Revista Encontro

Cidade

O que é a Lei do Retrofit e como ela pode transformar o hipercentro de BH

Norma recém-aprovada incentiva a recuperação de edifícios antigos com novos usos e pode redesenhar o futuro do coração de Belo Horizonte

Alex de Oliveira
Erguido em 1940, o Edifício Maranhão foi o primeiro a ter um projeto aprovado com base na recém-regulamentada Lei do Retrofit de Belo Horizonte - Foto: Pádua de Carvalho
Na rua dos Tupinambás, a poucos metros da Praça Sete, o antigo Edifício Maranhão começa a escrever um novo capítulo de sua história. Construído na década de 1940, o prédio modernista de dez andares, que durante décadas abrigou salas comerciais, foi o primeiro a ter um projeto aprovado com base na recém-regulamentada Lei do Retrofit. Com alvará emitido em junho de 2025, ele será transformado em um residencial com 124 apartamentos, com previsão de conclusão em quatro anos. A fachada será preservada, mas o interior será reconfigurado para responder a novas demandas urbanas. 
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Daria para dizer até que esse novo capítulo da história, que começa a ser escrito, não é só sobre o prédio em estilo art déco: a empreitada, afinal, inaugura de fato a aplicação de uma legislação que pretende mudar a cara – e o uso – do hipercentro de Belo Horizonte ao estimular a recuperação de edifícios obsoletos por meio de incentivos fiscais, flexibilizações técnicas e exigência de contrapartidas urbanísticas.
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Criada para enfrentar o esvaziamento de áreas centrais, a Lei do Retrofit (nº 11.783/2024) prevê isenção de impostos como ITBI e IPTU, além de permitir ajustes antes proibidos pelas normas urbanas, como banheiros com ventilação mecânica, fachadas aeradas e dispensa de vagas de garagem. Mas, como toda mudança estrutural, a eficácia da norma depende da adesão de múltiplos agentes – arquitetos, investidores, poder público e a própria população. 
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Para o arquiteto e urbanista Ulisses Morato de Andrade, a Lei do Retrofit tem potencial para enfrentar a inocupação dos edifícios, incrementar a atividade econômica e produzir habitação social - Foto: Arquivo PessoalUm dos estudiosos do tema, o arquiteto e urbanista Ulisses Morato de Andrade vê com bons olhos a iniciativa. “Ela tem potencial para enfrentar a vacância dos edifícios, incrementar a atividade econômica e produzir habitação social. Também incentiva a reconversão de construções obsoletas – sem acessibilidade, eficiência energética ou conforto”, examina.
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Ainda assim, ele alerta que a lei, sozinha, não fará milagres. “Sua eficácia dependerá de medidas que extrapolam o texto legal, como linhas de crédito subsidiadas e investimentos robustos na requalificação do hipercentro. Calçadas, iluminação, segurança, limpeza, sinalização histórica, tudo isso é essencial para o sucesso do retrofit como política urbana”, aponta o urbanista. 
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A nova legislação prevê, por exemplo, que projetos contem com “gentilezas urbanas”: espaços de convivência, fachadas ativas com comércios ou terraços acessíveis ao público. Ulisses considera a ideia acertada, mas não suficiente. “A simples criação desses espaços não garante sua ocupação efetiva. O centro está cheio de lojas fechadas. A ocupação depende da qualidade urbana e da vitalidade econômica”, determina.
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Memória viva, não congelada

