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Estado de Minas ENTREVISTA | HERVé BIRNIE-SCOTT

Ele faz o vinho do papa

O diretor de enologia do grupo Louis Vuitton Moët Hennessy fala sobre o mercado de vinhos no Brasil e no mundo, e sobre como a vinícola argentina que dirige conseguiu crescer, figurando entre as mais importantes da atualidade


postado em 04/09/2013 15:11

(foto: Paulo Márcio)
(foto: Paulo Márcio)

O Brasil ainda não é exemplo de consumo de vinhos no mundo. Ainda mais quando se observam os números. Enquanto o brasileiro consome ,em média, 1,9 litro de vinho por ano, nossos vizinhos estão bem à frente: na Argentina, a média anual é de 22 litros por habitante, assim como no Uruguai. No Chile, outro grande produtor, de bem menos: 16 litros. Em Portugal, onde o vinho é considerado alimento, o consumo em um ano chega a incríveis 50 litros por habitante. 

Só que esse quadro pode mudar. A expectativa do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) é de que o consumo da bebida, em nosso país, tenha crescimento de 30% até 2016 e em regiões como Sul e Sudeste o consumo chegue a 20 litros por ano, por habitante. O cenário otimista tem a ajuda, em grande parte, da variedade de rótulos disponíveis nas importadoras e em adegas de supermercados. Estes, aliás, segundo o Ibravin, correspondem a 70% das vendas da bebida no Brasil.

Para os especialistas, não basta mensurar o consumo de vinho, já que quantidade não é sinônimo de qualidade. Como explica Hervé Birnie-Scott, diretor de enologia do grupo Louis Vuitton Moët Hennessy (LVMH), o maior conglomerado de produtos de luxo do mundo, os brasileiros estão se tornando mais exigentes, buscando principalmente rótulos de qualidade. Para ele, isso tem uma explicação: o grande número de restaurantes de alta gastronomia no país, que funcionam como uma ponte entre a vinícola e o consumidor. “O restaurante é o primeiro lugar em que o cliente é educado e levado a conhecer melhor o mundo da enologia, por meio dos sommeliers”, diz. 

Em visita a BH para divulgar os rótulos das vinícolas Terrazas de los Andes e Cheval des Andes, que voltou a comandar em 2009, Scott explica a Encontro como descobriu, no terroir argentino, a possibilidade de criar um malbec que representa o padrão do grupo LVMH e, ao mesmo tempo, consegue conquistar o paladar do humilde e carismático papa Francisco. O enólogo francês é o responsável pelo sucesso dos vinhos produzidos na região de Mendoza, na Argentina, que foi o primeiro lugar fora da Europa a receber um produto com a chancela grand cru.


ENCONTRO – O que o sr. pode dizer sobre a produção de vinhos dos países do Novo Mundo, como Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e Brasil?

HERVÉ BIRNIE-SCOTT – A produção do Novo Mundo e a dos demais países, especialmente do Velho Mundo, equilibrou-se e se estabilizou. Isso se deu principalmente porque, na Europa e, em especial, na Espanha, França e Itália, muitas vinhas foram destruídas, devido à recente crise econômica. Ao mesmo tempo, nas demais regiões, aconteceu o inverso, com a expansão da área cultivada. Um país em especial desequilibra o mercado: a China. Hoje, ela possui mais de 500 mil hectares de vinhedos. A Argentina, por exemplo, tem 230 mil. E o consumo chinês cresce a cada ano, o que já coloca o país na quarta posição entre os maiores consumidores de vinho no mundo. Só que cerca de 75% desse consumo vêm da própria produção chinesa. O restante é importado e vem, em sua maioria, dos países europeus.

E com relação à qualidade dos vinhos do Novo Mundo?
 
Acho que esses países estão progredindo com relação ao padrão de qualidade. Ainda mais porque o consumidor exige que os vinhos evoluam. Minha ideia é que cheguemos a vender menos malbec e mais Argentina. Menos malbec e mais terroir. Ou seja, menos produtos genéricos e mais rótulos que exprimam a qualidade de nossa região. Isso se vê também nos Estados Unidos e na Austrália, por exemplo. Aliás, a produção australiana passou por um acontecimento interessante. Eles tentaram ganhar o mercado da uva chardonnay, produzindo a partir de grandes vinhedos mecanizados. Só que o resultado foi um vinho pobre. Como o consumidor não reconheceu nele um produto diferenciado, deixou de comprar, o que fez com que o preço baixasse. Além de desestabilizar as empresas por trás dessa produção, a reputação do país e do terroir também se queimou. Os outros países aprenderam com esse mau exemplo e perceberam que o certo não é produzir em quantidade e, sim, com qualidade.

