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Estado de Minas ENTREVISTA | JOSÉ BELIZÁRIO

"Pais não sabem organizar a família"

Psiquiatra infantil diz que pais devem mudar hábitos - entre eles, passar a dormir mais cedo - e estabelecer a rotina da casa caso queiram filhos mais tranquilos e com menor risco de problemas futuros


postado em 12/06/2015 09:52 / atualizado em 12/06/2015 10:03

Para o psiquiatra infantil José Belizário, a principal mudança deve ser feita na rotina da família, especialmente no horário em que as crianças vão para a cama(foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
Para o psiquiatra infantil José Belizário, a principal mudança deve ser feita na rotina da família, especialmente no horário em que as crianças vão para a cama (foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
Se criar filhos sempre foi difícil, o desafio ficou ainda pior na era da informação, dos aparelhos eletrônicos portáteis, do WhatsApp e de todas as novidades tecnológicas que surgem quase diariamente. Não é de estranhar o grande interesse que o assunto desperta nos pais e educadores. Prova disso são as mais de 1,3 mil pessoas que lotaram a paróquia Nossa Senhora Rainha na noite de uma segunda feira de abril para assistir à palestra do psiquiatra infantil José Belizário sobre como educar e impor limites aos filhos na atualidade.  A convite da pediatra Filomena Camilo do Vale – a dra. Filó –, que é palestrante regular da igreja, ele deu o recado: a base de muitos problemas está no hábito de dormir tarde. Há 30 anos, diz, o normal era dormir às 21h. No começo deste século, já tinha passado para as 23h. O resultado são crianças e adolescentes menos atentos à aula, mais sonolentos ao longo do dia, mais explosivos e ansiosos – fora possíveis consequências mais graves no longo prazo, como maiores índices de depressão entre jovens, doenças relacionadas ao sistema endócrino, entre outras. “Em nenhuma das 10 melhores cidades para se viver no mundo, as pessoas dormem tão tarde”, diz Belizário. Para o médico, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria, a chave é muito diálogo, mas também a organização da rotina da família toda, não apenas dos filhos.

ENCONTRO - O senhor disse que nosso padrão de sono se alterou muito nos últimos anos. Como isso aconteceu?
JOSÉ BELIZÁRIO - Ao longo dos últimos 30 anos, as emissoras de televisão mudaram o horário da família brasileira em três horas. Nós, que dormíamos rotineiramente em torno das 21h30, passamos a dormir, a cada década, uma hora mais tarde. No começo deste século, o horário familiar de sono tem sido em torno das 23h. As programações infantis vão até as 22h nos canais abertos, e nas TVs a cabo, até mais tarde. E a mídia infantil não é regulada, então as novelas mostram sempre crianças para atrair público infantil. Essa é uma estratégia que foi modificando os horários. Para completar, nos últimos anos, ainda apareceram computador, internet, e isso piorou a situação. Aparelhos eletrônicos como celular e tablet emitem uma faixa de onda azul que não enxergamos, mas que piora a qualidade do sono.

(foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
(foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
Então, a culpa é das emissoras de TV?

O horário de maior acesso, e o mais caro também, é aquele em que a família assiste junto à TV. Esse Ibope é medido em São Paulo, e a família paulista, por causa do trânsito absurdo, foi chegando em casa cada vez mais tarde. Isso foi sendo acompanhado, o que significou mudança gradativa desses horários para todos. Hoje, ele é muito tarde. As pessoas veem futebol às 22h. Isso não existe! Imagine o trabalhador sair do estádio à meia-noite, sendo que vai trabalhar às 6h do dia seguinte. Isso é absurdo.

Então dormir mais tarde é uma tendência no Brasil, mais do que em outros países?
Exatamente. Isso é mais grave aqui. As crianças inglesas, por exemplo, dormem bem mais cedo, por volta das 19h30. Minha sobrinha de 7 anos, que morava em Londres até o ano passado, perguntou para as amiguinhas, a meu pedido, sobre o horário de dormir tanto das inglesas quanto das brasileiras. Os horários das inglesas são entre 19h e 20h. Já as brasileiras dormem entre 22h e 22h30. A diferença é grande! Brasileiros, quando vão para Viena (Áustria), por exemplo, e saem à noite, acham que é horrível, pois não tem nenhuma bagunça. Mas é que os vienenses, mesmo tendo computador, internet, tudo de melhor, dormem cedo. Eu brinco que nas 10 melhores cidades do mundo para se viver as pessoas dormem cedo, no máximo às 22h. Quem teve essa ação forte foi o Brasil e a China, que tiveram capitalismo tardio. E o governo não protege as crianças ou pessoas no geral desta tendência, porque acham que é normal. Mas não é. E, como se trata de um fenômeno ocorrido pouco a pouco, ninguém percebeu. Muitas pessoas, após a palestra, questionaram: “Mas minha mãe sempre dormiu nesse nosso horário e nunca teve problema”. Mas pergunte à avó: ela não dormia.

