Revista Encontro

Gastronomia

Os pães do Brasil e do mundo que conquistaram BH

Da mesa persa ao forno indiano, nove pães revelam como a panificação brasileira e global ganhou novas formas - e novos sabores - nas padarias de Belo Horizonte

Carolina Daher
O Nan-e-barbari é feito com farinha branca, levain, fermento, água e sal, uma parte da sua hidratação é feita com azeite - Foto: Studio Terturlia/Divulgação
Farinha, água, sal e fermento. Quatro insumos simples que, juntos, formam o mais importante alimento da humanidade. A principal tecnologia para uni-los, o poder das mãos. Amassar, dobrar, esticar e esperar. Paciência também é ingrediente essencial no preparo do pão, alimento que anda lado a lado com a história do próprio homem. 
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Apesar de ser originário do Crescente Fértil, região que ia do norte da África ao Golfo Persa, o trigo só se transformou em pão no Egito. Foi na terra dos faraós que surgiu a arte da fermentação. Nos arredores das pirâmides, em pleno deserto do Saara, arqueólogos encontraram as primeiras padarias do mundo, construídas há quase 5 milênios. Era dali, de fornos ancestrais, que saiam o alimento que sustentava os trabalhadores egípcios.
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O pão atravessou os séculos. Sua receita cruzou oceanos e ganhou formatos diferentes nos cinco continentes. Um legado do mundo antigo que continua alimentando os povos em pleno século XXI. É o alimento mais consumido no planeta. Segundo artigo do Commercial Baking, pelo menos metade da população mundial come pão todos os dias. É também sagrado. Quando Jesus andou pela Galileia, eram tempos de fome, conflitos e doenças. Nesse cenário, um de seus milagres mais conhecidos foi exatamente a multiplicação dos pães. Na Santa Ceia, mais uma vez, Jesus repartiu o pão com seus discípulos, em um gesto que definiu como a civilização ocidental encara esse alimento. 
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Depois de passar pelas mãos do Messias, o pão mudou de significado. Nos manuscritos do Mar Morto, textos bíblicos mais antigos já encontrados, o pão é citado em pelo menos 29 trechos. “Eu sou o pão da vida”, disse Ele. Ou seja, assim como a fé, o pão é o alimento para todos, independentemente da classe social. Símbolo de humildade e entrega. 
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Assado em fornos de pedra ou em fornos combinados turbo, o pão andou por vários caminhos. Hoje, existe um para cada tipo de fome. No Brasil, levando em conta apenas os industrializados, o alimento está na mesa de 94,7% dos lares brasileiros, segundo a Associação de Indústrias de Biscoitos, Pães e Bolos (Abimapi). E assim como em outras áreas da gastronomia, o consumidor da padaria também tem fome de novidades. Evoluir e mudar a forma de apresentar o alimento tornou-se essencial para sobreviver em um mercado dinâmico, onde o excesso de informações, com ataques ao glúten ou carboidratos – mesmo sem nenhum tipo de critério analítico – vem prejudicando a imagem do pão nosso de cada dia.
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O americano William Rubel defende que criar uma definição estrita de pão é contraproducente. “O pão é basicamente o que a sua cultura diz que é”, diz em um trecho do livro Pão: uma História Global. Para ele, é preciso se concentrar no que o pão faz: transforma grãos em alimentos duráveis que podem ser transportados para os campos e armazenados no inverno. 
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Nas montanhas da região da Vestfália, na Alemanha, os padeiros cozinham pães de centeio densos por mais de 24 horas, enquanto o Lavash armênio feito de trigo fica pronto em 30 segundos dentro de um forno tandoor. 
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A diversidade é imensa. Por exemplo, segundo pesquisa do Market Datas Forecast, em setembro de 2025, o México é um dos países com mais tipos de pães no mundo, com cerca de 2 mil doces e 300 salgados. No Brasil, são mais de 100 mil padarias e quase 200 mil microempreendedores individuais na ativa. Juntos, eles empregam mais de 3 milhões de pessoas e movimentando anualmente mais de R$ 153 bilhões. “Minas Gerais ocupa uma posição de destaque no cenário nacional, sendo o 2º estado com o maior número de empresas do setor. A capital concentra 1954 padarias e confeitarias”, explica Paulo Menegueli, presidente da Associação Brasileira de Indústria de Panificação e Confeitaria, a ABIP.
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Com a globalização, inclusive gastronômica, hoje podemos encontrar pães vindos de toda parte na padaria ao lado de casa. “É um setor vibrante e cheio de oportunidades. Temos orgulho de nossa tradição, mas também estamos abertos à inovação”, completa Paulo. Em Belo Horizonte, fizemos uma seleção de nove pães diferentões (e outros clássicos). Tem do tradicional croissant ao Nan-e-barbari. Vem ver.
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Albertina – Nan-e-barbari 