No caso do Brasil, é aconselhável concentrar os esforços para manter a produção de espumantes de qualidade, já que eles estão bem à frente de nossos vinhos?

Acho que, com toda humildade, já que não conheço tão bem seu país, o produtor tem de fazer aquilo que corresponde a seu terroir. Deve ser honesto com o que consegue produzir em sua região, e não tentar imitar o que é feito em outros países. Na Argentina, por exemplo, em minha opinião, não se consegue produzir, em quantidade aceitável, grandes rótulos de pinot noir. E também temos dificuldade de produzir o melhor sauvignon blanc. Não se pode lutar contra essas variedades, gastando dinheiro e tempo, para ter um vinho que nunca será tão bom quanto o sauvignon blanc do Vale do Loire ou o pinot noir da Borgonha. O Brasil tem de produzir aquilo que mais se adapta a suas características. Provei espumantes do Sul do Brasil e achei muito bons. A própria Chandon produz nessa região e, como manda o grupo LVMH, deve seguir o padrão de qualidade. Hoje, o consumo de espumante jovem e frutado está em alta no mundo.

No Sul de Minas Gerais, uma vinícola está apostando na produção de vinhos a partir da uva syrah, que teve seu ciclo produtivo alterado para que a colheita fosse feita em nosso período de seca, de abril a setembro. O sr. tem alguma informação sobre isso? Acha que pode resultar em produto de qualidade?

É possível fazer isso com a syrah. Lembro-me de ações como essa feitas em países tropicais, como na Índia, que tem o clima quente e úmido, e apenas dois períodos de seca no ano. A colheita da uva e a poda são feitas justamente nesses momentos. Não conheço as condições de plantio em Minas, mas minha experiência mostra que as variedades de uvas brancas costumam se adaptar mais facilmente a esse tipo de mudança. Os tintos são mais complicados e dificilmente se consegue um produto bom e com preço competitivo, se comparado a países que têm tradição no cultivo dessas variedades.

Podemos dizer que o mercado brasileiro mudou seu perfil de consumo, que até então era dominado por vinhos tradicionais, à base de cabernet sauvignon?

O paladar do consumidor de vinho brasileiro está evoluindo e se sofisticando. Hoje o país está buscando maior variedade de uvas viníferas e maior qualidade. Isso é o que chamamos de trading up, ou seja, a busca por produtos de luxo, o que, para mim, é muito natural. Acho que esse movimento se deve a dois fenômenos. O primeiro diz respeito ao intercâmbio de conhecimento, por meio de viagens e experimentações de outras variedades e categorias de vinhos, especialmente na Europa e Estados Unidos. O outro fenômeno está ligado à alta qualidade de muitos restaurantes do Brasil, que apresentam padrão internacional e convidam os clientes a provar novos rótulos.


Os restaurantes são, então, os principais difusores dos vinhos de qualidade?

Sem dúvida nenhuma, a procura por vinhos diferenciados, de todas as partes do mundo, é crescente no Brasil, bem como em outros países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Mesmo na Europa, o restaurante é o primeiro lugar em que o cliente é educado e levado a conhecer melhor o mundo da enologia, por meio dos sommeliers. Esses profissionais têm o dom de saber harmonizar os rótulos com os diferentes pratos. Outro ponto importante é a carta de vinhos, que é uma ferramenta fantástica para educar as pessoas. Com ela, é possível descobrir as variedades de uvas e suas mais diversas origens.

O sommelier acaba se tornando uma espécie de professor...

A escola de sommelier da Argentina, por exemplo, é excelente. São formados profissionais que gostam de estudar e viajar, ou seja, estão sempre se atualizando. A cada ano, recebemos na vinícola Terrazas muitos sommeliers brasileiros com ímpeto pelos estudos e com bom paladar, degustação e referência internacional.

Como foi a criação da vinícola Terrazas, que tem seus vinhedos aos pés da cordilheira dos Andes?

Eu tive o privilégio de criar o programa de vinhos Terrazas há 22 anos, quando a vitivinicultura argentina iniciou sua grande transformação. Antes de 1990, o país produzia de forma tradicional, dedicado apenas ao mercado local. Além disso, os produtos eram do tipo verde, ou seja, sem o frescor, os aromas frutados e o corpo que se consegue hoje. O grupo LVMH já tinha a Bodega Chandon, na Argentina, produzindo o espumante líder da América Latina, e fui chamado para trabalhar com os vinhos. Não conhecia nada desse país, ainda mais porque não havia internet naquela época. Mas, quando cheguei aos pés dos Andes, descobri um terroir fantástico. 

