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Estado de Minas PANDEMIA

Infectologista fala sobre o retorno das aulas presenciais em BH

Cláudia Murta diz que "escola sem água e sabão não pode funcionar em época nenhuma" e que o novo coronavírus pode ser oportunidade para melhoria


postado em 23/10/2020 00:40 / atualizado em 23/10/2020 00:42

A infectologista Cláudia Murta:
A infectologista Cláudia Murta: "Precisamos pensar em voltar (com as aulas presenciais) mesmo se a gente não tiver vacina, mas com todas as questões relativas ao retorno muito bem discutidas" (foto: Geraldo Goulart/Encontro)
O retorno das aulas presenciais tem sido o tema de maior debate - e polêmica - nos últimos meses em BH, depois que a grande maioria das atividades comerciais já foi autorizada, com regras e protocolos, a reabrir. O estado liberou, a partir de outubro, a volta das escolas em regiões específicas do programa Minas Consciente, a que o prefeito Alexandre Kalil respondeu: "Cada um sabe o que faz. Aqui em BH, não." Segundo Kalil, o impacto em termos de contágio seria enorme no retorno dos 865 mil alunos da cidade. Os infectologistas do Comitê de Combate à Covid-19 da prefeitura dão como fio condutor para a volta números que vão de 50 casos por 100 mil habitantes, para o ensino superior, a 5 por 100 mil, no caso do ensino fundamental. Até o fechamento desta edição, a capital mineira tinha 143 casos por 100 mil habitantes. Os números referem-se a infecções registradas ao longo de duas semanas.

Há pais que desejam o retorno imediato, pensando na saúde mental de filhos, e os que não querem a volta antes da vacina. Fora a preocupação dos professores com a execução de protocolos por parte de jovens alunos e de não haver a estrutura disponível para garantir que essas regras possam ser seguidas, especialmente em escolas públicas. As variáveis dessa equação são muitas e, para a infectologista Cláudia Murta, membro do comitê de enfrentamento ao coronavírus da Santa Casa BH, a receita para o sucesso da volta está na atenção para os números e muito diálogo. Segundo ela, em entrevista feita pelo Zoom no final de setembro, não é possível o retorno em cidades cujo número de casos não estiver diminuindo e, para que as aulas possam voltar quando isso acontecer, é preciso planejamento enquanto não tiver chegado a hora de abrir as portas. Pais, alunos, professores, todos devem ser ouvidos em suas questões e muito bem orientados quando os protocolos forem divulgados. Afinal, diz, segui-los só é possível caso as pessoas estejam bem informadas e, portanto, menos tensas e temerosas. E, claro, é preciso garantir condições para que as regras sejam seguidas: "As instituições precisam ter acesso a tudo que se refere à proteção. Sem isso fica muito complicado voltar", diz.

  • Quem é: Cláudia Murta de Oliveira, 50 anos

  • Origem: Belo Horizonte

  • Formação: Médica formada pela UFMG, especialista em clínica médica e em infectologia e mestre em medicina tropical

  • Carreira: É médica do serviço de controle de infecção hospitalar Santa Casa BH, membro do comitê de enfrentamento ao coronavírus da Santa Casa e responsável técnico por uma clínica de vacinas

ENCONTRO - O que é preciso para que as aulas presenciais retornem?

Cláudia Murta - Em primeiro lugar é preciso redução do número de casos naquela região e redução da taxa de transmissão. Sem isso acontecer, não é possível planejar o retorno. Enquanto determinada cidade não chegou nesses números, é importante que comece a ser feito planejamento sobre como voltar, para que, quando as taxas caírem, as pessoas já estejam orientadas e preparadas.

O que se sabe hoje sobre a capacidade de transmissão das crianças?

Hoje sabemos que crianças abaixo de 10 anos têm menos sintomas respiratórios, e o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos) já coloca que elas transmitem menos o vírus, tanto entre si quanto para adultos. A capacidade de transmitirem é menor. Acima dos 10 anos a capacidade pode ser maior, mas são crianças e adolescentes que já sabem se portar  melhor, vão usar a máscara de forma adequada.

