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Estado de Minas

Psiquiatra fala sobre como a neurociência pode ajudar na educação

Ele diz que os avanços da área são capazes de impactar a forma como pais e escolas lidam com o desenvolvimento e o aprendizado


postado em 09/08/2018 14:53 / atualizado em 09/08/2018 16:00

"Pessoas que tiveram melhor acolhimento emocional na infância são menos propícias a ter algumas características de ansiedade e depressão quando mais velhas" (foto: Ronaldo Dolabella/Encontro)
Os estudos do cérebro se desenvolveram exponencialmente nas últimas décadas. O avanço das tecnologias permitiu acessar mais profundamente esse órgão tão complexo, e saber mais sobre como ele funciona tem impactado diversos campos do conhecimento. Por isso, a neurociência está em alta e tem se aliado, de forma transdisciplinar, às mais diferentes áreas de estudo e de atuação. Uma delas está especialmente badalada: a chamada "neuroeducação". Para o psiquiatra Alexandre Hatem, membro da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil, que foi colaborador do projeto NeuroEduca, da UFMG, por 15 anos, a neurociência tem tido papel importante tanto para validar muitas das teorias pedagógicas que já eram aplicadas quanto para trazer novos olhares para o desenvolvimento e o aprendizado, inclusive tirando estigmas de alunos com determinadas dificuldades na hora de aprender. No entanto, diz que é preciso estar atento para o fato de que informações descontextualizadas e muitas vezes até sem validação científica correm a internet e geram equívocos por parte de pais e escolas. Um dos frenesis mais recentes é a necessidade de muitos estímulos em crianças bem pequenas, no intuito de não as deixar perder as "janelas de aprendizado". "Não é preciso ficar tão tenso correndo atrás desses períodos. Isso virou uma ditadura. Os pais colocam os filhos em um monte de atividades, e o mais importante eles se esquecem de oferecer: tempo junto para brincar", diz.

1) ENCONTRO - Por que os estudos do cérebro evoluíram tanto nas últimas décadas?
Alexandre Hatem - O período de 1990 a 2000 é chamado de década do cérebro. Foi investido muito dinheiro para desenvolver pesquisas ligadas à neurociência. Além disso, as tecnologias tiveram um crescimento exponencial nos últimos 20 anos, o que também contribuiu para várias novas descobertas nessa área. Isso porque o cérebro é um órgão muito difícil de decifrar, é o órgão que menos se conhecia até o final do século passado. Um dos pontos importantes da evolução das descobertas é que antes não se sabia como os neurônios se conectavam. Eles já sabiam pelo que as áreas do cérebro eram responsáveis, mas isso não é tão relevante, até porque algumas atividades requerem ativação de mais de uma área. Então foi muito importante descobrir e ver - como hoje já é possível - as ligações que são feitas.

2) Por que esses avanços foram importantes na educação?
Por muitos motivos. Um exemplo é que se conseguiu perceber que algumas pessoas têm déficits em funções específicas. Antigamente, estudantes eram categorizados entre os que tinham facilidade, os que estavam no meio (a grande maioria) e os que tinham deficiência. Havia a escola e a escola especial, na qual estavam algumas crianças sem nenhum motivo para estar lá, pois nem tinham de fato uma deficiência no aprendizado. Ainda que atualmente as escolas já sejam inclusivas, esses esclarecimentos científicos foram úteis para descobrir qual característica específica faz com que determinada criança tenha alguma dificuldade em aprender. Isso permite justamente que ela possa ser mais bem incluída.

3) Foi positivo para os professores?  
Sim, mas o professor ainda sabe pouco das diversidades. Ele tem de incluir os alunos (autistas, hiperativos, que tenham dificuldades para ler, etc.), porém as faculdades de pedagogia ainda não formam para essas diversidades. Não há tantas disciplinas para aprender sobre o cérebro, o desenvolvimento normal e o patológico, etc. Por outro lado, vejo que há interesse quanto a isso. Aliás, a disseminação dessas informações trouxe um outro efeito, que é a patologização do comportamento, uma neurose das doenças infantis. Em congressos de educação, os assuntos são "mesa de autismo", "mesa de TDAH", "mesa de dislexia", "mesa de discalculia". É um problema, mas vejo da seguinte forma: o básico do desenvolvimento normal é ensinado nas escolas de pedagogia, então os profissionais estão indo atrás do que faltou em sua formação.

4) E o que mudou, com a neurociência, em termos de conhecimento das etapas de desenvolvimento da criança?
Como a tecnologia melhorou, conseguiram estudar mais as crianças, inclusive mensurar quanto uma criança aprende em cada etapa. Antes disso, as teorias, como a de Piaget, eram observacionais. Com os testes mais aprimorados, consegue-se ver melhor como isso opera no cérebro. Assim, viu-se a importância de estimular, e aí veio o boom da estimulação. No início, falava-se em "janelas de oportunidade" e depois o termo mudou para "períodos críticos", porque janela dava uma ideia de que abre e fecha, sendo que essa oportunidade não se fecha. O que há são períodos mais importantes do desenvolvimento. De toda forma, hoje já se acha que há um exagero nesse ponto, que não é preciso ficar tão focado nisso. Existem períodos que são mais plásticos, mas é muito difícil categorizar como e quando todo mundo vai se desenvolver. Então não precisa ficar tão tenso correndo atrás desses períodos. Isso virou uma ditadura. Os pais colocam os filhos em um monte de atividades, e o mais importante se esquecem de oferecer: tempo para brincar com eles. Terceiriza-se muito esse tempo.

