Agora, no ano em que completa cinco décadas, o Grupo Corpo volta a jogar luz sobre o protagonismo feminino. Pela primeira vez em sua história, a companhia prepara um espetáculo que terá a trilha sonora assinada unicamente por uma mulher: a compositora, pianista, vocalista e educadora Clarice Assad, 47 anos. Também é inédita a forma como o novo espetáculo está sendo estruturado. Desta vez, o coreógrafo Rodrigo Pederneiras está trabalhando em um sistema singular de parceria. E, assim, mais uma presença feminina passa a ocupar um papel fundamental na construção da obra, para além de Clarice: estamos falando de Cassi Abranches, 51 anos, ex-bailarina do Corpo que já havia assinado um balé para o grupo, Suíte Branca, em 2015.
. Nascida no Rio de Janeiro, Clarice Assad transita com desenvoltura pelos mais diversos gêneros. Seu contato com o universo musical vem desde a infância - ela é filha de Sérgio Assad, do icônico Duo Assad, complementado por Odar, e sobrinha da violonista, cantora, percussionista e compositora Badi Assad. Entre os vários trunfos de sua trajetória, Clarice já foi duas vezes indicada ao Grammy – prêmio anual que destaca nomes da música internacional.
. O convite para trabalhar com o Corpo, conta Clarice à Encontro, diretamente de Chicago, onde vive atualmente, surgiu por meio de um telefonema do compositor e violonista Arthur Nestrovski. “O Arthur é amigo do (músico, compositor e ensaísta) José Miguel Wisnik, parceiro do grupo há muito tempo, e que eu também adoro”, explica. Wisnik fez a ponte e, por uma feliz coincidência, a obra foi oficialmente encomendada a Clarice no dia do seu aniversário, 29 de fevereiro, no ano passado. A moça, claro, abraçou a tarefa na hora. “O Corpo é uma grande referência, conhecido e reconhecido em todo o mundo. É um enorme patrimônio brasileiro, que exporta o que há de melhor e mais belo da nossa cultura”, pontua..
. A compositora revela que, ao se debruçar sobre a tarefa de compor a trilha, a primeira palavra que lhe veio à mente foi revolução. “A ideia foi tomando forma a partir do momento em que me sentei para compor”, rememora. O sentimento de que a humanidade estava entrando em uma nova fase, como se forças transformadoras estivessem se unindo para mudar a direção da história, fluiu livre na composição. Se o que está por vir é uma utopia ou uma distopia, não se sabe. “Mas para que a mudança aconteça, é preciso tombar muitos sistemas, muitas crenças, muitas coisas”, acredita ela. Só assim o novo pode ser construído.
. Segundo Clarice, a música reflete esse sentimento em todo o seu curso. Assim, há momentos que soam mais orquestrais, como “um solo de violino que nos remete para o passado, mais barroco, e vai disso até sons eletrônicos e umas coisas que foram criadas com softwares de inteligência artificial bem lá no final, uma coisa bem caótica, muita informação da era digital, da era do ar”. No entanto, afirma, a obra não termina em desespero. “Depois vem uma coisa completamente diferente, mais lúdica, mais contemplativa. Como se fosse um recomeço esperançoso”, descreve. A peça não tem título ainda, e nem o balé. Como em todas as obras anteriores do grupo, é a coreografia que define o nome, e ela ainda está sendo elaborada. “Até eu estou curiosa”, admite Clarice.
. Ineditismo
Por seu lado, Cassi Abranches conta como está sendo o desafio diferente de criar um balé “junto, mas separado”. “Eu e Rodrigo estamos trabalhando separadamente na trilha, cada um com metade da companhia. Desse modo, os bailarinos que estão comigo não sabem o que ele (Rodrigo) e os outros bailarinos estão fazendo - e vice-versa”, explica. A coreógrafa conta que, provavelmente em junho, um vai assistir aos movimentos criados pelo outro e, daí, vão decidir qual será a versão do balé que irá para o palco. Um processo que ela própria entende como “ousado”: “Tem um vanguardismo que é a cara do Corpo. Acredito que ninguém no mundo tenha tido uma experiência como essa. Na verdade, não gosto de trabalhar com expectativas, prefiro manter os pés sempre no chão, mas entendo que a gente está dando o nosso melhor.”
Bastidores
Como se sabe, o Grupo Corpo nasceu da paixão dos irmãos Pederneiras – José Luiz, de 74 anos; Paulo, de 73; Pedro, de 72; Rodrigo, de 69; Míriam, de 66; e Marisa, de 65 – pelo balé. A primeira a se render ao encanto da dança foi Míriam. Pré-adolescente, decidiu frequentar as aulas da professora Marilene Martins – que, pouco mais tarde, montou a Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Todos os irmãos se interessaram, mas Marisa se casou e foi morar na Alemanha bem no início da história.