A origem é persa. O nome se refere aos povos bárbaros da região de Khorasan, na fronteira com o Afeganistão, como eram chamados pelos iranianos da época. “Essa receita ficou muito famosa após ser publicada no livro Hot Bread Kitchen de uma padaria novaiorquina que acolhe refugiados do mundo todo e produz vários tipos de pães provenientes de diversas culturas”, explica Renata Rocha, proprietária da Albertina Pães. É um pão muito bonito e que chama bastante a atenção. O sabor, surpreendente. Na versão da Albertina, diferente da receita original, ele é preparado com levain. “É um pão leve, macio, e salgadinho pois finalizamos com gergelim e sal grosso. Perfeito para ser compartilhado e partilhado com as mãos”, diz. Um pão de mesa, acompanha bem pastas e antepastos diversos, ou apenas um azeite temperado. Não é sempre que tem. Ele aparece na vitrine de tempos em tempos. Feito com farinha branca, levain, fermento, água e sal, uma parte da sua hidratação é feita com azeite. É trabalhoso: a fermentação é feita a frio e depois modelado em seu formato característico e finalizado com uma camada de roomaal (um pão semelhante a um lenço), gergelim e sal. Depois, é assado em lastro por 20 minutos. “Só dá para assar de seis em seis”, conta Renata. 
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Bonomi – Kamut 

O Kamut é ideal para acompanhar saladas e sopas - Foto: Divulgação“O nome original da farinha é khorasan. Veio do Oriente Médio, mais especificamente da região que hoje é conhecida como Irã”, afirma a padeira Paula Bonomi. Acredita-se que o grão tenha sido cultivado pela primeira vez há mais de 5 mil anos, sendo considerado um dos mais antigos do mundo. “Aqui no Brasil, graças a persistência do engenheiro agrônomo Rogério Novais Teixeira, esse trigo foi desenvolvido no Cerrado”, completa Paula. O Kamut foi desenvolvido na Bonomi. Com a farinha de origem do Oriente Médio e que, por si só, já tem um sabor de nozes, foi colocado na receita o dukkah, uma mistura de especiarias e castanhas também comuns na mesma região. É ideal para acompanhar saladas e sopas. Também fica delicioso com um pouco de azeite, queijos e azeitonas. Está na vitrine sempre às quintas-feiras e pode ser vendido inteiro, metade ou um terço. 
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Du Pain – croissant

O grande charme do croissant é a massa folhada fermentada - Foto: DivulgaçãoSua história tem drama, intriga e até um pouco de espionagem (culinária, é claro)! Tudo começa no século XVII, em Viena, Áustria — e não na França, como muita gente pensa. Os austríacos estavam em pé de guerra com os turcos otomanos, que tentavam invadir a cidade por túneis secretos. Só que não contavam com os padeiros vienenses, que, trabalhando nas madrugadas, ouviram o barulho da escavação. Resultado: alerta geral, ataque evitado e a cidade salva por fornadas. Para comemorar o feito, os padeiros criaram um pão em forma de meia-lua — símbolo do Império Otomano — como uma forma nada sutil de "comer o inimigo no café da manhã". Nascia assim o precursor do croissant, chamado kipferl. Só aí entra a França. Diz a lenda que Marie Antoinette, austríaca de nascimento e rainha francesa pelo casamento, levou o tal pãozinho para Paris. Os franceses deram uma sofisticada na receita, colocaram muita manteiga, laminaram a massa como se fosse seda, e voilà: nascia o croissant francês como hoje conhecemos. “Hoje em dia ele é praticamente um embaixador da França”, empolga-se Ronaldo Souza, sócio e padeiro da Du Pain, conhecida por fazer os melhores de BH. O grande charme do croissant é a massa folhada fermentada: camadas e mais camadas intercaladas com manteiga (muita!), que garante uma explosão de leveza e crocância quando assadas. “Por fora, crocante, quase quebradiço como um papel. Por dentro, etéreo, cheio de bolsões de ar que parece ser feito de nuvem”, descreve Ronaldo. Por dia, são preparados nas três unidades, mais de 500 unidades, entre o tradicional e os recheados. 
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Verdemar – Pão delícia 

