Revista Encontro

ENTREVISTA

'Mulheres são discriminadas e preteridas nas empresas por engravidarem'

Advogada trabalhista Maria Cecília Máximo Teodoro fala sobre dificuldades enfrentadas pela mulher no mercado de trabalho

Daniela Costa
- Foto: Gustavo Dragunskis/Divulgação
Em pleno século XXI, o mercado de trabalho, a maternidade e o papel do pai no meio de tudo isso ainda são assuntos complexos e longe de serem esgotados. Mesmo com as evoluções ocorridas no setor de Recursos Humanos (RH) das empresas, responsáveis pelas contratações, é de praxe mulheres serem questionadas em entrevistas de emprego se são casadas e se têm filhos. Àquelas que já são mães, os recrutadores interrogam sobre quem cuidará da criança em caso de doença ou outra dificuldade. E não se trata apenas de mero protocolo. Segundo o Fórum Econômico Mundial (WEF) serão necessários 275 anos para acabar com a desigualdade de gênero no trabalho em todo o planeta. O relatório contempla a paridade entre homens e mulheres nas áreas de saúde, educação, trabalho e política, mostrando avanços em todas as áreas, exceto na trabalhista.

Em palestra realizada na última edição do TEDxBeloHorizonte, a advogada Maria Cecília Máximo Teodoro, doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social, reforçou que é preciso falar sobre as dificuldades enfrentadas pela mulher no mercado de trabalho após se tornar mãe, e da necessidade da existência de leis que possibilitem que o homem exerça o seu papel de pai. "Só assim será possível desonerar as mães de obrigações que deveriam ser compartilhadas com seus parceiros", diz ela. Em sua análise, todas as normas que dizem proteger a mãe, protegem, na verdade, apenas a criança.
"São normas que tratam de quem vai cuidar do bebê e que, para o direito do trabalho brasileiro, é a mulher". O que se torna explícito ao observar a licença maternidade de 120 dias e a licença paternidade de apenas 5 dias. "É como se a responsabilidade dos cuidados com o bebê fossem apenas da mãe, enquanto que se o pai tivesse o mesmo direito, os cuidados poderiam ser compartilhados." Confira na entrevista a seguir como ela enxerga as diferenças de direito entre a mãe e o pai trabalhadores e o que pode ser feito para vencer os desafios do mercado.

  • Quem é: Maria Cecília Máximo Teodoro

  • Origem: Belo Horizonte

  • Formação: Advogada, pesquisadora, professora e speaker TEDx, Maria Cecílio é pós-doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de Castilla-La Mancha com bolsa de pesquisa da CAPES; doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito do Trabalho e graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Atualmente é professora do Doutorado, Mestrado e da Graduação da Puc/MG e líder do Grupo de Pesquisa RED - Retrabalhando o Direito, além de ter livros e artigos publicados de sua autoria

ENCONTRO - Porque o tema da sua palestra no TEDxBeloHorizonte deste ano foi "Ser mulher é ser mãe"?

Maria Cecília Máximo Teodoro - Em 2020, em plena pandemia, eu estava divorciada, enlouquecida tentando conciliar o meu trabalho com a tutoria das aulas  online dos meus dois filhos (Sofia, de 10 anos, e Samuel, de 9). No momento em que fazia uma live, uma mesa de 200 kg caiu no pé da minha filha, na época com 8 anos. Ela aos berros, com o pé esmagado, e todo mundo ouvindo ao vivo. Saí correndo para o hospital e deixei o meu filho mais novo para trás, com as vizinhas. Nesse dia senti o peso de tentar conciliar ser mulher e ser mãe. A partir daí aprofundei ainda mais meus estudos sobre o tema.

Em sua opinião, quais os desafios enfrentados pelas mulheres ao se tornarem mães?

Inúmeros. Quando a minha filha nasceu, em 2012, eu percebi que eu ganhava um bebê, mas algo muito precioso se perdia. Quando voltei da licença maternidade, um colega me disse, em tom de deboche: "As férias estavam boas?". Ele se referia ao período mais solitário e cansativo que eu já havia vivenciado. O do trabalho invisível e não remunerado de uma mãe puérpera.
Há 11 anos, eu desembarcava grávida na Espanha para fazer o meu primeiro pós-doutorado. Depois de ter os meus dois filhos, comecei a sonhar em retornar para continuar os meus estudos. Mas não foi bem assim que aconteceu. Em 2021 só me restava estar grata por estar realizando o meu segundo pós-doutorado online. Quando viramos mãe, a gente faz o que dá para fazer. Os nossos planos mudam constantemente.

