
A montagem reúne as bailarinas Marcia Neves, Marise Dinis, Flavi Lopes e Gabriela Christófaro, sob orientação dramatúrgica de Rita Clemente. Em cena, cerca de 250 peças de roupa dialogam com os gestos das intérpretes, compondo uma narrativa que rememora a estilista que, após a morte do filho, Stuart Angel Jones, transformou a moda em instrumento de denúncia internacional contra as violências da ditadura civil-militar brasileira.
Para o grupo, revisitar a história de Zuzu é também reconhecer como essas violências ecoam no presente. “A história de Zuzu Angel não se restringe ao que nomeamos como passado, já que as violências e arbitrariedades que ela denunciou compõem a rotina de muitas mulheres, em diferentes tempos e contextos. Sabidamente, em nossa sociedade patriarcal, machista e misógina, mulheres enfrentam diferentes formas de violência, subalternização e opressão e buscam caminhos para subverter essa realidade. Como responsáveis por chefiar o lar, se deparam, muitas vezes sozinhas e em condições de desfavorecimento econômico, com um cotidiano de duros desafios”, diz a idealizadora Márcia Fabiano Neves.
A reflexão atravessa também o valor simbólico das práticas manuais, elemento central na estética de Zuzu e que, no espetáculo, ganha novas leituras. “Zuzu também nos instiga a pensar no que representam as práticas manuais, sejam elas o bordado, a costura, a tessitura, a customização e outras como procedimento feminino de subversão. Sua trajetória incita novas compreensões sobre o papel de salvaguardar a vida que, de várias maneiras, recai sobre diferentes mulheres e, em geral, está ligado a práticas de amorosidade, cuidado, invenção e cultivo de vínculos. Tantas se dispõem a colocar a própria segurança e integridade em risco, para enfrentar injustiças e hostilidades que ameaçam a elas e à sociedade como um todo. Dançar Zuzu Angel é, portanto, tecer uma história que se entrelaça também a outras histórias e costurar caminhos em direção à necessária transformação”, afirma Marise Dinis.
Espetáculo
Nascida em Curvelo (MG), em 1921, Zuleika Angel Jones percorreu Minas, Bahia e Rio de Janeiro até consolidar sua carreira nas décadas de 1960 e 1970. Em um mercado dominado por homens, construiu uma marca marcada por referências brasileiras e cores nacionais, apresentadas em passarelas de diversos países. A morte de Stuart Angel, preso e assassinado pela ditadura, transformou sua atuação: bordou pássaros enjaulados, tanques e símbolos de denúncia, levando sua luta para o cenário internacional. Apenas em 2025, quase 50 anos após sua própria morte, sua certidão de óbito foi retificada para reconhecer que ela morreu “violentamente causada pelo Estado brasileiro”.
A pesquisa do coletivo, iniciada em 2022, aprofundou a relação entre a vida da estilista e as histórias de mulheres que, no presente, seguem enfrentando opressões e apagamentos. Em “ZuZus”, a criação se volta para gestualidades que evocam ausência, resistência e as marcas da violência de Estado ainda presentes em diferentes contextos sociais. “Na peça, não situamos esses contextos de forma explícita por se tratar de uma ficção, mas queremos dividir com o público essa consciência de que estamos partindo de Zuzu e sua luta para falar de algo que continua a acontecer no Brasil”, destaca Marise.
Após meses de improvisações, o grupo convidou Rita Clemente para orientar a dramaturgia. “Orientar também é dirigir, mas quando eu dirijo, procuro criar mais do que orientar a criação”, diz ela. A chegada da diretora acrescentou novas camadas ao movimento em cena. “Estamos circunscritas na dança, no movimento, na gestualidade, nosso campo de pesquisa e atuação. E Rita é uma mulher de teatro, com larga experiência como atriz e diretora, o que nos traz novas inquietações e provocações, e nos proporciona a oportunidade de renovar nossos modos de pensar e fazer”, comenta Marise.
As cerca de 250 peças que ocupam o palco funcionam como extensão dessa narrativa. Elas remetem à obra de Zuzu, mas também às ausências provocadas pela violência política: roupas que sugerem vidas interrompidas, identidades apagadas, corpos ausentes. O figurino, assinado por Ananda Sette, combina referências da época — como calças boca de sino de veludo cotelê, blusas cacharrel e vestidos linha A — com peças que evocam trabalhadores metalúrgicos e mulheres empresárias que lutaram contra a ditadura. Os tons variam entre preto, branco, vermelho, verde exército, ferrugem e amarelo envelhecido, compondo um mosaico que remete à memória, à dor, ao encarceramento e ao apagamento.
“Essas escolhas têm como inspiração as linguagens do fazer manual que compõem o universo de Zuzu e referenciam a elaboração estética de seu protesto, apesar de se distinguirem da delicadeza usada pela estilista. A ideia é remeter à capacidade de refazimento de mulheres que sofreram e sofrem diferentes abusos e violências, incluindo o silenciamento de sua criatividade, para além do período da ditadura civil-militar no Brasil”, explica Ananda Sette.
A trilha sonora original, assinada por DJ Black Josie, completa a atmosfera da obra. A musicista, pesquisadora de soul music e suas reverberações na música brasileira, cria paisagens sonoras marcadas por releituras de músicas dos anos 1970 e referências a temas ligados à censura. “Temos releituras de músicas da década de 70, que nos remetem a esse período, ou menções a canções que falam sobre censura. Black Josie propõe distorções nas melodias e ritmos, construindo uma paisagem sonora consistente que dá suporte à narrativa do espetáculo”, contextualiza Marise.
“ZuZus”. 18 e 19/11, às 20h (sessão de terça com audiodescrição), Funarte MG – Galpão 4, Rua Januária, 68, Centro. Entrada gratuita, com retirada 1h antes na bilheteria. +Info.: @mul.