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Estado de Minas ENTREVISTA

Livro discute como a questão da roupa feminina é vista no dia a dia do trabalho

Consultora de estilo Thais Farage é autora da obra Mulher, Roupa, Trabalho: Como se Veste a Desigualdade de Gênero


postado em 16/11/2021 09:58

"Em geral, roupas femininas não começam a ser pensadas pelo conforto. Normalmente é como ser mais magra, mais alta, mais bonita, nunca como ser mais confortável" (foto: Instagram/Reprodução)
No seu dia a dia como consultora de moda e empresária do setor, a mineira de Leopoldina Thais Farage sempre recebeu as mais diferentes demandas e dúvidas sobre estilo e sobre como se vestir. Um tema específico, no entanto, começou a chamar sua atenção: roupa de trabalho. Em consultorias e cursos que já deu em várias cidades - ela mora em São Paulo há dez anos - mulheres de todas as partes do Brasil, das mais diferentes áreas de atuação, idades e origens, traziam questões que não tinham necessariamente relação com o que faziam, e sim com um eterno sentimento de inadequação. Às vezes, buscavam se vestir de modo a parecer mais "sêniores", às vezes, mais "modernas". Havia, ainda, a constante preocupação com "ser levada a sério", não ser assediada, e quais as roupas que poderiam fazer isso por elas. Mais interessada pelo tema, analisou ainda, na pós-graduação na USP, roupas de mulheres na política - sempre motivo de comentários das pessoas e de pautas de jornais, ao passo que as roupas escolhidas pelos homens raramente recebem alguma atenção. A respeito desse assunto, Thais e a advogada Mayra Cotta, especializada em gênero e doutoranda em teoria política, lançaram em outubro o livro Mulher, Roupa, Trabalho: Como se Veste a Desigualdade de Gênero, pela editora Paralela. Confira principais trechos da nossa conversa com ela:

1) Como surgiu a ideia do livro?

Atendendo clientes, percebia que todas tinham muita dificuldade com roupa de trabalho, então criei um workshop, chamado Estilo no Trabalho, e viajei o Brasil. Fiz muitas turmas, com mulheres de idades e profissões diferentes, e todas tinham a mesma questão, que eu passei a perceber que não era sobre a roupa. Fiz uma pós-graduação na USP, e esse era meu tema de estudo, analisando roupas de mulheres na política. Depois, vesti a (candidata à prefeitura de Porto Alegre) Manuela D'Ávila nas eleições do ano passado e então percebi mesmo que a questão era a desigualdade de gênero. Chamei a Mayra para escrever comigo, pois ela tinha o embasamento político para ajudar a justificar o que eu já sentia.

2) Quais as principais demandas de suas clientes quando o assunto era roupa de trabalho?

Primeiro era a questão de que nunca se tem a idade ideal: a mulher se sente muito nova (elas diziam "acham que sou estagiária"), depois, muito velha, ("acham que sou muito velha, que não sei usar tecnologia"). Então pediam para parecer sênior, depois para parecer jovem, moderna. Em seguida, percebi que tinha a questão do cuidado para não ser assediada. Há o medo de que a roupa justifique o assédio no trabalho. As mulheres colocam isso com questões como "ser levada a sério", "não achar que estou seduzindo", "não levar cantada".

3) E o que é "tradicional", o que vem à cabeça, quando se pensa em roupa de trabalho feminina?

São roupas quem fazem referência à roupa masculina de trabalho: camisa, blazer, cores neutras. Mas com uma pitada de feminino, porque terno completo também está ruim, tem que ter lembrança de que é mulher.

4) Pode falar um pouco sobre o terno e o que representa?

