Daria para dizer até que esse novo capítulo da história, que começa a ser escrito, não é só sobre o prédio em estilo art déco: a empreitada, afinal, inaugura de fato a aplicação de uma legislação que pretende mudar a cara – e o uso – do hipercentro de Belo Horizonte ao estimular a recuperação de edifícios obsoletos por meio de incentivos fiscais, flexibilizações técnicas e exigência de contrapartidas urbanísticas.
. Criada para enfrentar o esvaziamento de áreas centrais, a Lei do Retrofit (nº 11.783/2024) prevê isenção de impostos como ITBI e IPTU, além de permitir ajustes antes proibidos pelas normas urbanas, como banheiros com ventilação mecânica, fachadas aeradas e dispensa de vagas de garagem. Mas, como toda mudança estrutural, a eficácia da norma depende da adesão de múltiplos agentes – arquitetos, investidores, poder público e a própria população.
. Ainda assim, ele alerta que a lei, sozinha, não fará milagres. “Sua eficácia dependerá de medidas que extrapolam o texto legal, como linhas de crédito subsidiadas e investimentos robustos na requalificação do hipercentro. Calçadas, iluminação, segurança, limpeza, sinalização histórica, tudo isso é essencial para o sucesso do retrofit como política urbana”, aponta o urbanista.
. A nova legislação prevê, por exemplo, que projetos contem com “gentilezas urbanas”: espaços de convivência, fachadas ativas com comércios ou terraços acessíveis ao público. Ulisses considera a ideia acertada, mas não suficiente. “A simples criação desses espaços não garante sua ocupação efetiva. O centro está cheio de lojas fechadas. A ocupação depende da qualidade urbana e da vitalidade econômica”, determina.
. Memória viva, não congelada
É ele quem explica que, inicialmente aprovado antes da Lei do Retrofit, o projeto passou por uma redefinição recente, quando os proprietários decidiram mudar o programa. Agora, o edifício será exclusivamente residencial e, com isso, a equipe trabalha na reaprovação das intervenções, desta vez com base nos dispositivos da nova legislação.
. Entre as estratégias previstas, estão a abertura de um terraço panorâmico no terceiro andar ao público e a criação de áreas de uso comum que não exigem consumo. “Mesmo antes da lei, já propusemos isso. O prédio é simbólico demais para ficar isolado. A ideia é que as pessoas possam subir, ver a vista, sentir o prédio vivo”, explica.
. A experiência prática de Alvarenga, que já figurou na lista dos dez arquitetos mais cobiçados do país feita pela revista “GQ”, reforça a importância das flexibilizações técnicas trazidas pela nova legislação. Ele cita o exemplo da ventilação dos banheiros: nos antigos quartos de hotel, não havia iluminação ou ventilação natural – algo antes exigido para residências.
. “Você não vai mudar o banheiro de lugar, jogar para a fachada só para atender à norma antiga. Isso era inviável. A flexibilização tornou o retrofit possível”, explica. Segundo ele, antes da lei, arquitetos eram obrigados a encontrar “atalhos” para burlar a rigidez normativa, registrando os imóveis como flats, por exemplo. “Isso não é saudável para nenhuma cidade”, comenta.
. Mas mesmo com os avanços legais, Marcelo pondera: projetos como o do Othon ainda são exceções. “Na maioria dos casos, os edifícios do centro têm vários donos e não se encaixam nos critérios da lei (o retrofit engloba uma mudança de função de usos outros para uso residencial, não sendo aplicável a revitalização de prédios comerciais que mantenham a função original). A legislação é um passo, mas precisa ser acompanhada de uma política mais ampla de manutenção e incentivo”, defende.
. Planos, entraves e desejos
O potencial da Lei do Retrofit vai muito além dos imóveis privados. Ulisses Morato, entre inúmeros prédios potencialmente candidatos a serem retrofitados, aponta dois edifícios públicos com imenso valor simbólico e estrutural: a antiga Escola de Engenharia da UFMG (na rua Espírito Santo, esquina com Guaicuru, no Centro), hoje sob responsabilidade da Prefeitura de Belo Horizonte, e o Edifício Chagas Dória (na Alvarenga Peixoto, Lourdes), do Governo Federal. Ambos estão desocupados há anos e poderiam ser reocupados com usos públicos qualificados. “Um bom exemplo de ação governamental seria oferecer uso público qualificado a essas edificações, reforçando a proposta de revitalização via retrofit”, defende.
. Ambos concordam que a lei é só o começo. “No meu entendimento – para que essa região volte a ter a vitalidade que já experimentou em outras épocas –, ainda falta um planejamento urbano integrado e específico, que envolva poder público, técnicos de arquitetura e urbanismo, do patrimônio cultural, agentes econômicos e a sociedade civil”, cita Morato.