O Othon Palace será o novo Afonso Pena 1050: reforma do imóvel que funcionou como um hotel por 40 anos na capital prevê abertura de um terraço panorâmico no terceiro andar e a criação de áreas de uso comum que não exigem consumo - Foto: Pablo Gomide/DivulgaçãoSe, no campo das ideias, a lei parece promissora, na prática ela já começa a influenciar projetos em andamento – inclusive aqueles iniciados antes de sua sanção. É o caso da revitalização do Othon Palace Hotel, ícone modernista na avenida Afonso Pena, cujo novo projeto está sob os cuidados de um grupo de profissionais, entre os quais o arquiteto Marcelo Alvarenga, da Play Arquitetura.
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É ele quem explica que, inicialmente aprovado antes da Lei do Retrofit, o projeto passou por uma redefinição recente, quando os proprietários decidiram mudar o programa. Agora, o edifício será exclusivamente residencial e, com isso, a equipe trabalha na reaprovação das intervenções, desta vez com base nos dispositivos da nova legislação.
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Terraço panorâmico previsto na reforma do Othon Palace, que será o novo Afonso Pena 1050 - Foto: Play Arquitetura/divulgaçãoMais do que uma reconfiguração legal, a proposta para o Othon é também um gesto simbólico. “Nenhum edifício sobrevive sem atenção física. Mesmo com a preservação absoluta da arquitetura, é preciso dotá-lo de atividades, de vida. A memória congelada e inerte não tem muito sentido”, opina Alvarenga, para quem preservar não é apenas manter a fachada: é garantir que o edifício seja útil e habitado. “O que a gente busca é isso: que o prédio seja parte ativa da cidade”.
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Entre as estratégias previstas, estão a abertura de um terraço panorâmico no terceiro andar ao público e a criação de áreas de uso comum que não exigem consumo. “Mesmo antes da lei, já propusemos isso. O prédio é simbólico demais para ficar isolado. A ideia é que as pessoas possam subir, ver a vista, sentir o prédio vivo”, explica.
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A experiência prática de Alvarenga, que já figurou na lista dos dez arquitetos mais cobiçados do país feita pela revista “GQ”, reforça a importância das flexibilizações técnicas trazidas pela nova legislação. Ele cita o exemplo da ventilação dos banheiros: nos antigos quartos de hotel, não havia iluminação ou ventilação natural – algo antes exigido para residências. 
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“Você não vai mudar o banheiro de lugar, jogar para a fachada só para atender à norma antiga. Isso era inviável. A flexibilização tornou o retrofit possível”, explica. Segundo ele, antes da lei, arquitetos eram obrigados a encontrar “atalhos” para burlar a rigidez normativa, registrando os imóveis como flats, por exemplo. “Isso não é saudável para nenhuma cidade”, comenta.
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Mas mesmo com os avanços legais, Marcelo pondera: projetos como o do Othon ainda são exceções. “Na maioria dos casos, os edifícios do centro têm vários donos e não se encaixam nos critérios da lei (o retrofit engloba uma mudança de função de usos outros para uso residencial, não sendo aplicável a revitalização de prédios comerciais que mantenham a função original). A legislação é um passo, mas precisa ser acompanhada de uma política mais ampla de manutenção e incentivo”, defende.
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Planos, entraves e desejos

O potencial da Lei do Retrofit vai muito além dos imóveis privados. Ulisses Morato, entre inúmeros prédios potencialmente candidatos a serem retrofitados, aponta dois edifícios públicos com imenso valor simbólico e estrutural: a antiga Escola de Engenharia da UFMG (na rua Espírito Santo, esquina com Guaicuru, no Centro), hoje sob responsabilidade da Prefeitura de Belo Horizonte, e o Edifício Chagas Dória (na  Alvarenga Peixoto, Lourdes), do Governo Federal. Ambos estão desocupados há anos e poderiam ser reocupados com usos públicos qualificados. “Um bom exemplo de ação governamental seria oferecer uso público qualificado a essas edificações, reforçando a proposta de revitalização via retrofit”, defende.
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%u201CO prédio do Othon é simbólico demais para ficar isolado. A ideia é que as pessoas possam subir, ver a vista, sentir o prédio vivo%u201D, afirma Marcelo Alvarenga, arquiteto da Play Arquitetura - Foto: Play Arquitetura/DivulgaçãoMarcelo, por sua vez, diz que mesmo os prédios que não se enquadram formalmente na legislação merecem atenção. “Falo muito mais de manutenção e renovação. O centro precisa de cuidados constantes, reformas pontuais, incentivo à preservação com uso. É frustrante ver imóveis tombados sem vida. A cidade precisa voltar a cuidar dos seus edifícios”, reivindica.
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Ambos concordam que a lei é só o começo. “No meu entendimento – para que essa região volte a ter a vitalidade que já experimentou em outras épocas –, ainda falta um planejamento urbano integrado e específico, que envolva poder público, técnicos de arquitetura e urbanismo, do patrimônio cultural, agentes econômicos e a sociedade civil”, cita Morato. 
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Ele acrescenta que, hoje, esse esforço passaria, por exemplo, por programas de crédito e subsídios de aluguel para pequenos e médios empreendedores criativos, reforçando a economia local; implementação das  chamadas “Ruas Completas”, com calçadas mais largas, redução de tráfego veicular e instalação de mobiliário urbano; editais de ocupação cultural temporária em imóveis  que persistirem vazios; e ampliação da sinalização turística interpretativa. “Tudo isso teria potencial de beneficiar a população ao valorizar o estar e a contemplação do patrimônio edificado, naquele que deveria ser o principal lugar de encontro e de memória da cidade”, conclui.
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Além do retrofit