De modo geral, como o mercado de trabalho recebe a mulher-mãe?

Se em uma relação de emprego formal eu me sentia invisibilizada enquanto mulher, imagine aquelas que estão na informalidade, boa parte delas negras. Como já disse a mestre em filosofia política e ativista feminista Djamila Ribeiro, "enquanto mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras ainda lutavam pelo direito de serem reconhecidas como pessoas". O que nos leva à conclusão de que o debate sobre os desafios das mulheres em uma relação de emprego formal é um tema urgente. Eu como advogada trabalhista, professora, mulher e mãe, percebo que o direito do trabalho não enxerga a mulher em sua totalidade e o mercado de trabalho oferece muita resistência a essas mães.  Diante da necessidade de cuidar dos filhos e da família, elas acabam sendo consideradas "menos disponíveis",  o que resulta em salários mais baixos e em restrições para a ascensão a cargos mais importantes.

O que diz a Constituição Federal sobre os direitos da mulher ao se tornarem mães?

Ela ordena que sejam feitas normas com incentivos específicos para a proteção do mercado de trabalho da mulher. Só que ela diz da "mulher" e não da "mãe".
Aí cria-se um mundo distópico, imaginário: o das mulheres-mães que trabalham. A maioria das normas que se dizem de proteção ao trabalho da mulher são machistas, patriarcais e geram impacto adverso. Na prática, não geram igualdade mas, sim, discriminação. Isso porque essas normas se destinam à proteção do bebê e não da mulher.

Como  o direito do trabalho enxerga as mães trabalhadoras?

Para o direito do trabalho, ser mulher é ser mãe. Os direitos de proteção são responsabilidades de cuidado disfarçadas de direito. Responsabilidades essas que não são concedidas aos pais. A própria Constituição Federal considera como direitos sociais a saúde, a habitação, a alimentação, a proteção à maternidade e à infância, dentre outras. Contudo, não considera a paternidade um direito social. Confere 120 dias de licença para a mãe trabalhadora e 5 dias de licença aos pais. Só dá estabilidade para a mãe, dizendo que até que o bebê complete 5 meses de nascido, ela não pode ser dispensada do trabalho. Por outro lado, o pai pode. Não seria natural que ambos os genitores tivessem o seu emprego garantido, independentemente do gênero?

Do que se trata a chamada licença parental que ocorre em alguns países?

Na Europa, a licença se chama parental, considerando que seria uma decisão do casal sobre quem vai ficar sem trabalhar por um determinado tempo para cuidar do bebê. No Uruguai se chama "licença para cuidados do recém nascido". Percebemos que nesses países a gestação não é encarada como responsabilidade só da mãe, porque as licenças se destinam a quem vai cuidar do bebê. No Brasil, o pai só terá o mesmo direito da licença maternidade se a criança não tiver uma mãe ou se ela morrer. Para as leis trabalhistas brasileiras, parece que as responsabilidades de cuidado são apenas da mãe.

A questão da amamentação dificultaria a participação dos pais?

A CLT determina que para amamentar o filho, a mulher terá direito a dois intervalos diários de 30 minutos, até o bebê completar seis meses de idade. Para o pai o benefício não é concedido. Mas será que só a mãe pode amamentar? Eu afirmo que não. Quando nós, mulheres, voltamos da licença maternidade costumamos tirar o leite e deixar com algum responsável como babá ou avó da criança para amamentá-lo. O que também poderia ser feito perfeitamente pelo pai se ele tivesse o mesmo direito aos intervalos para amamentar o filho, alternando com a mãe.

No que essa diferença de direito entre a mãe e o pai trabalhadores resultam?

Apesar de parecer privilégio, na prática só torna a jornada da mulher ainda mais difícil, especialmente no mercado de trabalho. E é claro que o empregador acaba dando preferência para o funcionário homem, afinal, a mulher-mãe acaba se tornando uma mão de obra mais cara e inconveniente. Tanto que chega a perder o  emprego. Um exemplo dessa disparidade é o fato de o pai empregado poder acompanhar o filho apenas uma vez ao ano ao médico. Quem vai faltar todas as outras vezes no trabalho e sofrer as consequências, é a mãe.