Por que dormir cedo é importante?
O hormônio que faz você ter melhor qualidade de sono é a melatonina, que é inibida pela luz dos aparelhos eletrônicos. Assim, não se tem o sono mais profundo (o de ondas lentas, que é o estágio 4 do sono), que é quando o cérebro se recompõe. Outro ponto importante é que o corpo demora três horas para chegar ao sono mais profundo, e o hormônio do crescimento, por exemplo, tem seu pico à meia-noite e meia, independentemente da hora em que se foi dormir. Se você foi dormir às 23h, não pega esse pico, porque ele precisa coincidir com o sono profundo. E esse hormônio, aliás, é essencial para todo ser humano, não apenas para crianças e adolescentes. Em relação à depressão, por exemplo: o hormônio do crescimento chega à célula do cérebro que faz a seratonina (que protege da depressão) e faz crescer a proteína dela, o que significa mais seratonina no dia seguinte. Então, sempre que se dorme mais tarde, estocam-se menos substâncias do seu cérebro para o dia seguinte. O dia seguinte é pior. A pessoa comete mais erros por falta de dopamina, tem mais chance de se deprimir por falta de seratonina, etc.

Então o horário é tão importante quanto a quantidade de sono?
O número de horas de sono depende de cada pessoa. Há quem precise de dez, oito ou seis. O importante é que o tempo de sono esteja incluído entre 21h e 3h. O horário é muito importante. Para crianças que estão na escola, então, é fundamental. Afeta o desempenho escolar e a perda é enorme. Há um estudo inglês, chamado A extensão do sono e a performance do adolescente com redução crônica do sono, de 2013, que mostra perdas nítidas em matemática e em inglês nos alunos que não têm regularidade para dormir.

Quais são as consequências, em crianças e adolescentes, dessa falta de regularidade no sono?
Dificuldades atencionais, como não conseguir prestar atenção na aula, dormir em sala, dificuldade de se manter alerta. Percebe-se também que o índice de depressão em idades muito precoces tem aumentado. Não posso afirmar categoricamente, mas temos também encontrado mais distúrbios endocrinológicos na infância, hipotireoidismo, diabetes.

'As crianças inglesas, por exemplo, dormem bem mais cedo, por volta das 19h30'(foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
'As crianças inglesas, por exemplo, dormem bem mais cedo, por volta das 19h30' (foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
Adolescentes têm ficado mais agressivos, ansiosos?
A adolescência é uma grande confusão. O que regula isso são alguns hormônios produzidos durante o sono, que são a adrenalina, seratonina e dopamina. Meninos que não dormem nesse horário não têm quantidade suficiente dessas substâncias para regular o comportamento. E um rapaz de 16 anos deprimido, por exemplo, não vai ficar chorando na cama, vai ficar impulsivo, explosivo. Uma menina de 13 anos que dorme tarde, no auge da menarca, também vai ficar mais explosiva. Até porque adolescentes brasileiros fazem pouca atividade física na escola.

A atividade física tem papel importante nisso?
É essencial para o desenvolvimento, tanto quanto o sono. Aprendizados corporais persistem mais. Eles organizam o corpo e as relações sociais, e isso é básico na infância e adolescência. Adolescente que não pratica atividade física será uma bomba-relógio. Ele tem mais hormônios e precisa regular isso, e a atividade física é uma forma natural de fazê-lo. No entanto, temos escolas famosas de BH onde ninguém faz atividade física. Eu brinco que os alemães dormem cedo, fazem atividade na escola, têm aula só pela manhã e ganharam de 7 a 1 do Brasil na Copa do Mundo. Quando a gente era assim, a gente ganhava. Depois começamos só a perder.  [Risos]

Como a chegada dos aparelhos eletrônicos influenciou nisso?
A primeira chegada trágica foi a da internet discada, que era mais rápida de madrugada. Os adolescentes passavam a madrugada jogando por causa disso. A segunda foram os celulares e tablets com WhatsApp, Facebook, que também agravaram muito, pois as pessoas ficam esperando os outros responderem, olhando Instagram, independentemente do horário. E o pior emissor dessa luz azul que atrapalha o sono são esses aparelhos, que sempre usamos muito perto dos olhos.