O Pão delícia nasceu na Bahia - Foto: DivulgaçãoEsse é brasileiríssimo, nascido na Bahia. A autoproclamada mãe da receita já perdeu as contas de há quantos anos ela foi criada. Elíbia Portela, de 75 anos, diz acreditar que a primeira vez que fez o tal pãozinho era ainda uma menina com pouco mais de 9 anos. “Nasceu por acaso, na verdade, de uma falha”, diz. Sempre metida na cozinha de sua mãe, Jozília, uma das quituteiras mais famosas de Jacobina, interior da Bahia, Elíbia pegou uma massa descartada por falta de farinha de trigo – artigo de luxo na época na vendinha da cidade – e resolveu usá-la mesmo assim. Muito mole e impossível de ser modelada a mão, usou duas colheres para distribuir as porções pela assadeira. Levou então os pães fermentados para o forno a lenha. A primeira e a segunda leva queimaram.  Com medo de perder todo o preparo, resolveu deixar os últimos apenas na boca do forno. Deu certo, mas eles ficaram feios. “Tasquei um tanto generoso de manteiga por cima e ralei o queijo na tentativa de camuflar os defeitos”, relembra. No dia seguinte, quando a clientela da mãe chegou para pegar suas encomendas, um a um foi experimentando os tais pãezinhos. E foi um tal de “que delícia, que delícia”. E assim, quase que naturalmente, a receita foi batizada. O Delícia é diferente de todos os outros pães. Doce e salgado, leve e untuoso, delicado e potente. No Verdemar, eles seguem a receita original. “O pão delícia é um espetáculo de contrastes que se harmonizam perfeitamente. É perfeito para qualquer hora do dia”, diz Paula Dias, gerente industrial da rede. 
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Boníssima – Coffee Saveur

O Coffee Saveur aparece no balcão sempre às sextas, sábados e domingos na Boníssima - Foto: DivulgaçãoCafé solúvel, chocolate belga em gotas e uísque. Além disso, o Caffee Saveur é feito com farinha integral de centeio, farinha de cevada e grãos selecionados. “É um sabor único, uma mistura de agridoce. Ideal para comer no café da manhã, mas também acompanhado de um bom vinho”, diz Luiza Carneiro, sócia da Boníssima. Para deixar tudo ainda melhor, é coberto por uma calda de laranja, com cardamomo e anis estrelado. Aparece no balcão sempre às sextas, sábados e domingos. 
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Saveur em francês significa sabor. “Aprendemos essa receita com um padeiro francês”, diz Luiza. É uma versão do Gran Saveur, uma mistura usada na baguete francesa que consiste em centeio e cevada, resultando em uma coloração mate. 
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Narjes - Pão árabe ou pita

O sabor do pão árabe é neutro e levemente adocicado, com consistência macia - Foto: Pádua de CarvalhoA receita nasceu na região que hoje corresponde ao Egito e ao Oriente Médio por volta de 2500 antes de Cristo. É um dos alimentos mais antigos e versáteis do mundo. “Esse pão faz parte da nossa cultura, sempre tem alguém na família que faz”, diz Khaled Tomeh, ao lado da sócia Mary Ghattas, donos do Narjes Sabores, localizado no Mercado Central. Formado em tecnologia de alimentos, Khaled conseguiu desenvolver uma receita própria para a comercialização. “Fazer em casa é uma coisa, vender para o público é outra”, afirma. O pão deve ser assado em alta temperatura e ser bem fino. Quando a massa entra em contato com o calor, o vapor se forma rapidamente e divide o pão em duas camadas, criando o famoso “bolso” interno, que pode ser aberto e recheado. O sabor é neutro e levemente adocicado, com consistência macia. Pode ser usado de diversas formas, como sanduíche ou wraps, acompanhado de molhos e pastas. No Líbano, é o pão que acompanha praticamente todas as refeições; na Síria e na Jordânia, costuma ser menor e mais espesso; na Grécia, aparece sem o bolso, mais macio e serve de base para o gyro, espécie de sanduíche local. Na loja, os clientes encontram diariamente os pães em diversos tamanhos. 
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Zaika - Naan

