mais de 24 horas em vinho e especiarias. Pelo aplicativo é possível pedir pratos executivos (41,90 reais cada), que são montados de acordo com o gosto do freguês e inclui proteína, arroz com lentilhas e cebola caramelizada, salada e pasta. O kit árabe jumbo pesa 1 quilo e vem com kibe cru, babaganouche, labne, tabule e homus e custa 103,90 reais e atende 3 pessoas com fartura. "Já vai tudo prontinho para colocar na mesa e servir. Mando até as folhinhas de hortelã para enfeitar", afirma o chef, que hoje conta com uma equipe de dez funcionários.
Nilson Rodrigues e mulher, a também cozinheira Marylaine Azevedo, abriram há nove meses o Empório Beirute: "O grande segredo da cozinha árabe é simplificar, não adianta ficar inventando muita coisa", explica o chef - Foto: Uarlen Valério/EncontroNão precisa nem falar que a especialidade de Samira Abuid é a esfiha, tanto que resolveu batizar a sua loja como Prazer da Esfiha. A receita é centenária e vem lá dos tempos de sua avó, Sarah, que veio da Síria para BH quando a cidade estava nascendo. A família chegou direto na Lagoinha e por lá permanece até hoje. Além da avó Sarah, Samira também aprendeu muitas receitas com a mãe, Linda. "Aos 5 anos de idade já abria esfiha com elas", lembra Samira. No início a família atendia a comunidade sírio-libanesa e o Consulado da Síria. Os salgados, até então, eram feitos em casa. Até que em 2017, a cozinheira resolveu participar de uma feira temática na Savassi. Foi o que faltava para ter a coragem de montar seu próprio negócio. Abriu apenas uma portinha com um balcão, onde as pessoas retiravam seus pedidos. Foi pouco. Seis meses depois, precisou alugar um espaço maior para abrir o restaurante. Com a cozinha exposta, todo mundo pode ver o preparo da especialidade da casa. Por dia, são produzidas mais de 1 mil esfihas. A mais pedida é a de carne (6 reais, a grande; 1,50 real, a mini), além da opção aberta (2,50 reais). "É uma versão abrasileirada. Por exemplo, não uso a pimenta síria porque é muito forte", admite Samira, que hoje conta com a ajuda do filha Luiza no comando da casa.
Refugiados sírios e donos do Aladdin, no Alípio de Melo, a professora de matemática Lama e o engenheiro eletricista Ghassan Alhaddad (na foto, com a filha Lojin) encontraram na cozinha um jeito de recomeçar a vida em Belo Horizonte: "Amo poder apresentar esse sabor para os brasileiros", diz Lama - Foto: Pádua de Carvalho/EncontroE tem gente abrindo o negócio mesmo sem ter nenhum pé no oriente. O Empório de Beirute, no Cidade Jardim, abriu há nove meses. O chef Nilson Rodrigues não tem família síria ou libanesa. Sua ligação com esse tipo de culinária vem dos mais de 40 anos que trabalhou em um restaurante árabe em Belo Horizonte. Ao se aposentar, juntou sua experiência à da mulher, a também cozinheira Marylaine Azevedo, e, juntos, criaram o restaurante que serve os clássicos do Oriente Médio. "O grande segredo da cozinha árabe é simplificar, não adianta ficar inventando muita coisa", explica Nilson. A esfiha é uma receita de massa que o chef criou em 1984 e que usa até os dias atuais. São sete sabores e tem até um super brasileiro: frango com Catupiry. Os salgados custam 7 reais. No balcão, o cliente encontra várias pastas e acompanhamentos tradicionais, como o mjadra (arroz com lentilhas), salada marroquina e charuto de repolho. Os pratos são montados de acordo com a vontade do cliente e vendidos no quilo (49,90 reais). Nilson, que faz uma interpretação da comida vinda de terras que ele nunca pisou, sabe como ninguém vender o seu peixe, ou melhor, seu quibe, para os mineiros: "Tenho um tempero que não revelo porque é meu segredo. Mas não esqueço que vendo muito mais para brasileiros e descendentes do que para árabes. Preciso agradar esse público."
Onde estão os novos restaurantes árabes da cidade
Aladdin (@aladdinculinariaarabe)
Avenida dos Engenheiros, 599, Castelo, (31) 97510-9389
Empório Beirute (@emporiobeirute44)
Avenida Prudente de Morais, 44, Cidade Jardim
Narjes (@narjessabores)
Rua Major Lopes, 240, São Pedro / Avenida Augusto de Lima, 744, Centro (Mercado Central), (31) 98957-3014
Prazer da Esfiha (@prazerdaesfiha)
Rua Itapecerica, 822, Lagoinha, (31) 97544-6059
(31) 98471-3932
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