. Já José Luiz foi bailarino da trupe, mas logo optou pela carreira de fotógrafo. Os outros quatro permaneceram – Pedro se aposentou como diretor técnico, Míriam hoje se dedica aos projetos sociais do grupo e Rodrigo é o coreógrafo residente. No entanto, quem pôs fogo nos irmãos para montar uma companhia de dança é o único que nunca foi bailarino: Paulo, que fazia teatro.
. Completando a fala uma da outra, Cristina e Macau dizem que a trajetória do Corpo se iniciou com uma garra que só se vê em gente que se joga e vai. “O Paulo costuma dizer que ele era pretensioso, até mesmo inconsequente, de achar que ia criar e dirigir uma companhia de dança”, explicam. Podia até ser, mas soube valorizar o talento criativo dos parceiros e liderar o Corpo rumo ao lugar de destaque que ocupa no cenário da dança mundial.
. Muitos outros personagens foram fundamentais na tarefa de dar forma ao Corpo. Cristina conta que Rodrigo e Paulo, junto com Fernando Velloso e Freusa Zechmeister, sempre discutiam a visão geral do balé em construção no momento, trocando ideias e opiniões. “Eles formavam um núcleo de criação com encaixe perfeito”, diz Cristina, secundada por Macau: “Os dois se complementam”. O artista plástico Velloso, que criou cenários para diversos balés até os anos 2000, vem se dedicando mais à pintura desde então.
. Cristina e Macau definem Freusa como uma esteta, pessoa de bom gosto que pesquisava muito antes de fazer “coisas maravilhosas”. Como tinha outros compromissos profissionais, não viajava o tempo todo com o grupo nas apresentações no exterior e em outros cantos do Brasil, mas sempre se programava para estar presente nas estreias em turnês importantes. Elas pontuam que este espetáculo em comemoração aos 50 anos da companhia é o primeiro que farão sem Freusa e lamentam: “É uma perda gigantesca, não só como profissional, mas como amiga, como família mesmo.”
Da França, escala de uma turnê que segue para os Estados Unidos e terminaria em maio, o diretor artístico Paulo Pederneiras também falou sobre a amiga: “A Freusa não fazia só figurinos, ela vestia o movimento. Seu olhar preciso e sua sensibilidade estética moldaram a identidade visual do Grupo Corpo de uma forma única e definitiva.”
. Corpo Cidadão
Iniciada como uma operação familiar, a companhia conta com Pederneiras de primeira e segunda geração na equipe, mas o sentido de pertencimento vai além dos laços de sangue. Desde que largou os palcos, Míriam, a pioneira no mundo da dança, assumiu a ONG Corpo Cidadão. Ela conta que já tinha um apelo pelo social desde a infância. Criada na Serra, localizada na região centro-sul de BH, próxima às favelas que hoje formam o aglomerado que leva o nome do bairro, ela via crianças sujas catando lixo para levar para os porcos, e sentia o coração apertar. “Levava-as para tomar banho lá em casa, ainda criança alfabetizei algumas, ensinava coisas da escola”, lembra.
. Instada a avaliar quantos meninos e meninas passaram pelas atividades do Corpo Cidadão ao longo de mais de 25 anos, Míriam acredita que mais de 12 mil. A maioria aproveitou a oportunidade para crescer como ser humano e valorizar os seus talentos e conquistas. Uns poucos receberam bolsas para a escola de dança da companhia e hoje trabalham na atividade.
Relembre espetáculos do Grupo Corpo que tiveram algum protagonismo feminino:
1976 - Maria Maria
Espetáculo com música de Milton Nascimento, roteiro de Fernando Brant e coreografia de Oscar Araiz exalta a força da mulher brasileira
1981 - Interânea
Ano em que a arquiteta e designer Freusa Zechmeister inicia a parceria com a companhia, criando o figurino do espetáculo
1988 - Mulheres
Primeiro balé da companhia que tem coreografia de uma mulher, a inovadora bailarina alemã Susanne Linke, hoje com 80 anos
2007 - Breu
Obra com coreografia de Rodrigo Pederneiras e música de Lenine tem um dos figurinos mais icônicos de Freusa Zechmeister
2015 - Suíte Branca
Obra coreografada pela paulistana Cassi Abranches, com música de Samuel Rosa. Estreou juntamente com Dança Sinfônica, coreografado por Rodrigo Pederneiras, nos 40 anos da companhia
2017 - Gira
Juçara Marçal teve seu nome inserido nos créditos da trilha sonora do espetáculo, junto a Kiko Dinucci e Thiago França, seus companheiros do Metá Metá
2021 - Primavera
Sandra Peres se incumbiu, ao lado do parceiro Luiz Tatit, ambos do Palavra Cantada, da trilha sonora que marcou a volta após a fase mais difícil da pandemia da Covid-19.
2022 - Gil Refazendo
Último espetáculo do Grupo Corpo que teve figurino de Freusa Zechmeister