Revista Encontro

PANDEMIA

Infectologista fala sobre importância da vacinação de Covid-19 em crianças

Carlos Starling diz que quem não imuniza os filhos os está expondo à própria sorte

Marina Dias
- Foto: Geraldo Goulart/Encontro
O infectologista e epidemiologista Carlos Starling compartilhou, em seu artigo mais recente no Estado de Minas, onde é colunista, uma memória de infância triste, mas comum para quem viveu em cidades menores há cerca de cinco décadas - ou mais. Cortejos fúnebres eram, com certa frequência, relativos a mortes de crianças. Por isso, não era incomum se ver nas ruas pessoas a caminho do cemitério, enfileiradas atrás de caixões pequenos - e, na memória de Starling, em Ibiá (MG), brancos. Ele diz no texto: “com o tempo, esses enterros foram reduzindo-se a ponto de se tornarem raros. Na época, eu não era capaz de correlacionar a redução dos cortejos de caixões brancos com as campanhas de vacinação que ocorriam no Grupo Escolar Dom José Gaspar, onde eu estudava.”

O apelo do especialista, que é membro do Comitê de Enfrentamento à Covid-19 da Prefeitura de Belo Horizonte, é para que pais vacinem seus filhos contra a Covid-19. Segundo ele, a doença pode ser grave também nos pequenos, ainda que com menor frequência do que nos adultos. A vacina, diz, diminui a chance de desenvolvimento de quadro grave e também a transmissibilidade para outras pessoas da comunidade. Por isso, deixar de imunizar as crianças e apostar que serão assintomáticas ou terão sintomas leves não é boa estratégia.
Encontro conversou com Starling sobre vacinação, adiamento das aulas dos pequenos, e outros assuntos. Confira:

Pode falar sobre essa memória que descreve no artigo? É algo que te acompanhou ao longo dos anos?

É uma memória de infância extremamente forte, e trabalhei muitos anos com doenças infecciosas em pediatria e convivi com o sofrimento de crianças, pais e mães no Hospital da Baleia, onde trabalho até hoje. Criança doente é algo que dói demais nos pais e também em nós, como médicos. É algo que nos comove sempre. Essas memórias, é, claro são importantes.

Pode-se afirmar que a redução significativa da mortalidade infantil no país se deve às vacinas?

A única coisa comparável com a vacina em termos de redução de mortalidade infantil é o saneamento básico. É a única coisa. Foram elas as responsáveis pelo controle do sarampo, catapora, caxumba, meningite, das diarreias por rotavírus. É muito importante percebermos que antes da existência das vacinas, essas doenças provocam surtos graves e matavam centenas e milhares de crianças, particularmente o sarampo. Foi com a vacina que conseguimos encontrá-las. Algumas delas, como a paralisia infantil, estamos caminhando para sua erradicação - assim como varíola foi erradicada. Quando se compara com meningite, diarreia por rotavirus, percebemos que a Covid matou, durante a pandemia, muito mais do que todas essas doenças infecciosas preveníveis por vacina juntas. A infecção por Covid é muito preocupante.

Muito se falava que as crianças, além de adoecerem menos, pegavam menos Covid-19. Não é o caso?

No princípio achava-se que estavam protegidas, mas não estão.
Elas adoecem. Temos mais de 3 mil mortes de crianças no Brasil. Isso com estatísticas extremamente precárias, porque a testagem sempre foi falha, particularmente em crianças. Os primeiros trabalhos mostravam que elas tinham formas muito brandas, e de fato têm. Um dos principais fatores de risco para a Covid-19 é a idade. Mas achava-se que crianças tinham imunidade natural ou latente muito contundente e, com o passar do tempo, fomos vendo que não, que elas se infectam e morrem de Covid-19. Cerca de 60% delas têm alguma comorbidade, alguma doença associada, mas isso significa que 40% não têm. E podem desenvolver quadros como a Síndrome Inflamatória Multissistêmica, que é muito grave, além de covid longa, um quadro clínico prolongado em que vão demorar 1 a 2 meses para se recuperarem completamente das consequências da infecção. Podem desenvolver formas graves de miocardite, sendo que, com a vacina, os casos relatados são de uma forma benigna e que ocorre em percentual muito pequeno, ao contrário dos casos em decorrência da doença. Além disso, uma vez que a população acima dos 12 está vacinada, os mais expostos ao vírus vão ser as crianças.

