Revista Encontro

Mostra

Giramundo celebra 55 anos em ocupação com 600 peças no Palácio das Artes

Exposição, na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard, repassa a história de uma das mais importantes companhias de teatro de bonecos do país

Patrícia Cassesse
Bia Apocalypse, Marcos Malafaia e Ulisses Tavares, trio à frente do Grupo Giramundo hoje - Foto: Enzo Giaquinto/Divulgação
Em dado momento do evento de abertura da “Ocupação Bonecos Giramundo”, em cartaz no Palácio das Artes, Marcos Malafaia, um dos atuais diretores da companhia de teatro fundada pelo mineiro Álvaro Apocalypse (1937-2003) em 1970, confessou, aos presentes, que sempre sentia um certo desconforto ao se deparar, em matérias jornalísticas sobre o grupo, no curso dessas mais de cinco décadas, com a palavra “magia”. “Me incomodava porque, na convivência diária com a equipe, o que eu menos via era magia, e, sim, muita pesquisa, técnica, trabalho, entrega, construção…”, pontuou ele, que, vale dizer, hoje responde pela companhia junto a Bia Apocalypse e Ulisses Tavares.
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Ocorre que o também desenhista, artista gráfico e roteirista admitiu estar, nesses últimos tempos, mudando a percepção. “Talvez os bonecos tenham mesmo algo de mágico. Porque, a meu ver, só assim para explicar o fascínio que seguem exercendo (sobre as plateias) mesmo em tempos tão digitais, tempos nos quais tudo é sintético, pré-fabricado”, discorreu. Aberta ao público até 22 de fevereiro de 2026, na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard, a “Ocupação Bonecos Giramundo” tem tudo para apontar que, apesar do inequívoco e minucioso trabalho de bastidores, é compreensivelmente possível pensar em um elemento que extrapola o tangível.
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Acervo de bonecos do Grupo Giramundo - Foto: Marcos Malafaia/Divulgação Aliás, um certo ar fantástico sempre fez parte do imaginário de Beatriz Apocalypse, que, além de diretora do Giramundo, é atriz, marionetista, diretora de cena e figurinista. E muito pelo fato de ela ter crescido neste universo:  Bia é uma das três filhas do casamento dos fundadores Álvaro e a artista plástica Terezinha Veloso (1936-2003). “Desde o início de tudo, no quintal da nossa casa, lembro de minha mãe falando sobre a energia peculiar de cada personagem. Mais tarde, já na época da parceria com a UFMG (a partir da década de 1980, e que incluía a utilização do espaço), “quando a gente ia embora, pouco antes de fechar a porta, meu pai falava para a gente (ela e as irmãs) observar se os bonecos estavam quietinhos. Daí, passavam uns segundos e abria de novo, para espiar. Ficávamos brincando de ‘esse mexeu’, ‘esse não mexeu’”, rememora.
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A casa à qual ela se refere, e onde tudo começou, ficava em Lagoa Santa, região metropolitana de Belo Horizonte. Além de Álvaro e Terezinha, desde o início também estava Madu (Maria do Carmo Vivacqua Martins), que lembra que o Giramundo começou sem a menor pretensão de chegar aos palcos. “Era uma brincadeira entre Álvaro, Tereza e eu”, explana. Bia complementa: “À época, eles não tinham nem ideia (da dimensão que a iniciativa alcançaria no curso do tempo). As apresentações eram feitas para amigos. E, se bobear, ainda sinto o cheiro da cola (usada para a confecção dos bonecos), por isso a felicidade em ver bonecos da fase inicial do grupo logo na entrada da exposição no Palácio das Artes. Pra mim, eles têm vida, já que carregam a história dos espetáculos e das pessoas neles envolvidas”.  

