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Estado de Minas GASTRONOMIA

Carnes consideradas de segunda ganham espaço nos cardápios

Cortes antes desdenhados provam que, quando bem preparados, fazem bonito e agradam até os paladares mais exigentes


postado em 31/01/2021 23:37 / atualizado em 31/01/2021 23:39

Shoulder steak do Pobre Juan: gordura entremeada faz com que muitos a comparem ao filé mignon(foto: Mario Rodrigues/Divulgação)
Shoulder steak do Pobre Juan: gordura entremeada faz com que muitos a comparem ao filé mignon (foto: Mario Rodrigues/Divulgação)
"Carne de segunda, pratos de primeira". Esse era o nome do curso que André Paganini dava na extinta Vila do Chef. Ali, ele ensinava pratos como o strudel de rabada com creme de agrião. "A ideia era mostrar que dá para criar pratos incríveis usando cortes que muita gente despreza", explica o chef. São as tais carne de segunda. Só de ouvir a expressão, imediatamente vem à cabeça a ideia de que são piores em uma determinada classificação. Afinal, todo mundo prefere o primeiro lugar. Mas no podium das carnes, ouro e prata são questionáveis. Por muito tempo, a parte dianteira do animal era considerada de menor qualidade, exatamente por sua importante função na locomoção e sustentação do animal. Com isso, a carne possui muito colágeno, que lhe confere certa resistência, sendo, portanto, menos macia. Trazendo isso para o dia a dia, são cinco os principais talhos bovinos considerados de segunda: acém, pescoço, paleta, costela dianteira e o peito.

Rogério Coutinho, da boutique de carne Meat & Co (precisa pegar no nosso banco de imagens, mas temos) Rogério Coutinho, da boutique de carne Meat & Co:
Rogério Coutinho, da boutique de carne Meat & Co (precisa pegar no nosso banco de imagens, mas temos) Rogério Coutinho, da boutique de carne Meat & Co: "Não existe carne de segunda e, sim, boi de segunda" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
Especialista no assunto, Rogério Coutinho, da boutique de carne Meat & Co, diz que essa ideia de classificação caiu por terra. "Não existe carne de segunda e, sim, boi de segunda", defende. A textura da carne depende da linhagem e idade do animal, da forma da criação, do processo tecnológico que envolve o abate. "O principal item hoje está no aperfeiçoamento genético das raças", explica ele, que trabalha com Black Angus, raça de origem escocesa. O que faz uma raça ser considerada melhor que a outra está no marmoreio, ou seja, a gordura distribuída fina e uniformemente, o que leva a um sabor consistente, além de suculência e maciez.

Djalma Victor, chef do Osso e da Rotisseria Central:
Djalma Victor, chef do Osso e da Rotisseria Central: "Por aqui, gostamos de carne bem temperada e que desmancha na boca, cozida lentamente no fogão a lenha. Para mim, carne de segunda é muito melhor que a de primeira, sem dúvidas" (foto: Geraldo Goulart/Encontro)
No país da picanha - sim, ela continua sendo a parte preferida dos brasileiros e inclusive é a mais vendida por Rogério no Meat & Co -, o universo da carne vem tomando novos rumos. Há algum tempo, os consumidores aprenderam a lidar com cortes tradicionalmente desdenhados pelos churrasqueiros de plantão. Se o destino do acém e da raquete eram virar carne moída, isso ficou no passado. Agora, eles estão lá, dividindo espaço com talhos sofisticados como o mignon e a alcatra. E o melhor, eles custam cerca de 30% mais em conta que os "primos ricos", considerados de primeira linha.

O beef shank, servido no Osso, é o músculo traseiro bovino servido inteiro com o osso da canela: prato faz sucesso no Instagram dos clientes(foto: Divulgação)
O beef shank, servido no Osso, é o músculo traseiro bovino servido inteiro com o osso da canela: prato faz sucesso no Instagram dos clientes (foto: Divulgação)
A tendência foi importada dos Estados Unidos, o que trouxe um estrangeirismo para o balcão do açougue. O acém virou denver steak. A raquete foi rebatizada como flat iron steak. E ainda tem short ribs, shoulder steak e ribeye steak (ver quadro no fim do texto). "Os clientes hoje são mais exigentes e olham diversos aspectos além do tipo de corte. Querem saber a origem, o produtor e raça do animal", diz Rogério.

Priscila Deus, chef executiva da rede Pobre Juan, aposta no flat iron:
Priscila Deus, chef executiva da rede Pobre Juan, aposta no flat iron: "É um dos meus preferidos, um corte magro, porém com suculência e maciez. O cuidado maior está no preparo. Um pedaço bem passado não será uma boa experiência para o cliente" (foto: Divulgação)
Dono do Chico Dedê, no Anchieta, e da hamburgueria que leva seu nome, no Padre Eustáquio, André Paganini - aquele do curso "Carne de segunda, pratos de primeira" - nunca foi fã de filé mignon. Tanto que cerca de 70% do cardápio do restaurante é composto por carnes de segunda, além de outros cortes considerados pouco nobres. "Costumo servir o que gosto de comer e tem dado certo", diz. Entre as especialidades está o pé e a panturrilha do porco. Tem também mexidinho de rabada, língua ao molho de vinho e carne de panela preparada com acém. Até o peixe escolhido é a gurijuba, que para o chef dá um banho de sabor no tradicional surubim. Para ele, esse preconceito com os talhos de segunda, vem do fato de serem carnes que dão mais trabalho no preparo. "Elas demandam um cozimento mais longo, uma marinada mais demorada", explica.