O que diria a quem não quer vacinar o filho porque acha que em crianças a doença vai ser leve?

Diria que essa pessoa está expondo seu filho à própria sorte.
É uma aposta perigosa, e que não é compatível com o conhecimento científico atual. Não é uma conduta segura e prejudica toda a comunidade. Não só apenas seu filho que será impactado (e corre o risco de ter formas mais graves da doença), mas todos, pois quanto maior o número de não vacinados, mais o vírus vai circular e mais a pandemia vai permanecer. Sabemos que os vírus desafiam não só a vacina, como quem já teve a própria doença. Sabe-se que quem teve Covid-19 não fica protegido por longo período, o vírus não confere imunidade permanente.

E a quem não quer vacinar porque acha que as vacinas são experimentais, tiveram pouco tempo de teste?

Essas pessoas são absolutamente desinformadas. A tecnologia de mRNA está em pesquisa há mais de 20 anos e a plataforma da Coronavac, que é o vírus inativado, já se usa em várias outras vacinas há pelo menos 40 anos. Que vacina experimental é essa? Elas já foram aprovadas em definitivo. Não são experimentais. Há plataformas recentes de uso prático, mas já em pesquisa há mais de 20 anos. Ciência não se faz do dia para a noite.

O que mudou entre o período pré-pandemia e o momento atual em relação aos questionamentos de brasileiros quanto às vacinas?

Uma das coisas que mais contribuiu para isso foi a postura do atual governo. O ocupante do Planalto é sabidamente um negacionista e faz questão de que todo o seu governo também o seja, particularmente seus ministros - tanto que teve que demitir pelo menos três antes do atual ministro da saúde. Isso prejudica o país não só para o controle da Covid como para todas as doenças infecciosas. É um desserviço prestado ao país. E a cultura vacinal do Brasil foi responsável pelo controle de inúmeras doenças infectocontagiosas. Essa postura vai contra o conhecimento científico mundial e contra a cultura vacinal implantada a duras penas no país.

O adiamento das aulas das crianças de 5 a 11 ano em BH foi recomendação do Comitê?

Foi sim. As crianças de 5 a 11 anos devem receber as primeiras doses ao longo dos próximos dias e com uma dose nós já conseguimos minimizar muito formas graves da doença. O Ministério da Saúde atrasou mais uma vez a vacinação, assim como já tinha feito com os adultos. Nós já poderíamos estar com crianças recebendo a segunda dose, o que seria o ideal, pois a imunidade ocorre de forma compatível com os estudos de fase 3 cerca de 14 dias após a segunda dose. Isso não vamos ter tempo para fazer, mas a intenção foi que eles começassem as aulas com pelo menos uma dose. Assim, estamos dando uma chance para esses alunos irem para a escola e terem maior condição de responder ao vírus, caso se infectem, o que provavelmente vai acontecer.

Por que não foi adiada a entrada das crianças até 5 anos, que também não estão vacinadas?

Existem outras consequências do afastamento das crianças das escolas, de ordem psicológica, neurológica, que justificam o retorno delas às escolas. É importante frequentar as aulas, e como não existe perspectiva para elas neste momento, o risco benefício vale a pena. Mas para as que já têm chance de serem vacinadas, que estas retornem para as atividades presenciais pelo menos com uma dose. E há também outra questão: a estrutura pediátrica de assistência, não só em BH, mas no país, é extremamente frágil, principalmente a de atendimento de terapia intensiva pediátrica. Se tivermos um número muito grande adoecendo ao mesmo tempo, um percentual delas vai precisar de internação, de assistência e de terapia intensiva, da qual não dispomos. Se conseguimos estruturar para adultos de forma rápida, o mesmo não acontece com pediatria, pois, com o controle das doenças infecciosas e desenvolvimento da atenção básica, diminuiu muito o número de crianças que necessitam de atendimento, e leitos de pediatria foram diminuindo. Não conseguimos estruturar isso do dia para a noite, pois seria preciso formar intensivistas pediátricos, o que não é a mesma coisa de atender adultos. É para evitar uma catástrofe epidemiológica acometendo as crianças.

Qual é a recomendação para os pais de crianças que ainda podem se vacinar?

Temos recém-aprovados os autotestes. Recomendo que, assim que possível, as pessoas façam uso deles para tentar identificar as crianças que porventura estejam se infectando. E também que mantenham os cuidados de uso de máscaras, higiene de mãos, bem como que escolas mantenham os protocolos. 
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