Com entrada gratuita, a exposição abarca cerca de 600 peças — entre bonecos, máscaras, objetos de cena e elementos cenográficos. A expografia contempla quatro núcleos. São eles: “Anos 1970 – Período Lagoa Santa” (1971-1976), “Anos 1980 – Período Clássico UFMG” (1979-1988), “Anos 1990 – Período UFMG Tardio” (1990-1999) e “Anos 2000” (2000-2003). Já a seção “Giramundo Século XXI” inclui as coleções: Trilogia Giramundo Teatro e Cinema, Mitologias, TV Giramundo, Miniteatro Ecológico e Bonecos Gigantes. A Ocupação também destaca a produção de figurinos, além das animações e documentários audiovisuais reunidos no “Cine Giramundo”.
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Cavaleiros de Apocalypse

Além de Madu e de Bia, a inauguração da Ocupação Bonecos Giramundo contou com a presença de expoentes cuja trajetória está imbricada à da companhia, como Sandra Bianchi, Arildo de Barros, Weracy Trindade Veloso e José Adolfo Moura, assim como parceiros importantes na seara da música, como o cantor e compositor Celso Adolfo (autor de trilhas sonoras para a companhia) e John Ulhoa (que, por exemplo, assinou a direção musical do espetáculo “Alice no País das Maravilhas”). “É muito emocionante para mim porque é uma viagem pela minha vida. E, certamente, será também para o público que acompanha o Giramundo - já são umas quatro gerações pelo menos. E isso é muito, muito gratificante em relação a tudo que fizemos e a tudo o que passamos, pois é uma cota grande de sacrifícios de quem faz arte no Brasil”, contou Madu.
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Tendo atuado na elaboração de figurinista e manipulação de bonecos, entre outros, Weracy Trindade Veloso, por seu turno, confessou à Encontro que já entrou no Palácio das Artes chorando. “Todos esses bonecos que estão expostos aqui, eu manipulei. Então, é uma grande emoção e a minha esperança é que essa iniciativa contribua para acordar as pessoas quanto à importância de não permitir que esse trabalho, tão infinitamente maravilhoso, corra risco de um dia morrer”.
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Um dos integrantes do Grupo Galpão, Arildo de Barros foi um dos atores que, no curso do Giramundo, emprestaram sua voz aos bonecos - assim como Ezequias Marques, Wilma Henriques e outros tantos ícones. Sobre a iniciativa da “Ocupação Bonecos Giramundo”, ele avalia: “Os vetores de cultura têm que se ajudar, um promovendo o outro. Então, temos, aqui, um encontro maravilhoso entre a instituição Palácio das Artes e o Giramundo”.. Por último, mas não menos importante, o músico, compositor e produtor musical John Ulhoa, integrante do grupo Pato Fu, não economizou palavras para mostrar sua admiração pelo grupo. “Esses caras são geniais, os melhores do planeta. Um patrimônio nacional, que chega aos 55 anos com essa dignidade, com essa capacidade incrível de entreter, com muita maestria e gabarito”.
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Os pequenos demônios (e outros tantos desafios)

Cena do espetáculo "Pinocchio": atualmente há 1.700 peças da companhia catalogadas - Foto: Marcos Malafaia/DivulgaçãoUma das preocupações dos integrantes do Giramundo diz respeito à restauração e à catalogação do acervo. E, nessa empreitada, um grande inimigo são “os pequenos demônios”, assim nominados por Malafaia. Ou, melhor dizendo, os cupins. “Estamos lutando para, por exemplo, preservar as 3.500 pranchas de desenhos do Álvaro Apocalypse”, exemplifica o diretor.
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A catalogação é outra frente. Bia Apocalypse conta que, atualmente, já há 1.700 peças catalogadas e 400 com laudo técnico. Ou seja, com uma ficha contendo informações fundamentais para a preservação da memória do grupo, como o ano de confecção, o material utilizado, a autoria do desenho e a que espetáculo pertence, entre outras. “Uma carteira de identidade, digamos assim”, compara a atriz e diretora.
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Um esforço maior deve ser despendido para o que os diretores do Giramundo chamam de “baú dos ossos” - um arsenal composto por “peças soltas”, como mãos, olhos, pés e pernas, para citar exemplos. São itens que vieram de bonecos que se deterioraram ao longo do tempo, inclusive por conta da vida útil dos materiais com os quais foram confeccionados. Com a ajuda da memória dos veteranos, como Madu, e de fotos, é possível inclusive que réplicas possam ser construídas com maestria.
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Documentação em livro