"Se houver liberação por parte do poder público, mostrando que estamos com nível de transmissão adequado para o retorno, e se a escola mostrar que está cumprindo os protocolos, minhas filhas certamente irão. Estarão lá no primeiro dia (de aulas presenciais)" (foto: Geraldo Goulart/Encontro)
A noção atual de que a transmissão pelo contato com superfícies é menos importante do que outros mecanismos interfere de alguma forma nos protocolos de retorno às aulas?

Para se contaminar por superfície, o vírus tem de estar vivo, em quantidade suficiente, e a pessoa precisa trazer a mão para o rosto. A higienização impede isso. É uma forma de transmissão mais bem controlada se a gente conseguir seguir as orientações. Mas será preciso higienizar carteiras de uma turma para outra, por exemplo. O risco é pequeno, mas existe. E é preciso cuidar das mãos. A transmissão respiratória, que acontece como em outros vírus respiratórios, se dá quando a pessoa espirra ou tosse em distância de menos de 1,5m da outra. O uso da máscara ajuda na redução da geração de gotículas, mas também é preciso praticar a etiqueta da tosse, evitar colocar as mãos na máscara.

Quais são os riscos para o professores e demais profissionais da educação nesse retorno?

Nunca vai existir risco zero em profissão nenhuma. Temos de reduzir os riscos o máximo possível. As escolas têm se programado para haver o distanciamento do professor, uso de máscara e face shield. Todos os alunos estarão de máscara também. Temos que pensar no professor com muito cuidado e carinho. Qual é a idade dele? Tem fator de risco? Isso é algo que precisa ser estudado, bem detalhado. O professor com doenças que são fator de risco não deve voltar à aula presencial, deve ser realocado para funções em que não tenha contato direto e não esteja tão exposto. Da mesma forma, é preciso avaliar os alunos que vão retornar para a escola; crianças com asma grave, diabetes, tratamentos de saúde que sejam de risco e baixa imunidade também precisam ser avaliadas, pois são candidatas a permanecer no ensino remoto. É preciso avaliar muitas variáveis, e com tranquilidade e discernimento. E a hora de fazer isso é agora. Quando tivermos condições de reabrir, isso tudo já deve estar analisado.

O retorno às aulas impacta o convívio das crianças com avós?

É preciso avaliar o convívio atual delas em relação aos avós. Se as crianças estão mesmo isoladas com eles, se os pais estão saindo para trabalhar, se há convívio com funcionários em casa, isso tudo tem que ser alinhado. É difícil avaliar isso. A criança que for para a escola pode trazer Covid-19 para casa, mas existem outras pessoas na casa dos avós que estão se expondo fora também?

Qual é o papel das famílias nesse retorno, quando acontecer?

Famílias têm que ser muito bem esclarecidas do que são os riscos aos quais as crianças estão se expondo, os riscos aos quais as crianças já estão sendo expostas. Da mesma forma, é preciso o esclarecimento dos profissionais das escolas. No início da pandemia, no hospital, havia muita gente em pânico, com medo do que ia acontecer, pois a ausência de conhecimento traz medo. É preciso haver muita orientação de como as pessoas devem se comportar nesse ambiente. Risco zero não existe. Os protocolos das escolas precisam estar muito bem definidos. E as famílias que não se sentem à vontade devem ter a oportunidade de continuar com estudo remoto. Mesmo porque não é possível voltar todo mundo junto, vai ter que ser feito rodízio, terá de ser um retorno gradual e o mais tranquilo possível.

Qual a sua opinião sobre aguardar uma vacina para fazer esse retorno?

A gente não sabe quando vai ter vacina para todo mundo. A produção não é tão fácil para que tenhamos em seis meses vacina para o mundo inteiro. Algumas provavelmente serão feitas mais rápido do que um protocolo usual de desenvolvimento demora, e com proteção não tão grande. De toda forma, os protocolos que estão sendo feitos são para pessoas a partir de 18 anos - e geralmente é isso mesmo, estuda-se primeiro no adulto saudável, depois adulto com alguma doença para depois incluir idosos e crianças. Então precisamos pensar em voltar mesmo se a gente não tiver vacina, mas com todas as questões relativas ao retorno muito bem discutidas.