O naan tem uma textura mais fofa e sabor ligeiramente azedo - Foto: DivulgaçãoDiferentemente de outros pães chatos, como chapati ou o roti, o naan é fermentado, o que lhe dá uma textura mais fofa e sabor ligeiramente azedo, cortesia do iogurte usado na massa. Acredita-se que sua origem remonte à antiga Pérsia, onde a palavra naan significava pão. De lá, a receita viajou com comerciantes e conquistadores para a Índia, encontrando morada nas cozinhas reais do Império Mogol, entre os séculos XVI e XVIII. Com o tempo, o naan deixou de ser exclusividade das cortes e se espalhou pelas casas e ruas da Índia. Raramente é cortado com faca e sim, rasgado com as mãos, usado para pinçar curries, dals (ensopados de lentilha) ou carnes com molhos espessos, como o famoso butter chicken. É ao mesmo tempo talher e acompanhamento, símbolo de partilha. Tradicionalmente, é assado nas paredes do tandoor, forno de barro aquecido a altas temperaturas. O chef Daulat, do restaurante Zaika, no bairro Serra, conta que ele precisa de apenas dois minutos de forno para ficar pronto. No cardápio, aparece com hortelã (pudina naan), com alho (garlic naan), com manteiga clarificada (butter naan) e recheado com queijo (cheese naan). “Os pães são assados na hora e chegam quentinho na mesa do cliente”, afirma.  

Ancentral Padaria – Cinnamon Rolls

Antes de ser cinnamon roll, o rolinho de canela era conhecido como kanelbulle, na Suécia, onde foi criado - Foto: Cacau Mídia/DivulgaçãoServido quente, com a calda escorrendo entre as voltas da massa, poderia ser descrita como uma espiral dourada e cheirosa. Antes de ser cinnamon roll, o rolinho de canela era conhecido como kanelbulle, na Suécia, onde foi criado. Já nos Estados Unidos, o doce ganhou nova identidade. Imigrantes escandinavos levaram a receita para o continente americano por volta do início do século XX, sendo adaptada ao paladar local: mais doce, com a massa mais fofa e coberturas generosas de glacê de açúcar. “Costumo dizer que tem gosto de aconchego. O aroma de canela me remete à infância, quando ficava atrás da minha mãe espiando as delícias que ela fazia na cozinha”, conta Luiza Oliveira Mendes da Fonseca, sócia da Ancestral Padaria. Ali, ele é preparado em uma versão vegana. “Foi um desafio não usar nenhum ingrediente de origem animal e ao mesmo tempo, não perder as características originais do pão”, explica. O cinnamon roll aparece na vitrine de terça a sábado. O cliente ainda tem a possibilidade de comê-lo com cobertura de cream cheese tradicional ou vegano. 
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BH Bakery – focaccia de zaatar 

O zaatar é crocante por fora e macio por dentro - Foto: DivulgaçãoÉ um dos pães mais emblemáticos da Itália. Crocante por fora e macia por dentro, é servida em padarias, mercados e restaurantes do norte ao sul do país. O nome vem do latim focus, que significa fogo, uma referência direta ao forno onde o pão era assado. Sua origem remonta à Roma Antiga, onde os romanos preparavam uma massa simples de farinha, água e sal, cozida diretamente sobre pedras quentes ou nas cinzas do fogo. Com o tempo, a receita chegou à região da Ligúria, no noroeste, onde nasceu a clássica focaccia genovese. É dali que vem o estilo mais conhecido, com massa alta, macia e regada com azeite de oliva, sal e, às vezes, alecrim. “Aqui adaptamos essa base clássica com fermentação natural e incorporamos o zaatar, um tempero tradicional na comida árabe”, explica o padeiro Thiago Pitangui, da BH Bakery, localizada no Carmo. Além da sua base de tomilho, ele é composto por sumac, semente de gergelim torrado e sal. O que torna a receita especial é o contraste entre a textura aerada da massa com o sabor marcante do zaatar. Normalmente, aparece no cardápio aos finais de semanas. É bom ficar de olho na fornada do dia, que é postada no @instabhbakery. 

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