O que a região tem de especial?

Em Mendoza, encontrei o que viria a ser nosso diferencial: a possibilidade de se plantar em diferentes níveis do platô argentino, associando cada altura a um tipo de uva. Na Europa, usamos a latitude como referência, ou seja, quanto mais para o norte, mais frio se tem. O mesmo vale para a região andina, só que, em vez da latitude, usamos a altitude. Quanto menor a altura, maior a acidez, o que demanda calor. A uva malbec, por exemplo,  adapta-se ao primeiro nível, a pouco mais de mil metros, que é o ponto mais quente. Em seguida temos a merlot, a chardonnay e, por último, a torrontés, que gosta de região muito fria. Fomos os primeiros do mundo a associar cada variedade da planta a um nível de altitude. Não foi à toa que escolhemos a palavra espanhola terrazas para dar nome à vinícola: ela diz respeito aos terraços formados no platô.

E como é o solo de Mendoza?

Na região predomina o solo gerado pela erosão fluvial da cordilheira dos Andes. O rio Mendoza, em seu percurso, deposita as partículas mais pesadas, como pedregulhos, nas altitudes mais elevadas, e vai seguindo até o mar, depositando ainda areia, limo e argila. Portanto, quanto mais alto, mais frio e pedregoso é o terreno. Esse é o cenário ideal para se conseguir produzir grandes vinhos tintos.
 
 
 
Como foi a elaboração do vinho Terrazas de los Andes, com a uva malbec, que é a preferida do papa Francisco? Ele, como conterrâneo da vinícola, deve ser um grande apreciador desse rótulo.

A história de como chegamos ao vinho malbec é única no mundo. Ele é o carro-chefe da Terrazas e um verdadeiro embaixador da produção vinífera argentina, tendo, como você disse, um consumidor de peso, que é o papa. Conseguimos criar um produto que se mostrou perfeito ao estilo moderno de consumo, ou seja, com coloração forte, aromas frutados e menos agressivo ao paladar. Os taninos não são duros como os do cabernet sauvignon, além de ser desprovido da rusticidade da uva syrah. Ele ainda tem a suavidade típica do merlot. Com o malbec provamos que, se você tem o melhor terroir, é possível ter também vinhos de exceção, de guarda. Isso é justamente o que o mundo queria. 

E com relação ao Cheval des Andes? Como se deu a joint venture com a vinícola francesa Chateau Cheval Blanc?

Essa união é resultado da qualidade que os vinhos Terrazas já tinham durante os anos 1990. Várias bodegas grand cru (espécie de selo de qualidade) da região francesa de Bordeaux se interessaram por nossa vinícola. Naquele período, a Chateau Cheval Blanc nos propôs a criação do primeiro grand cru do Novo Mundo. A escolha de nossa vinícola se deu porque éramos a grande sensação do mercado do vinho nessa época. Fui convidado a ir à Cheval Blanc apresentar nossos vinhos ao presidente da vinícola francesa, Pierre Lurton. Esse convite me deixou muito emocionado, já que existem apenas sete grand cru classe A no mundo, e a melhor é a que fui visitar. Era como se o próprio papa tivesse me convidado para encontrá-lo. Quando provou nossos produtos, Lurton aprovou todos e fez questão de viajar a Mendoza para conhecer o famoso terroir. Pouco depois de ele conhecer Mendoza, fechamos a criação da joint venture. 

É a primeira vez que o sr. visita o estado? Já provou os quitutes típicos de Minas?

Sim, é a primeira vez que venho a Belo Horizonte. Sempre me impressiona, no Brasil, o tamanho das cidades. A qualidade das pessoas aqui é bem especial, pois são mais abertas a novas experiências e sempre estão em busca de conhecimento. Como cheguei há pouco tempo, infelizmente, ainda não pude provar a famosa comida mineira.

O sr. chegou a provar a cachaça mineira?

Não só provei, como ela deixou de ser um produto de degustação, para me fazer bebê-la em excesso. Gosto muito da cachaça. Não sou especialista nessa bebida, mas pude entender a sua complexidade. São muitas variedades e a especificidade de cada região deve fazer com que o Brasil invista cada vez mais em sua produção e exportação.

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