Se a Lei do Retrofit abriu novas possibilidades para a reocupação de prédios antigos do hipercentro, outras iniciativas paralelas vêm mostrando que a revitalização urbana em Belo Horizonte não se resume apenas ao campo legal. Empresas e marcas do setor privado têm investido em reformas, requalificações e até em novos conceitos arquitetônicos que ajudam a reposicionar edifícios e regiões inteiras da cidade.
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Um dos exemplos é a atuação da Brasil All Service, empresa especializada em engenharia e arquitetura, que já deixou sua marca em edificações icônicas como o Mineirão. Para o diretor e fundador, Antônio Dias, a legislação recém-aprovada foi um divisor de águas. “A Lei do Retrofit é um marco muito importante porque deu condições reais para que prédios antigos pudessem ser modernizados sem precisar ser demolidos. Antes, a burocracia e as normas acabavam travando muitos projetos. Hoje, conseguimos revitalizar imóveis que estavam esquecidos, dar nova vida a regiões inteiras da cidade e, ao mesmo tempo, preservar parte da história urbana”, avalia.
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Segundo ele, o grande diferencial das flexibilizações é permitir que arquitetos e engenheiros tragam o prédio para o presente sem apagar o passado. “É como atualizar o corpo técnico e estrutural de um edifício, mas sem perder sua essência. Trabalhamos desde a modernização elétrica e hidráulica até a aplicação de materiais mais duráveis e sustentáveis”, explica. 
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Atualmente, a Brasil All Service conduz projetos de destaque na capital mineira, como o retrofit da fachada do Ministério Público de Minas Gerais, a restauração do Edifício Príncipe de Nassau e melhorias no shopping Diamond Mall. “Nosso objetivo é valorizar o patrimônio, preservar a identidade dos prédios e oferecer soluções modernas, seguras e competitivas”, resume.
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Primeira unidade hoteleira da marca Tribe no Brasil foi inaugurada após reforma de prédio histórico na praça da Liberdade, em frente ao Minas Tênis Clube - Foto: Accor/DivulgaçãoOutro caso emblemático da transformação arquitetônica da cidade é a chegada do Tribe Belo Horizonte Savassi, primeira unidade da marca no Brasil, inaugurada em setembro. Instalado nas imediações da Praça da Liberdade, próximo ao Minas Tênis Clube, o hotel foi feito em uma edificação histórica que pertencia ao governo de Minas Gerais e era utilizado como uma repartição pública até entrar em desuso. O local, hoje, combina design contemporâneo, ambientação criativa, somando 79 apartamentos e três espaços gastronômicos – entre eles o restaurante Trintaeum, já reconhecido, cuja cozinha é liderada pela chef Ana Gabi Costa. 
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Empreendimento da Accor, o projeto investe em uma proposta que valoriza a convivência e a experiência urbana. “Queremos que o hotel seja um ponto de encontro, um espaço vivo, aberto também para o público local, não apenas para hóspedes”, destaca Roberta Vernaglia, executiva da Accor Américas.
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Com rooftop panorâmico, café integrado ao lobby e ambientes multifuncionais, o Tribe, segundo Guilherme Mendes, gerente geral do hotel, reforça a ideia de que requalificar um prédio significa, mais que recuperar sua estrutura, reposicioná-lo dentro da lógica cultural e econômica da cidade.
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Saiba mais

O que é Retrofit?
 
Retrofit é um termo de origem inglesa que, na arquitetura, se refere à modernização de edificações antigas, como edifícios históricos, sem prejudicar seu valor cultural, estético e histórico. Vai além de uma simples reforma: é um processo de requalificação urbana.
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Decreto
 
A Lei do Retrofit, que é a Lei nº 11.783/2024, foi regulamentada pela Prefeitura de Belo Horizonte por meio do Decreto nº 19.151, publicado em 26 de junho de 2025. 

Objetivo
 
Revitalizar o Hipercentro de Belo Horizonte, incentivando o aproveitamento de imóveis antigos e subutilizados.
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O que muda na prática?
 
A lei flexibiliza normas urbanísticas e técnicas, facilitando a transformação de imóveis antigos. Confira as principais mudanças:
 
  • Permissão de ventilação mecânica em banheiros
  • Uso de fachadas aeradas
  • Critérios mais acessíveis para acessibilidade
  • Dispensa obrigatória de vagas de garagem
Incentivos fiscais

A nova legislação oferece benefícios concretos para atrair investidores, como isenção de ITBI na compra de imóveis para habitação; desconto de 50% no IPTU por até 3 anos e facilitação no licenciamento e regularização de obras

Sustentabilidade e inclusão social

Os benefícios são concedidos mediante contrapartidas que promovam o bem-estar coletivo.
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São obrigatoriedades: 

  • Uso de tecnologias sustentáveis (eficiência energética)
  • Acessibilidade garantida
  • Pelo menos uma gentileza urbana, como fachadas ativas (comércios no térreo); áreas de convivência pública ou terraços de uso coletivo

Restrições
 
A lei não se aplica a: áreas de risco, terrenos públicos; zonas não edificáveis; imóveis sob disputa judicial; imóveis que interfiram em bens tombados

 

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