O que agrada, verdade seja dita, ao paladar do mineiro. Comidas caldosas estão no nosso DNA. "Por aqui, gostamos de carne bem temperada e que desmancha na boca, cozida lentamente no fogão a lenha", diz Djalma Victor, chef do Osso e da Rotisseria Central. Quando inaugurou o Osso, casa especializada em carnes, um dos pratos mais emblemáticos do cardápio se tornou justamente o beef shank, que nada mais é que o ossobuco (músculo traseiro bovino) servido inteiro com o osso da canela. Um verdadeiro espetáculo de exuberância gastronômica. O que rendeu, claro, um turbilhão de fotos no Instagram dos clientes. O corte, muito usado na Itália, ainda garante que o tutano no interior do osso se transforma em uma verdadeira manteiga durante o cozimento. E que cozimento: são no mínimo seis horas em temperatura de 80 graus até que ele fique macio, suculento e pronto para ser cortado - com uma colher, claro. A carne de segunda ainda aparece em outros preparos como o arroz de rabada.

Pé de porco com ciabatta, do Chico Dedê: sabor garantido com cozimento mais longo, uma marinada mais demorada(foto: Divulgação)
Pé de porco com ciabatta, do Chico Dedê: sabor garantido com cozimento mais longo, uma marinada mais demorada (foto: Divulgação)
Já na Rotisseria Central, quase todo o menu é preparado com carne de segunda. "Para mim, carne de segunda é muito melhor que a de primeira, sem dúvidas", afirma Djalma, que costuma definir a Rotisseria como um playground gastronômico. Por ali, na descontração do Mercado Novo, o chef usa todo seu talento para criar. E vale de tudo: acém, músculo, maçã de peito, rabada, língua, cupim, fígado. "Não existe um jeito certo de cozinhar cada corte, mas a maioria demanda um tempo maior de cocção. A minha mãe, por exemplo, prepara uma carne de sol no leite que fica estupidamente macia", diz. Com duas unidades do Osso na região metropolitana, Djalma se prepara agora para inaugurar mais duas Rotisserias, uma no Mercado da Boca, no Buritis, e outra no Vila da Serra. "Os nossos clientes vão atrás de comida boa. E é impressionante porque muitos deles vêm nos dizer que se lembrou da comida da mãe, da avó", completa o chef.

Maçã de peito com angu, agrião e maionese de urucum da Rotisseria Central: para garantir maciez, carne fica oito horas cozinhando(foto: Divulgação)
Maçã de peito com angu, agrião e maionese de urucum da Rotisseria Central: para garantir maciez, carne fica oito horas cozinhando (foto: Divulgação)
Agora, quando o assunto é brasa, as carnes de segunda aparecem mais timidamente na grelha. As mais macias, como o filé, contrafilé, alcatra, fraldinha e, claro, picanha, são as preferidas. Elas não precisam de muito para ficarem boas. Sal grosso, temperatura certa e ponto ideal fazem qualquer um desses cortes brilharem nos churrascos pelo Brasil afora. Existem exceções como é o caso do flat iron. Extraído da paleta bovina, mais precisamente da raquete, é considerado pelos especialistas o melhor corte dianteiro do boi. É apontado por muitos como o segundo corte mais macio do animal, só perdendo para o mignon. E o flat iron é uma das grandes apostas do Pobre Juan, no BH Shopping. "É um dos meus preferidos, um corte magro, porém com suculência e maciez", afirma Priscila Deus, chef executiva da rede. "O cuidado maior está no preparo. Um pedaço bem passado não será uma boa experiência para o cliente."

André Paganini, dono do Chico Dedê e da hamburgueria que leva seu nome, que deu curso sobre o uso de
André Paganini, dono do Chico Dedê e da hamburgueria que leva seu nome, que deu curso sobre o uso de "carnes de segunda": "Costumo servir o que gosto de comer e tem dado certo" (foto: Divulgação)
Durante os últimos quatro anos, Priscila trabalhou na Europa e chefiou o restaurante Temper, do chef Neil Rankin, em Londres, que tem como conceito o reaproveitamento total do animal. Desde que voltou, em dezembro de 2019, está no Pobre Juan. Para ela, o principal motivo do sucesso do restaurante está justamente na monitoria de cada etapa da produção da carne: seleção dos animais, acompanhamento na alimentação, porcionamento de cortes e maturação. Tudo isso interfere diretamente no que é servido ao cliente. Como é uma parrilla argentina, o Pobre Juan acaba usando mais os talhos de primeira, ideais para ir direto ao fogo. No entanto, desde abril de 2020, a casa abriu um novo braço, o Pobre Uuan Barbecue, que além dos cortes tradicionais dos hermanos, também utiliza técnicas americanas de defumação, muito presente no Texas. Por ali, o brisket (peito bovino), defumado durante 12 horas, já se tornou um sucesso entre a clientela. Por enquanto, o estabelecimento se restringe a São Paulo, mas já tem planos para aportar em outras capitais.

Priscila ainda dá uma dica valiosa. Sempre que tiver a chance, converse diretamente com o açougueiro ou, como dizem por aí, com o consultor de carne. "Ele é a melhor pessoa para tirar suas dúvidas, inclusive para sugerir o melhor corte para o preparo que você deseja", diz. E, nesse momento de pouco contato físico, também vale dar uma procurada nas redes sociais. Muitos profissionais, como o Roberto Bocabello (@roberto.bocabello), explicam direitinho como antes a desdenhada costela do boi dianteira virou assado de tira, um dos cortes queridinhos dos cozinheiros.

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