O terno surge com a burguesia, porque na aristocracia os homens se vestiam de um jeito pomposo, com salto, babados, cores. Quando vem a burguesia, eles precisam de uma roupa prática para trabalhar. Hoje, aqui no Brasil, a gente não acha a roupa prática, mas estamos falando da Europa daquela época, onde a roupa antes pesava 20 quilos e passa para um terno, um traje de três peças, uma roupa moderna. Foi pensada para os homens trabalharem, se movimentarem, vem junto com o nascimento das cidades. Lembrando que, nessa época, para as mulheres brancas da sociedade, o bonito era ficar em casa, não trabalhar era um valor social. E aí o terno virou símbolo de neutralidade, a gente não questiona. Na ONU, por exemplo, vemos até lideranças que não são ocidentais se rendendo ao terno para se fazerem ouvidos. Quando mulheres começaram a pensar em roupas para disputar poder no mercado de trabalho, ocupar lugares que homens ocupam, começaram a emular essa roupa, e aí surgiu o tailleur, que é o terno que se adequa às formas femininas.

Na foto, com a co-autora do livro, a advogada Mayra Cotta:
Na foto, com a co-autora do livro, a advogada Mayra Cotta: "Há o medo de que a roupa justifique o assédio no trabalho. As mulheres colocam isso com questões como 'ser levada a sério', 'não achar que estou seduzindo', 'não levar cantada'" (foto: Arquivo pessoal)
5) É um problema a mulher usar blazer, usar camisa?

Não, o problema não é o indivíduo, uma pessoa querer usar. A questão é a gente sempre achar que não está bem vestida, porque a gente não tem o terno. E a roupa é um aspecto que as pessoas se sentem confortáveis em apontar essa inadequação. A gente acha que roupa é futilidade, que é bobagem, então se sente muito à vontade para criticar. A gente diz no livro que, não existindo roupa que faça com que a gente ocupe esses espaços, que consiga equidade de gênero, será que não podemos usar mais o que a gente gosta?

6) Acha que não deveria existir dress code para o trabalho?

Acho difícil dizer se deveria existir, mas as regras de formalidade têm que levar em consideração as diferenças culturais, fisiológicas, de conforto. Uma regra baseada no conforto masculino não atende as mulheres; há problema de mobilidade, conforto, nem todo mundo pode ou quer usar maquiagem... É preciso estar aberto e disponível para as diferenças e isso se reflete na roupa.

7) Considerando que roupa é uma forma de comunicação, o que é interessante que a mulher considere ao escolher o que usa no trabalho?

É bom pensar nos códigos dela, como ela se sente forte, feliz, confortável, quais são os códigos que fazem com que se sinta ela mesma, em sua máxima potência, para entregar aquele trabalho. E acho que a gente deveria investir mais em roupa de trabalho do que em roupa de fim de semana, que são só dois dias, sendo que no geral a gente trabalha cinco dias na semana.

8) Existe diferença entre o que homens e mulheres buscam comunicar com a roupa de trabalho?

Acho que homem nem pensa nisso. Ele está preocupado em trabalhar e usa o terno ou camisa com calça jeans. Já a mulher pensa muito mais. Ela se questiona se está feminina o suficiente, se está adequada, se parece forte, se parece fraca...

9) Você fala muito em conforto. É uma demanda grande das mulheres dentro desse tema?

Em geral, roupas femininas não começam a ser pensadas pelo conforto. Normalmente é como ser mais magra, mais alta, mais bonita, nunca como ser mais confortável. Pensando em saltos, por exemplo, quantos são de fato confortáveis? Tem as roupas que apertam, o que tira mobilidade. Se no surgimento da burguesia a roupa de homem foi o terno, as roupas de mulheres eram tão cheias de camadas que, em um incêndio, a mulher morria queimada, porque não conseguia correr.

10) Vê mudanças positivas nos últimos tempos?

Acho que muito pouco, e isso fica claro quando vemos como o jornalismo trata mulheres na política, sendo que nunca falamos das roupas dos homens. O mais importante é começar a falar sobre esses temas e, quem sabe, nas eleições do ano que vem, a gente trate as mulheres com menos misoginia e não use a roupa como desculpa para outros preconceitos que a gente tem.

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