Publicidade

Estado de Minas ENTREVISTA

Toda mulher precisa ser feminista?

Cientista social com doutorado sobre a imagem da mulher diz que o feminismo chegou ao seu limite. Para ela, a igualdade entre os sexos deve ser alcançada sem radicalismos


postado em 07/06/2019 10:09 / atualizado em 11/06/2019 15:55

(foto: Violeta Andrada)
(foto: Violeta Andrada)
  
QUEM É

ISABELLE ANCHIETA
40 ANOS
ORIGEM:Belo Horizonte, MG
FORMAÇÃO:Doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em comunicação pela UFMG, jornalista pela PUC Minas. Premiada como Jovem Socióloga pela Associação Internacional de Sociologia - ISA/Unesco. Recebeu também o prêmio Rumos Itaú Cultural como professora de jornalismo cultural.
CARREIRA:Autora do livro Imagens da Mulher no Ocidente Moderno, que será lançado este ano pela Edusp. Professora da PUC Minas. Lecionou também na Newton Paiva, em Belo Horizonte, e na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Foi apresentadora da Rede Globo Divinópolis. Colunista do jornal O Estado de S. Paulo. Também contribui com as revistas Mente & Cérebro e Sociologia.

A imagem da mulher, da Idade Média aos dias atuais, inspirou a tese de doutorado da socióloga Isabelle Anchieta. Concluído na Universidade de São Paulo (USP), o resultado da pesquisa estará no livro Imagens da Mulher no Ocidente Moderno, que será lançado este ano pela Edusp.  Apesar de se dedicar a estudos sobre o feminismo, Isabelle Anchieta não se declara feminista. Ela acredita que, para avançar na busca da igualdade e enfrentar questões urgentes como a violência contra a mulher, é preciso dar um próximo passo. Sem deixar de reconhecer as conquistas que o movimento trouxe para a sociedade ocidental, ela tem uma visão que motiva debates acalorados: acredita que o feminismo tem limitações porque fecha a discussão em um grupo identitário, quando a questão deveria ser ampliada para toda a sociedade. Para a socióloga, movimentos defendidos por vozes pós-modernas, não são necessariamente feministas: “O termo se transformou em um guarda-chuva, passou a nomear qualquer luta por liberdade, igualdade ou autodeterminação da mulher.” Mas Isabelle é otimista. E para isso ela se apoia na própria história das mulheres, que sempre conseguiram reverter situações desfavoráveis a seu favor. “O  avanço da mulher é um movimento sem volta, está ligado à prosperidade humana.”

ENCONTRO – O livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, um marco para o pensamento sobre a questão feminina, completa 70 anos em 2019. Como você vê o feminismo como caminho para uma sociedade menos violenta e mais justa?

ISABELLE ANCHIETA – O feminismo tem contribuições muito importantes, mas acredito que precisamos dar um próximo passo para alcançar a igualdade que as feministas desejam. Acredito em outra posição, em um pós-feminismo. Prefiro pensar a questão da mulher sob a perspectiva de um novo humanismo. Assim, as possibilidades para chegar onde desejamos são ampliadas. A questão de fundo do feminismo é desconstruir a ideia da mulher criada historicamente. É mostrar que, no fundo, isso está muito mais ligado a uma construção social do que à natureza feminina. Quando a Simone de Beauvoir fala em seu livro que ninguém nasce mulher, mas torna-se, o objetivo é mostrar que o que importa são os seres humanos e não esses construtos culturais. Ela se tornou uma feminista mais tarde, dada a necessidade que percebia politicamente de ocupar um lugar. Mas, Simone de Beauvoir era sobretudo uma humanista.
O lugar de defesa da mulher não é de esquerda ou de direita. A questão da mulher é para a prosperidade de toda a sociedade(foto: Violeta Andrada)
O lugar de defesa da mulher não é de esquerda ou de direita. A questão da mulher é para a prosperidade de toda a sociedade (foto: Violeta Andrada)
  
Como podemos entender o pós-feminismo?
Como a superação de um lugar marcado. O feminismo lutou tanto tempo para desconstruir o feminino que acabou reforçando-o de alguma forma. Quando marca a posição da mulher, é uma contradição. O que buscamos é uma equidade. Ser mulher não é demérito e nem mérito, é uma questão da sexualidade humana e não diz de tudo o que sou. Tem uma frase muito bonita da Judith Butler (filósofa norte-americana) que diz o seguinte: “Ser mulher não é tudo que alguém é.” Ser homem ou mulher não diz nada sobre uma pessoa no sentido de que não existem duas mulheres iguais, não existem dois homens iguais. O sexo não diz da trajetória de cada um. Por isso o pós-feminismo.

