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Estado de Minas ARTIGO

O caderno de caligrafia da era digital

"Hoje, o aprendizado é facilitado por centenas de softwares de digitação, alguns gratuitos. Treinei por algumas horas com um deles e observei progressos bem consideráveis"


postado em 07/05/2013 13:49

A caligrafia elegante era a marca da boa educação. Com grande sacrifício e indizível desprazer, fui obrigado a preencher dezenas de cadernos de caligrafia (devo confessar que os resultados visuais foram pífios, embora se saiba que a ação melhora a ortografia).

Passam-se os tempos e vão-se os cadernos de caligrafia, junto com o orgulho de tê-la formosa. Em contraste, até hoje os chineses não concebem um intelectual que seja deselegante na aparência dos seus escritos. Mas, desde o século XIX, a máquina de escrever rondava, bem como a invenção de um método para usar todos os dedos e não olhar o teclado. No Brasil, milhares de pessoas – incluindo este autor – batucaram nas máquinas das Escolas Remington, em busca de mais velocidade e menos erros (estes últimos, de correção penosa).

Mas eis que somos tomados de assalto pelos computadores e seus teclados. O que era assunto de secretárias entra na agenda do presidente da República e, também, do favelado que comprou um computador à prestação. Aflora o dilema: “catar milho” ou aprender metodicamente a usar os 10 dedos?

Havia preconceitos. Na década de 1980, vi um alto funcionário público argelino recusar-se a sentar-se à mesa do computador, durante um curso em que se simulavam custos de escolas profissionais. Segundo ele, tinha um funcionário para fazer isso. Dentre nós, há arautos denunciando tais aprendizados como “mecanicistas”. Nos Estados Unidos, todos os alunos aprendiam datilografia na escola. Mas houve um acidente de percurso: ao chegar à idade em que aprendiam a usar os 10 dedos – agora no computador –, já tinham muitos anos de “catar milho”, criando fortes resistências a começar tudo de novo. O resultado é claríssimo. Há uma incompetência generalizada no uso do teclado, a única interface de sucesso entre homem e máquina.

Quando minha filha tinha 11 anos, ofereci a ela um generoso prêmio financeiro, com a condição de usar os 10 dedos para digitar os arquivos de um livro. Após essa tarefa, tornou-se rapidíssima no teclado. Hoje, o aprendizado é facilitado por centenas de softwares de digitação, alguns gratuitos. Treinei por algumas horas com um deles e observei progressos bem consideráveis.

Inicialmente, passar da “catação de milho” para os 10 dedos sem olhar o teclado traz perda de velocidade. Difícil precisar, mas, após 10 a 30 horas, a velocidade aumenta, sem que façamos qualquer esforço deliberado. Cresce no piloto automático. Em contraste, quem “cata milho” avança bem mais lentamente, se é que avança. Já foi medido, o melhor “catador de milho” não atinge a velocidade de um medíocre datilógrafo de 10 dedos.

Para quem gosta de teorias, falemos de uma memória muscular. Há uma automaticidade cognitiva, pois paramos de tomar consciência do processo – como fazemos ao dirigir em condições de rotina. Nossa capacidade cognitiva é liberada para tarefas mais desafiadoras, como pensar no assunto que escrevemos. Para o “catador de milho”, isso é mecanicamente mais difícil, pois a mão paira no ar e precisa dos olhos para achar a tecla. O cérebro pendula entre duas tarefas – uma delas, menos nobre.

Há vantagens óbvias em dominar o método certo. Em primeiro lugar, escrevemos mais rápido (mais de 30 palavras por minuto, em contraste com 20, para os “catadores” usuais). Se o teclado dispensa a visão, olhamos a tela, vendo os resultados e corrigindo rapidamente os erros. Sobretudo, pensamos mais no que redigimos. Segundo a revista digital MIT Technological Review (15/8/11), “nosso cérebro fica livre para pensar nas ideias, sem ter de desperdiçar recursos mentais... Podemos escrever na velocidade do nosso pensamento”.

Valem  o esforço e a frustração inicial de ver a velocidade cair para a metade ou um terço da que se conseguia “catando milho”? Impossível quantificar a perda de produtividade dos “catadores de milho”, mas deve ser escandalosamente alta. Quem escreve muito terá grandes vantagens no investimento. É uma opção entre o presente e o futuro, entre o esforço de reaprender tudo e os ganhos de não olhar para o teclado, livres para pensar só no que escrevemos. Os cadernos de datilografia do passado viraram softwares. Embarcamos neles?

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