Em razão do nosso ensino conteudista, a forma de avaliar é muito teórica. Exigimos pouco, nas avaliações, que se pratique aquele conhecimento
Em razão do nosso ensino conteudista, a forma de avaliar é muito teórica. Exigimos pouco, nas avaliações, que se pratique aquele conhecimento" (foto: Ronaldo Dolabella/Encontro)
5) De que forma deve ser feito esse estímulo?
Estímulos são positivos, mas não se pode estruturar demais as regras, haver cobranças. Não faz mal para a criança pequena brincar de falar letras, falar as cores, ser estimulada em outras línguas. O problemático é cobrar dela uma estruturação. Então vemos muito, por conta dessa questão da plasticidade, dos períodos críticos, escolas infantis bilíngues. E ser estimulado em uma língua quando se é pequeno pode ser ótimo, inclusive, dá mais chance à criança de pronunciar os sons mais corretamente. Mas ainda não está bem estabelecido se devemos alfabetizar nas duas línguas. A estimulação é válida quando não é excessiva e se está dentro do desejo da criança.

6) Como se dá o aprendizado sob a perspectiva neurológica?
Essa questão é muito ampla, mas, simplificando, para o aprendizado ocorrer, você primeiro precisa estar motivado. Essa motivação pode ser positiva (porque você gosta demais de um assunto, o que se vê muito nas metodologias de aprendizado por brincadeiras, por jogos, por exemplo) ou negativa (se você não aprender, vai sofrer uma punição ou restrição, como perder as férias fazendo recuperação se não passar na matéria). Depois da motivação, é preciso foco. Sem foco, a criança não consegue seguir a brincadeira até o final, tem dificuldades em introjetar as regras, etc. Isso é necessário para formar a memória. Há quem diga que tem problema de memória, mas, na verdade, pode estar com problema de atenção ou de motivação.

7) As descobertas recentes da neurociência têm impactado a forma como as escolas ensinam?
Boa parte das teorias pedagógicas foi validada. Muitos estudos mostram que já se fazia certo, não há uma "nova pedagogia", uma "neuropedagogia". A neurociência não veio ensinar uma nova forma de fazer as coisas. A educação em si é uma das formas de estudar o desenvolvimento. Então o professor também é um neurocientista. Mas uma coisa que a escola poderia aprender é a fazer as coisas de forma mais empírica, mais experimental. Países que têm bons desempenhos em índices educacionais fazem testes, estudam as práticas pedagógicas com rigor científico. Por exemplo, fazem testes de metodologias. Dividem a turma, ensinam uma matéria de duas formas diferentes e comparam resultados. Nós temos muitas iniciativas interessantes no Brasil em termos educacionais, mas que se perdem porque não são replicáveis, porque há poucas iniciativas, isoladas, no sentido de avaliar e premiar bons projetos.

8) E em relação à avaliação nas escolas?

A forma como executamos as avaliações não é eficaz. Ainda avaliamos de forma muito pontual: você tem um conhecimento, é testado sobre ele e pronto. Também geralmente testamos de forma muito teórica. Isso porque o ensino no Brasil é muito "enciclopédico". É comum viajarmos para outros países e vermos que sabemos mais da história daquele país do que o próprio nativo. E as pessoas de lá podem não saber nada do Brasil. Mas a diferença é que, em lugares com ensinos menos conteudistas, é dada uma ferramenta para aquela pessoa e ela consegue desenvolvê-la melhor. Por exemplo, a capacidade empreendedora pode ser muito melhor do que a nossa. Em razão do nosso ensino conteudista, a forma de avaliar é muito teórica. Exigimos pouco, nas avaliações, que se pratique aquele conhecimento. E isso seria mais eficaz para o aprendizado e para a avaliação.

9) Como vê o movimento das últimas décadas de maior atenção pedagógica aos primeiros anos da educação infantil?
Quem pensa nas escolas infantis como espaços de entretenimento da criança enquanto os pais trabalham está ultrapassado. Mas também não se pode transformar o aprendizado infantil em aprendizado de meninos grandes, com dever de casa, por exemplo. Pois brincar também é aprendizado, traz aprendizados sociais importantíssimos. Então a educação deve ser valorizada na primeira infância, sim, da forma adequada. E tem uma vantagem enorme se investir nesse período, porque é uma fase muito plástica. Estudando neurociência, vemos que quando somos muito novinhos, a forma como gravamos as experiências é muito marcante, tanto para as boas quanto para as ruins. Então a formação emocional nesse período é forte. As escolas infantis mais modernas têm inclusive feito uma ênfase nessa educação emocional, para aprendermos a reconhecer as emoções, a lidar com as frustrações, angústia. Aprender a reconhecer os nossos próprios sentimentos é muito importante e nos favorece ao longo de toda a vida.

10) Quanto aos adolescentes, o que a neurociência trouxe de novas informações?
Na adolescência, muda a questão da motivação. A criança é hipermotivada. Com qualquer brincadeira que você propõe, ela se entretém. Incentivar a criança é mais fácil, porque tudo é novo. Então ela gosta mais de aprender. Na adolescência, o que acontece é que há uma hipoativação da área de prazer, então nessa idade ficamos desanimados e precisamos ser hiperestimulados. Isso é um mecanismo biológico, essa questão de o cérebro responder menos aos estímulos de prazer, justamente para irmos em busca de novos estímulos. Uma das teorias é de que isso faz com que nos tornemos adultos, avancemos em algumas questões. Outro ponto é que a parte frontal do cérebro, responsável pela função executiva (que faz planejamento, controle inibitório), só acaba de se desenvolver por volta dos 25 anos. Então é natural, na adolescência, os alunos serem mais questionadores, quererem se desafiar mais, se expor mais a riscos, precisarem de mais motivação. E a escola deveria lidar com essas características, acolher melhor os adolescentes, ter um outro olhar, mas nem sempre isso acontece. É uma fase em que muitas instituições falam só em Enem.

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