Mas ainda existem desafios imensos, como o feminicídio e a desigualdade no mercado de trabalho. O feminismo  não seria um modo para alcançar a igualdade, a paz social?
O pós-feminismo vai tratar de todas essas questões com outros métodos.  Eu estudei a história das mulheres desde a Idade Média e elas sempre lutaram por autodeterminação. Nem sempre foram feministas. Esse termo vai surgir no contexto da revolução industrial, em 1872, e está vinculado ao marxismo. Marx tinha uma concepção que é muito interessante. Ele diz que a opressão da mulher só seria superada quando ela se emancipasse economicamente. Ele tinha essa perspectiva materialista econômica. 

E não faz sentido?
Faz, sim. Essa ideia do empoderamento é muito interessante, porque é diferente da vitimização. Mas, se por um lado, o marxismo faz muito sentido na questão da superação econômica, a forma de fazer isso foi muito violenta. Marx mesmo diz que a fraternidade e a igualdade nunca nos ajudaram em nada. Ele entendia que a superação viria com o uso da violência e o feminismo de alguma forma herdou essa prática autoritária.

Há vozes contemporâneas de defesa da mulher mais flexíveis sob o ponto de vista da inclusão?
Nem tudo pode ser chamado de feminismo. O feminismo se tornou um termo guarda-chuva, com muitos braços. Mesmo o conceito estando no senso comum, muitas vezes é frágil o entendimento do que é o movimento. Qualquer tentativa de defesa da mulher é vista como feminismo. Até que ponto podemos usar o mesmo nome para coisas novas? Por que temos de usar um termo que tem uma marcação político ideológica que ainda persiste? Esse lugar mais flexível, que ainda não tem nome, é um novo humanismo para pensar uma série de questões, envolvendo justiça e equidade.

O pensamento pós-moderno não está livre dessa marcação ideológica?
O Brasil está polarizado e o feminismo está dentro dessa onda, vinculado às pautas ditas de esquerda. O lugar de defesa da mulher não é de esquerda ou de direita. A questão da mulher é para a prosperidade de toda a sociedade. Quantos trilhões são perdidos por não termos as mulheres ocupando postos de poder?  Uma pesquisa americana, “Delivering Diversity”, mostra um número impressionante: se houvesse equidade entre os sexos o PIB mundial cresceria 28 trilhões de dólares, em 10 anos. A conquista da mulher não é um pedido; é uma necessidade crucial para toda a humanidade. 

Não existem algumas caricaturas, alimentadas ao longo do tempo? 
De fato existem caricaturas de que existiria um ódio contra os homens, uma misantropia. Mas, se há caricaturas, existe também um fundo de verdade quanto aos métodos violentos de coerção dos outros, que eu considero, não como métodos empáticos, mas sim antipáticos. O próprio lugar de fala, que é uma estratégia muito interessante de inclusão das minorias, acabou sendo usado também como exclusão de fala dos demais, para emudecer alguns. Então, um homem não pode falar sobre a causa feminina, como se não fosse empático a ela. Se eu quero pensar em uma sociedade onde é preciso discutir a cultura do estupro, o feminicídio, a divisão das tarefas na família, eu preciso chamar os homens para essa conversa. Eu já participei de inúmeros debates nos quais as feministas diziam para mim que não, que esse é um lugar de fala da mulher. Se eu quero pensar em uma sociedade na qual o pano de fundo é a relação de homens e mulheres, não posso excluir um dos lados. A própria frase: “Todos temos de ser feministas”, mesmo sem entender o movimento sócio-histórico do feminismo e suas marcações ideológicas, tem um cunho autoritário. O fato de eu não ser feminista não quer dizer que eu não lute por equidade. O feminismo é uma linha ideológica dentro dos movimentos de defesa da mulher. Existem vários outros. 
O cavalheirismo foi um código de conduta criado na Idade Média por uma mulher, que usou a fragilidade feminina a favor das próprias mulheres (foto: Violeta Andrada)
O cavalheirismo foi um código de conduta criado na Idade Média por uma mulher, que usou a fragilidade feminina a favor das próprias mulheres (foto: Violeta Andrada)
 
Em sua opinião, quais os principais legados do feminismo?
O sufrágio. As mulheres poderem votar e se eleger de forma ampliada. Outro legado importantíssimo está ligado à violência contra a mulher, ter transformado o que é privado em uma questão pública:  em briga de marido e mulher mete-se,  sim, a colher.  