Além da questão da descupinização e da organização e catalogação do acervo, outra vontade dos componentes do grupo (e para um futuro breve) é a publicação de livros sobre a trajetória do Giramundo. “Há uma publicação sobre a trajetória do Álvaro Apocalypse (‘Álvaro Apocalypse - Depoimento’), mas não, por exemplo, um livro dedicado, focado, na engenharia bonecal da companhia, cuja obra, vale frisar, não pertence só a Belo Horizonte, assim como ela não é só de Minas Gerais, e não é só do Brasil: é mundial. É preciso corrigir essa lacuna”, entende. Bia Apocalypse adiciona: “Era uma vontade do meu pai, a de ter uma espécie de ‘Manual do Marionetista’. Na verdade, temos muitas possibilidades de publicações, inclusive dada a quantidade de imagens e parte técnica”, comenta.
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“Clara Crocodilo”

Boneco do espetáculo "Le Journal", de 1992 - Foto: Felipe Lucena/DivulgaçãoBia revela ainda que o Grupo Giramundo tem um projeto aprovado pela Lei Federal de Incentivo à Cultura visando a circulação de espetáculos, incluindo a remontagem de alguns. No caso daqueles cujos bonecos originais de certa forma sofreram com o passar dos anos, como “Pedro e o Lobo” (1993), baseado na obra de Sergei Prokofiev, seriam usadas réplicas. “Vamos deixar os bonecos mais antigos quietinhos, descansando”, brinca ela. Para o próximo ano, o projeto é estrear o espetáculo “Clara Crocodilo”, erguido a partir da obra homônima do cantor e compositor Arrigo Barnabé, de 1980.
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Escola

Marcos Malafaia lembra que o Giramundo também quer fortalecer a faceta “centro de formação artística”. “O que, na verdade, já foi, ainda que de modo informal, porque o Álvaro comandava uma espécie de ateliê de ofícios, no qual os aprendizes trabalhavam junto aos mestres. Em breve, a gente vai ter novidades em relação à Escola Giramundo, que é um desejo de formalização desse trabalho”, antecipa. A Escola Giramundo, prossegue Bia, pretende formar cenógrafos, marionetistas e muitas outras vertentes. “São várias frentes, estruturação de texto, criação…”, elenca.
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De mãos dadas com a FCS
 
"Alice no País das Maravilhas", um dos trabalhos mais icônicos da companhia - Foto: Acervo Giramundo/DivulgaçãoEm um contexto mais amplo, a Ocupação Bonecos Giramundo, firmada pelo Grupo Giramundo com a Fundação Clóvis Salgado, avança para outros territórios, como explica Marcos Malafaia: “Ela inclui, por exemplo, um festival de cinema (norteado pelo viés ‘o boneco dentro do cinema’) e a parte educativa, que é muito importante, talvez uma das áreas mais promissoras da relação institucional firmada entre a FCS e o grupo”. Como dito, o Giramundo está completando 55 anos de fundação. Ocorre que o ano de 1970 também marcou a criação da Fundação Palácio das Artes, sendo o espaço inaugurado no ano seguinte. Portanto, nada mais pertinente que uma ação conjunta motivada pela coincidência quanto ao tempo de trajetória, e cujo maior beneficiário é o público apreciador de arte.

Exposição “Bonecos Giramundo”
Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard (av. Afonso Pena, 1537, Centro, Belo Horizonte); Ter. a sáb., das 9h30 às 21h, dom., das 17h às 21h. Até 22/2/2026. 
Entrada gratuita

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