E crianças estão usando esses aparelhos cada vez mais novas...
Acho que elas têm de usar, não há como evitar. Mas cabe à família organizar o uso. Celulares e tablets, por exemplo, têm de ser desligados, no caso de crianças mais jovens, em torno das 20h. Aí é a hora de a família conversar, ler, fazer outras atividades.

Como os pais podem dosar o uso de tecnologia pelos filhos?
Depende de faixa etária, mas existe um indicador muito claro. Se a criança está jogando de forma que a impeça de ter atividades pessoais ou que fique muito irritada durante o jogo, é sinal de que está demais. Algumas crianças vão apresentar essa irritabilidade depois de quatro horas, outras, depois de duas horas, outras, meia hora. Depende do jogo, depende da criança. O problema está nas atividades que viciam, que a pessoa não consegue parar. A violência – que é uma questão para muitos pais quanto aos games, por exemplo – não está no gráfico. Está no tempo de jogo e na compulsão de jogar. Tecnologias são fundamentais. O problema não está nelas, está em como administrá-las.

'A adolescência é uma grande confusão'(foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
'A adolescência é uma grande confusão' (foto: Gláucia Rodrigues/Encontro)
De que forma se deve criar nos filhos o hábito de dormir cedo?
A chave é fazer uma abordagem positiva. A primeira coisa é não proibir. Mas pode-se, por exemplo, desligar o wifi da casa às 21h. E oferecer outras estratégias para esse período. Jantar e não ir automaticamente para o computador ou tablet, e sim ir se preparando para dormir. Oferecer a leitura ou outras atividades mais confortáveis que ajudem a relaxar durante a noite. É também importante que eles pratiquem exercícios durante o dia. Outro grande problema é que a maioria das crianças que ficam acordadas até tarde tem pais que também ficam acordados. É preciso ajustar o horário de toda a família. O importante é dar valor para isso, senão fica parecendo que as crianças estão saindo no prejuízo: fica todo mundo feliz, acordado, enquanto elas estão “perdendo”. É não é isso.

Como disciplinar e regrar os horários da criança?
Disciplinar não é uma palavra boa. Organização é que é fundamental, crianças precisam de organização.

Acredita que os pais estão com dificuldade de organizar a rotina nos dias de hoje?
Muita. Pais têm dificuldade até para enfrentar a própria demanda de consumo. Eles querem consumir também, então acabam saindo da regularidade. Em vez de ir para casa na hora do jantar, vão para o McDonalds, que é um programa que já dá uma excitada. A diversidade de coisas que são ofertadas hoje, tanto para crianças quanto para adultos, é muito maior. Então as pessoas têm dificuldade de selecionar o que é importante e o que não é. E elas sempre acham que a rotina não é importante, justamente porque é rotina, sempre igual. Mas, para crianças, é fundamental.

Por que a rotina é tão importante na infância?
A regularidade faz o organismo da criança se adaptar melhor ao mundo e, quando aparecer uma situação adversa, ela vai conseguir superar melhor. É o contrário do que as pessoas pensam. Quando a pessoa fica exposta a uma coisa que não tem sequência, ela se estressa muito mais. E quando surge realmente um problema, ela não tem a organização para lidar com isso. Quando já está organizada, suporta melhor situações diferentes. Rotina dá muito mais segurança.

Mesmo que a rotina envolva atividades excessivas, como aulas de idioma, esportes, música, etc.?
Uma criança foi feita para brincar e correr. Na sala de aula, ela não faz isso. Então, às vezes, tem de fazer futebol, uma atividade física extra, música. Isso não é o problema. Mas é importante fazer com que tudo seja bem organizado e que ela tenha tempo para descansar – e, o que também é essencial, que não tenha de fazer dever de casa depois das 20h, pois, nesse horário, fazê-lo não será produtivo para a criança ou para a família.

Hoje é mais difícil criar um filho do que antigamente?
Frente a todas as disponibilidades de consumo existentes hoje, é difícil resistir a elas para investir realmente nos filhos. Isso é uma questão importante.

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