E suas limitações?
Até que ponto os movimentos identitários não estão caminhando em círculos, falando para si mesmo. Há um limite de avanço. À medida que não conseguem gerar a empatia necessária para a transformação, criam o barulho, geram a pauta. Mas, as pessoas serão sensibilizadas por essa pauta? Ganhar eleição é definitivo e necessário. É um absurdo, por exemplo, o Brasil ser sub-representado politicamente. Ter mulheres na política é uma questão central para representatividade. Estamos precisando de um novo humanismo. O que vamos fazer com todo aprendizado político, fecharmo-nos em  grupos de vingança e de ressentimento social?  Precisamos de métodos empáticos, para alcançar a equidade. 

Como vê a violência diária praticada contra mulheres?
Precisamos ter leis mais rigorosas. Pensar que sociedade é essa que produz homens que pensam poder abusar de uma mulher. Mas não adianta debatermos só entre as mulheres. Todos têm de lidar com esse homem, até mesmo outros homens. Não dá para fechar a discussão em um grupo, quando a intenção é ampliar para toda a sociedade.
Há pouco tempo o escritor Fabrício Carpinejar escreveu uma crônica com o título: “Cavalheirismo não é crime.” O que pensa sobre isso?
É preciso haver um bom senso para definir o que é crime e o que é parte da relação humana, e assim não enrijecer uma liberdade conquistada pelo próprio feminismo. Desde a Idade Média as mulheres foram, muitas vezes, capazes de inverter o jogo a seu favor. O cavalheirismo é um exemplo. Trata-se de um código de conduta que foi criado por uma mulher, durante a Idade Média, a princesa Leonor de Aquitânia. Ela usou a fragilidade a favor das próprias mulheres. O cavalheirismo foi criado para ensinar os homens a tratarem as mulheres em uma sociedade na qual elas eram vistas como objetos, apanhavam, sofriam. Foi uma estratégia interessante, pois na Idade Média não havia leis que protegessem as mulheres. O cavalheirismo se multiplicou entre a nobreza e depois pelas classes mais simples, dando a elas uma condição de proteção.

Você já enfrentou algum preconceito de gênero?
A academia tem lá seus próprios preconceitos (risos)... inclusive contra uma mulher que não tem marcação feminista para trabalhar o feminismo. Durante meu doutorado tive de trocar de orientadora porque ela queria que eu tivesse uma posição que eu me recusei a ter. Essa questão do Brasil, de ter posição marcada, é muito chata, especialmente para o cientista social, que tem o papel do esclarecimento e não de uma catequese ideológica. Mas, ser mulher é ambivalente. Se tive dificuldades, eu também tive vantagens por ser mulher.
 
Para você, o que é ser mulher nos dias de hoje?
É tenso. A mulher de hoje está mais ciente das suas possibilidades, mas também tem mais clareza dos entraves que a impedem de progredir. Por isso, ser mulher hoje é mais tenso, na medida em que essa consciência também motiva embates e desgastes, tanto com os mais conservadores, como com as instituições, que sempre caminham e mudam mais lentamente que a sociedade em geral. Mas não vejo essa posição com pessimismo. Esse enfrentamento é um indício da nova posição da mulher no jogo de forças. Se hoje a mulher ainda tem de afirmar-se, no futuro isso deixará gradualmente de ser necessário. A “mulher por vir” tende a desvincular-se da ideia de “ser mulher”, para ser uma pessoa com uma trajetória singular e ao mesmo tempo humana. É o que chamei em minha tese de “individumano”. O que é levado em conta não é o gênero, mas as escolhas, a capacidade e o esforço pessoal. 

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação

Publicidade