. Ele acrescenta que, hoje, esse esforço passaria, por exemplo, por programas de crédito e subsídios de aluguel para pequenos e médios empreendedores criativos, reforçando a economia local; implementação das chamadas “Ruas Completas”, com calçadas mais largas, redução de tráfego veicular e instalação de mobiliário urbano; editais de ocupação cultural temporária em imóveis que persistirem vazios; e ampliação da sinalização turística interpretativa. “Tudo isso teria potencial de beneficiar a população ao valorizar o estar e a contemplação do patrimônio edificado, naquele que deveria ser o principal lugar de encontro e de memória da cidade”, conclui.
. Além do retrofit
Se a Lei do Retrofit abriu novas possibilidades para a reocupação de prédios antigos do hipercentro, outras iniciativas paralelas vêm mostrando que a revitalização urbana em Belo Horizonte não se resume apenas ao campo legal. Empresas e marcas do setor privado têm investido em reformas, requalificações e até em novos conceitos arquitetônicos que ajudam a reposicionar edifícios e regiões inteiras da cidade.
. Um dos exemplos é a atuação da Brasil All Service, empresa especializada em engenharia e arquitetura, que já deixou sua marca em edificações icônicas como o Mineirão. Para o diretor e fundador, Antônio Dias, a legislação recém-aprovada foi um divisor de águas. “A Lei do Retrofit é um marco muito importante porque deu condições reais para que prédios antigos pudessem ser modernizados sem precisar ser demolidos. Antes, a burocracia e as normas acabavam travando muitos projetos. Hoje, conseguimos revitalizar imóveis que estavam esquecidos, dar nova vida a regiões inteiras da cidade e, ao mesmo tempo, preservar parte da história urbana”, avalia.
. Segundo ele, o grande diferencial das flexibilizações é permitir que arquitetos e engenheiros tragam o prédio para o presente sem apagar o passado. “É como atualizar o corpo técnico e estrutural de um edifício, mas sem perder sua essência. Trabalhamos desde a modernização elétrica e hidráulica até a aplicação de materiais mais duráveis e sustentáveis”, explica.
. Atualmente, a Brasil All Service conduz projetos de destaque na capital mineira, como o retrofit da fachada do Ministério Público de Minas Gerais, a restauração do Edifício Príncipe de Nassau e melhorias no shopping Diamond Mall. “Nosso objetivo é valorizar o patrimônio, preservar a identidade dos prédios e oferecer soluções modernas, seguras e competitivas”, resume.
. Empreendimento da Accor, o projeto investe em uma proposta que valoriza a convivência e a experiência urbana. “Queremos que o hotel seja um ponto de encontro, um espaço vivo, aberto também para o público local, não apenas para hóspedes”, destaca Roberta Vernaglia, executiva da Accor Américas.
. Com rooftop panorâmico, café integrado ao lobby e ambientes multifuncionais, o Tribe, segundo Guilherme Mendes, gerente geral do hotel, reforça a ideia de que requalificar um prédio significa, mais que recuperar sua estrutura, reposicioná-lo dentro da lógica cultural e econômica da cidade.
. Saiba mais
O que é Retrofit?
Retrofit é um termo de origem inglesa que, na arquitetura, se refere à modernização de edificações antigas, como edifícios históricos, sem prejudicar seu valor cultural, estético e histórico. Vai além de uma simples reforma: é um processo de requalificação urbana.
. Decreto
A Lei do Retrofit, que é a Lei nº 11.783/2024, foi regulamentada pela Prefeitura de Belo Horizonte por meio do Decreto nº 19.151, publicado em 26 de junho de 2025.
Objetivo
Revitalizar o Hipercentro de Belo Horizonte, incentivando o aproveitamento de imóveis antigos e subutilizados.
. O que muda na prática?
A lei flexibiliza normas urbanísticas e técnicas, facilitando a transformação de imóveis antigos. Confira as principais mudanças:
- Permissão de ventilação mecânica em banheiros
- Uso de fachadas aeradas
- Critérios mais acessíveis para acessibilidade
- Dispensa obrigatória de vagas de garagem
Incentivos fiscais
A nova legislação oferece benefícios concretos para atrair investidores, como isenção de ITBI na compra de imóveis para habitação; desconto de 50% no IPTU por até 3 anos e facilitação no licenciamento e regularização de obras
Sustentabilidade e inclusão social
Os benefícios são concedidos mediante contrapartidas que promovam o bem-estar coletivo.
. São obrigatoriedades:
- Uso de tecnologias sustentáveis (eficiência energética)
- Acessibilidade garantida
- Pelo menos uma gentileza urbana, como fachadas ativas (comércios no térreo); áreas de convivência pública ou terraços de uso coletivo
Restrições
A lei não se aplica a: áreas de risco, terrenos públicos; zonas não edificáveis; imóveis sob disputa judicial; imóveis que interfiram em bens tombados