Estado de Minas SABOR TRADICIONAL

Vilã ou estrela? Por que a uva-passa ainda divide a ceia de Natal

Entre ódios e paixões, ingrediente virou símbolo das festas de fim de ano; professores de gastronomia explicam como paladar, cultura e memória moldam o debate


postado em 16/12/2025 06:58 / atualizado em 16/12/2025 07:09

Dezembro vem acompanhado de luzes, panetones, filas em shoppings e da já tradicional guerra declarada contra a uva-passa(foto: Freepik)
Dezembro vem acompanhado de luzes, panetones, filas em shoppings e da já tradicional guerra declarada contra a uva-passa (foto: Freepik)
Vilã ou estrela da ceia? Poucos ingredientes despertam debates tão apaixonados quanto a uva-passa no Natal. Basta ela aparecer no arroz, na farofa ou no salpicão para dividir opiniões e transformar a mesa em arena gastronômica. Amada por uns, rejeitada por outros, a pequena fruta adocicada segue firme como protagonista involuntária do cardápio natalino brasileiro e, ao que tudo indica, não pretende se aposentar tão cedo.

No Brasil, dezembro vem acompanhado de luzes, panetones, filas em shoppings e da já tradicional guerra declarada contra a uva-passa. Entre talheres erguidos em defesa e olhares de reprovação, o ingrediente continua marcando presença ano após ano, sustentando um debate que mistura paladar, memória afetiva e identidade cultural.

Para o chef e professor de Gastronomia do Centro Universitário UniBH, Sinval Espírito Santo, a explicação para essa resistência está diretamente ligada à formação do gosto do brasileiro, especialmente do mineiro. “Em culinárias como a mineira, pratos que misturam doçura e sal são exceção, não regra. Assim, quando elementos como passas, maçãs, damascos ou castanhas invadem preparos tradicionalmente cotidianos ao longo do ano, entre eles o arroz, farofa e a salada de batata, o choque cultural é inevitável”. 

Para o chef e professor de Gastronomia do Centro Universitário UniBH, Sinval Espírito Santo, a explicação para essa resistência à uva-passa está diretamente ligada à formação do gosto do brasileiro(foto: Daniel Chico/Divulgação)
Para o chef e professor de Gastronomia do Centro Universitário UniBH, Sinval Espírito Santo, a explicação para essa resistência à uva-passa está diretamente ligada à formação do gosto do brasileiro (foto: Daniel Chico/Divulgação)
Segundo o docente, o paladar não é construído de forma individual, mas social. Ele se forma a partir das referências familiares, dos hábitos domésticos e até de preconceitos culinários bastante comuns. Ainda segundo o professor, a construção do paladar é social, não individual. Memórias da casa, do modo de cozinhar da família e até preconceitos culinários como a crença de que “coentro é tempero exclusivo para o preparo de peixes” moldam a aceitação, ou não, da presença adocicada na comida de sal.  

Há também um componente regional. Em áreas com forte influência árabe ou sírio-libanesa, o uso de frutas secas em pratos salgados é mais naturalizado. Em outras mesas, porém, a uva-passa surge como uma visitante indesejada, aparecendo de surpresa no arroz ou brilhando em meio à maionese. Mesmo entre os críticos, o ingrediente já conquistou um lugar simbólico. “Eu não gosto da uva-passa no arroz ou no salpicão, mas acho que simbolicamente ela tem que estar ali. Representa o Natal. E, claro, existe ainda o aspecto estético-afetivo: alimentos considerados caros ou festivos reforçam a ideia de fartura e celebração do período. Pouco importa se alguém vai separar cada passa com o garfo”.

Se a presença da fruta é quase inevitável, há caminhos para torná-la menos polêmica. A professora de Gastronomia do UniBH e produtora gastronômica Carol Haddad defende que o segredo está no equilíbrio de sabores. “Combinar a passa com ingredientes intensos, como queijos maturados, bacon, presunto cru ou caldos concentrados é uma boa estratégia. O sal quebra o doce e cria harmonia”.

Outra técnica apontada pela especialista é o uso da acidez para suavizar o dulçor. “Deixar as passas de molho em vinho branco, rum ou água quente para torná-las macias e aromáticas também melhora tanto textura quanto sabor”. Já ingredientes como limão, vinagre de vinho ou raspas de laranja ajudam a trazer frescor e leveza aos pratos.

Por outro lado, alguns erros ajudam a alimentar a fama negativa da fruta. O principal deles é o exagero. “Usar quantidade desproporcional ou concentrá-las em um só ponto do prato aumenta a rejeição”, afirma a professora. Combinar passas com preparos que já são naturalmente doces também costuma resultar em um sabor excessivo, até mesmo para quem aprecia o ingrediente.

Para evitar conflitos à mesa, Carol sugere soluções diplomáticas. Uma delas é servir as passas à parte, em forma de molho ou chutney, permitindo que cada convidado decida se quer — ou não — incorporá-las ao prato. Outra alternativa é utilizá-las de forma discreta. “Picadas bem miúdas, incorporadas à farofa ou ao recheio, elas agregam sabor sem chamar tanta atenção”. Garantir opções sem frutas secas também ajuda a manter a paz natalina. “No fim, a uva-passa talvez não seja vilã nem estrela, mas um espelho das tradições, preferências e memórias que moldam o paladar do brasileiro. Enquanto houver ceia, haverá debate. E talvez seja exatamente isso que faça da pequena fruta um ingrediente tão gigante na cultura do nosso Natal. E convenhamos: o 25 de dezembro sem essa polêmica não teria a menor graça”, finaliza a docente.

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