O que as experiências de outros países demonstram em relação à contribuição da reabertura de escolas para o aumento da transmissão?

Na maioria dos países não houve impacto significativo na transmissão no restante da comunidade, desde que protocolos tenham sido seguidos. Voltar de uma hora para outra, sem programação, não vai dar certo. Haverá muita gente insegura, muito estresse, e os protocolos não vão ser cumpridos. É preciso voltar com planejamento. Quem voltou com planejamento e aos poucos voltou com segurança muito maior. Além de planejamento muito bem estruturado, é preciso que o processo seja acompanhado, monitorado. A gente precisa abrir com todos os protocolos e ver como pessoas e a doença vão se comportar. Quanto maior a adesão, mais fácil vai ser de manter aberto. Se a gente volta e observa que houve aumento do número de casos e que isso está ligado às escolas (porque o aumento também pode estar ligado a outras reaberturas, que não a das escolas), é preciso voltar e repensar.

Quando se fala de experiências em outros países, muitos argumentam que elas não se aplicam à realidade das escolas brasileiras. Acha que o retorno das aulas em nossa cidade se faz inviável devido às condições das nossas instituições de ensino, notadamente as públicas?

O vírus se comporta da mesma forma em qualquer área. O que a gente precisa ver são as estruturas e o que é preciso em cada uma. Escolas têm realidades muito diferentes. A escola que não tem torneira com água e sabão não pode funcionar em época nenhuma. Talvez o novo coronavírus traga a oportunidade de que consigam agora ver necessidades que já existiam antes, melhorar o que já não podia ser daquela forma e que, face à Covid-19, não pode mesmo acontecer. E assim melhorar a estrutura. As instituições precisam ter acesso a tudo que se refere à proteção. É preciso avaliar a estrutura que a escola necessita. Sem isso fica muito complicado voltar.

Quanto a essa questão das instituições públicas, pode falar da sua experiência na Santa Casa?

Quando começou a pandemia, a gente precisou se programar, se estruturar, treinar todo mundo, entender quais as necessidades de equipamentos de proteção individual (EPIs), como usar, como seria a paramentação. E naquele momento em que a gente começou a programar, nem havia estoque de material suficiente. Mas foram comprados - grande maioria por dinheiro do governo, mas houve também doações - e, quando o primeiro caso de Covid-19 foi internado, a gente já estava com todo mundo treinado, sabendo o que fazer, e com EPIs disponíveis. Acredito que essa experiência sirva para as escolas. Ainda não voltamos: neste momento é hora de refletir e fazer o levantamento do que precisa ser feito, quais pessoas podem voltar, quem é o professor de risco para ser afastado, o que aconteceria se houvese algum caso entre funcionários ou alunos. Nós tivemos funcionário que teve Covid-19 que trabalhava em ala que não era de novo coronavírus, onde não houve outros casos, ou seja, provavelmente a pessoa se contaminou fora do hospital, talvez no seu trajeto. Isso também pode acontecer na escola. O importante é discutir amplamente como será o retorno.

Temos visto crianças e adolescentes com sintomas de ansiedade e estresse. Como as famílias devem pesar os riscos de infecção pelo novo coronavírus e os riscos do isolamento?

Cada família tem a sua realidade. Existem aquelas que não se sentem seguras, com medo do contágio, e outras que já se sentem seguras, já estão mais orientadas, conseguem saber mais sobre esse risco, e pela questão de que a infecção na grande maioria das vezes em crianças é assintomática ou com poucos sintomas. É importante haver a opção de retorno para os que já desejarem, quando essa volta for autorizada, e a opção de continuar com o ensino remoto para aquelas que não se sentem ainda seguras para voltar.

Quando a escola das suas filhas reabrir, você tem intenção de mandá-las?

Se houver liberação por parte do poder público, mostrando que estamos com nível de transmissão adequado para o retorno, e se a escola mostrar que está cumprindo os protocolos, minhas filhas certamente irão. Estarão lá no primeiro dia. O número de casos cair, escolas cumprindo os protocolos e famílias e funcionários orientados, essa é a receita para o retorno dar certo.

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