Revista Encontro

Meio Ambiente

Mineiro é recordista nacional em reprodução de aves ameaçadas de extinção

À frente do Crax, em Contagem, Roberto Azeredo já reintroduziu centenas de aves na natureza e alcançou feitos inéditos na conservação de espécies raras

Daniela Costa
Pioneiro, o conservacionista de aves Roberto Azeredo é o criador do Crax, centro de conservação científica de aves brasileiras ameaçadas de extinção localizado em Contagem: "Como é que você vai proteger uma espécie que está desaparecendo sem reproduzi-la sistematicamente e devolvê-la à natureza?", questiona. - Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação
À primeira vista, a área às margens da BR-040, na saída para Sete Lagoas, no município de Contagem, parece apenas um recorte verde resistindo ao avanço da urbanização. Mas basta ultrapassar os portões para entender que ali pulsa um dos mais importantes projetos ambientais do Brasil: o Crax - Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre, um centro de conservação científica de aves brasileiras ameaçadas de extinção. Foi lá que o mineiro Roberto Azeredo, 77 anos, construiu a sua base e entrou para a história tornando-se recordista nacional em reprodução desses animais em criadouro científico para reintrodução na natureza. O local, que hoje soma 60 mil metros quadrados, foi adquirido aos poucos e com recursos próprios do homem que nunca desistiu do seu propósito. Lá, mais de 600 espécies vivem sob sua proteção, entre elas  mutuns, jacutingas,  chachalacas-de-bico-ruivo,  macucos, urumutum, e até a maior águia das Américas, a mítica harpia. 
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“Quando comprei o primeiro pedaço, disseram que eu estava ficando doido. Era só mato, nem rua tinha”, lembra. Nascido em Belo Horizonte, o administrador de empresas construiu uma trajetória sólida no setor financeiro, com passagens por bancos comerciais, corretoras e até mesmo como operador da antiga Bolsa de Valores de Minas. Mas foi longe dos números e das salas de reuniões que ele encontrou sua verdadeira vocação como conservacionista de aves. 
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“Minha história com os pássaros começou na infância. Lembro que, aos 4 anos, ganhei de presente do meu pai um canarinho-da-terra. Fiquei fascinado”. Apesar do amor pelas aves ter nascido cedo, a vida seguiu por outros caminhos até que Roberto estivesse pronto para investir de verdade nessa vocação. “Esperei ter meu primeiro trabalho para começar a investir, ainda que modestamente, no meu projeto”, explica. Só por volta dos 18 anos é que ele iniciou experiências de reprodução com passeriformes (aves pequenas) e, mais tarde, com espécies de maior porte. 
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Da esquerda para a direita: Jacutinga (a Aburria Jacutinga); Gavião-real (Harpia Harpyja; Jaó-do-sul(Crypturellus Noctivagus) e Mutum Fava (Crax Globulosa) - Foto: Arquivo PessoalUm trabalho sério e comprometido de conservação. “O que eu faço não é prender aves em gaiolas. Meu objetivo é entender profundamente a biologia de cada espécie, criar protocolos de reprodução em cativeiro e, o mais importante, prepará-las para voltar à natureza”, afirma. Um trabalho feito com observação, paciência e muita dedicação.
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Autodidata, relata que aprendeu tudo sozinho e com as próprias aves. “Não há curso universitário que ensine o manejo diário dessas espécies. Elas são minhas professoras”. Diariamente, o conservacionista investiga o comportamento, os rituais de acasalamento, o tipo de ambiente ideal para cada espécie e até como elas se protegem de predadores. “Soltar uma ave na natureza não é largá-la ao acaso. É um processo. E, acredite, elas estão prontas. Mesmo nascidas fora da natureza, já carregam um instinto milenar que as guia.” 
 
A jornada épica de Roberto teve início entre 1975 e 1979, quando decidiu resgatar da extinção o mutum-do-sudeste (Crax blumenbachii), ave imponente que habitava as matas da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Determinado, ele financiou cinco expedições nas florestas das regiões. 
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As primeiras aves só foram encontradas na quarta e quinta viagens. Anos depois, ele não só conseguiu reproduzi-las em cativeiro como também as devolveu ao seu habitat natural. “Não sabia se elas conseguiriam se alimentar sozinhas ou se proteger de predadores. Mas, ao observar, percebi que sabiam escolher quais folhas comer, o que era ou não seguro. A natureza já está dentro delas”, conclui. 
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Preocupado com a variabilidade genética, buscou formar um grupo forte e saudável. Hoje, completa 50 anos de trabalho com a espécie. O saldo? Mais de 1.500 aves nascidas em seu criadouro, 432 solturas em quatro áreas onde o mutum estava extinto e quase 300 filhotes já nascidos na natureza a partir dos reintroduzidos. “Se a gente vê um filhote na mata, é sinal de que nasceram muitos mais. Eles se camuflam tão bem que quase não aparecem”, explica com entusiasmo. 
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E como se tudo isso não bastasse, Roberto também decidiu fazer o que ninguém jamais havia feito. Intrigado pelos insucessos da reprodução natural da maior águia das Américas, a Harpia harpyja, em criadouro científico, passou a investigar pessoalmente os métodos utilizados no Brasil e no mundo. Descobriu que, até então, todos os filhotes nasciam de ovos retirados do ninho e criados artificialmente, uma abordagem que tornava a ave dependente do ser humano e, portanto, inviável para soltura. 
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“Mas minha meta era outra. Eu queria que ela fizesse tudo sozinha: construísse o ninho, chocasse o ovo, alimentasse o filhote. E consegui”, conta. Ele não só provou que é possível criar a ave de forma natural, com mínima interferência humana, como também se tornou a primeira pessoa no mundo a conseguir a reprodução natural da harpia em cativeiro. “Fora do país, já haviam investido milhões de dólares nesse projeto e nunca haviam conseguido”, diz com satisfação. 
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O criador já foi citado pela revista Pesquisa Fapesp, um dos principais veículos de divulgação científica no Brasil, como a pessoa que mais entende dos hábitos do mutum-de-alagoas. A reportagem conta detalhes dessa paixão pelos chamados cracídeos família de galináceos que inclui os mutuns, as jacutingas, os jacus e as aracuãs: A fim de encontrar o par perfeito, ele pode passar horas vendo as reações de aves postas para acasalar. “Azeredo é capaz de perceber que a fêmea não está à vontade com o macho e promover a troca de um dos indivíduos para encontrar o melhor par”, comentou, à época, Luís Fábio Silveira, vice-diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP). “Sem ele, não teríamos conseguido criar em cativeiro tantos mutuns.” 

Roberto só lamenta, por entraves burocráticos, ainda não ter conseguido fazer a reintrodução da espécie na natureza. Para ele, não há preservação verdadeira se a espécie continua presa atrás de grades, por mais seguras que sejam. “Como é que você vai proteger uma espécie que está desaparecendo sem reproduzi-la sistematicamente e devolvê-la ao seu habitat natural?”, questiona.
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Apesar da grandiosidade do seu trabalho, a sustentação financeira do seu centro de conservação não vem de patrocinadores permanentes e relata que toca tudo com ajuda da esposa, Elizabete do Nascimento. “Mantemos a área basicamente com recursos próprios e sempre colocando a mão na massa. Seja domingo, feriado ou aniversário, as aves precisam ser alimentadas todos os dias”, diz. Pontualmente, algumas empresas colaboram com uma parte do projeto, mas não é algo constante. “A Cenibra é a única que nos patrocina há 35 anos, com parte das despesas”. Para o conservacionista de aves, não há preservação sem três palavras: restauração, reprodução e reintrodução. 


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