Do que se trata a chamada "divisão sexual do trabalho"?

Confunde-se muito o que é cultural e o que é natural. A cultura naturaliza o trabalho de cuidado como sendo feminino. Não é à toa que 75% dos trabalhos de cuidado não remunerados no mundo são realizados por meninas e mulheres.  Criou-se estereótipos do que homens e mulheres são e devem fazer. Reproduz-se o que chamamos de "divisão sexual do trabalho’’, que reserva para o homem o espaço público e produtivo, e para a mulher, o espaço privado, doméstico, do cuidado e da reprodução. Para o homem trabalhar basta apenas o emprego. A mulher precisa de um emprego e de saber se vai conseguir conciliar os seus horários para também cuidar da família. Apesar de serem maioria numérica e mais qualificadas no mercado, elas recebem em média 40% a menos que o sexo oposto.

Quais políticas públicas podem mudar esse cenário?

Para poder trabalhar, a mulher-mãe precisa contar com uma rede de apoio. De modo geral, ou deixa o filho ser criado por outra mulher, ou precisa de uma creche ou escola para que ele tenha onde ficar. Dados do IBGE apontam que quanto maior a disponibilidade de creches, maior é a participação das mulheres no mercado de trabalho. Quando apenas um dos filhos está na creche, a participação cai de 73% para 48%. Por outro lado, a disponibilidade de creches não impacta na participação dos homens no mercado, o que pode ser explicado pelo fato de  quase 29 milhões de famílias serem chefiadas por mulheres no Brasil. São 12% das famílias compostas só pelas mães com os filhos e apenas 1,8% composta apenas pelo pai com os filhos.

Do que se trata a teoria do "Teto de Vidro"?

É um fenômeno social que, a partir de barreiras culturais, organizacionais, familiares e individuais, dificulta o acesso das mulheres a posições de liderança, principalmente aos mais altos níveis na hierarquia. No Brasil, as mulheres ocupam pouco mais de 13% dos cargos de direção, ou seja, há um teto de vidro no mercado. A metáfora mostra que a mulher enxerga a possibilidade de ascender através do vidro, mas é um material muito difícil de ser atravessado. Quando conseguem, caem de um penhasco, herdando situações de crise irremediáveis, culminando por serem responsabilizadas por um fracasso que já era iminente.  Isso comprova que, de fato, as mulheres são discriminadas e preteridas no mercado de trabalho. As raízes da discriminação são profundas, mas apontam para o fato da mulher engravidar.

E o que seria ser pai?

Uma pergunta recorrente é se ser pai é ajudar. Precisar pedir ajuda é o efeito colateral mais nítido da cultura de naturalização do cuidado como feminino. Nos levando a uma administração mental do trabalho doméstico, produtivo e emocional. O que nos coloca em uma jornada de trabalho continuada. E os homens acabam ficando às margens das responsabilidades da paternidade, porém livres e protagonistas no mercado de trabalho. As leis trabalhistas são o espelho dessa sociedade que confunde o que é cultural com o que é natural.

Como o direito pode auxiliar em uma mudança cultural sobre as responsabilidades advindas da maternidade e da paternidade?

Acredito que o direito pode mudar a cultura. Um exemplo é a Lei Seca que proíbe dirigir sob efeito de álcool. Outro, a lei que proíbe fumar em local fechado. Por meio da lei mudou-se culturas que já estavam arraigadas na sociedade. Uma proposta de emenda à Constituição de 1988 emocionou os parlamentares: o direito à licença-paternidade, de autoria do deputado Alceni Guerra. O que a princípio foi visto com estranheza e até zombaria, tornou-se um alento para milhares de pais brasileiros. Dar direitos aos homens para poderem cuidar de seus filhos levaria a uma equiparação de custo e tratamento no mercado de trabalho e na harmonização de deveres de cuidados. Não se trata de tirar direitos das mulheres, mas sim, de dar responsabilidades aos homens para que as mulheres sejam verdadeiramente livres para trabalhar e fazer escolhas.
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